Encontrar Deus no diabo

Wanju Duli
12 min readDec 12, 2020

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Da primeira vez que eu li o livro “O Exorcista” de William Peter Blatty fiquei impressionada. Falo mais dessa experiência aqui. Esse é um trecho desse texto:

“O livro me sugeriu uma coisa curiosa: para os que têm a fé fraca ou não acreditam em Deus, uma boa maneira de fortalecer a fé seria ter uma experiência não com Deus, mas com o diabo. Não algo que traga paz e conforto, mas algo forte, que as faça realmente tremer de medo e desconfiar que existe algo muito mais profundo por trás do mal do mundo.

Afinal, se tanta gente diz que não acredita em Deus porque “não aceita que Deus exista num mundo em que há tanto sofrimento”, para essas pessoas não falta fé em Deus e sim no diabo! […]

Deus se esconde. Por quê? Porque ele aguarda que o encontremos através do diabo”

O livro já começa de forma impactante:

Eu comentei o seguinte no meu texto:

“Nós não sentimos, lá no fundo, que alguns feitos humanos são tão horríveis que nos fazem sentir um frio de morte por dentro? A impressão que temos é que aquilo parece terrível demais para ter vindo meramente de um ser humano”

Muitas pessoas, quando procuram Deus, desejam ter um vislumbre da experiência do céu. Mas que tal o caminho oposto: em vez de ter um vislumbre do céu, ter um vislumbre do inferno.

Isso também se chama jejuns e penitências: uma simulação do inferno. Mas também podemos chamar por outros nomes.

É normal que as pessoas, principalmente os jovens, achem que Deus é entediante. O diabo parece muito mais interessante, porque ele é rebelde e mau. Ele desafiou a autoridade: desafiou Deus. Jovens que desejam desafiar pais e professores se identificam com isso.

Quando nós saímos da adolescência, podemos buscar outra autoridade para desafiar. Por exemplo, lutamos contra sistemas políticos que consideramos opressores. Ou seja, o diabo, o inimigo, sempre está lá fora. Sempre o outro é o culpado. O diabo nunca está dentro de nós.

De certa forma, costumamos ver a vida como se fosse uma luta do bem contra o mal. Só que antigamente a religião assumia esse papel. Hoje em dia é a política. Acreditamos que se os “caras maus” não estiverem no poder irá reinar a justiça.

Talvez o problema nesse pensamento seja acreditar que nós somos os bonzinhos e nossa visão de mundo representa o bem. O inimigo é sempre o outro, o diferente (o capitalista, o socialista, o cara de direita, o cara de esquerda, o cristão, o muçulmano, o ateu).

Mas a questão é… talvez eu não seja assim tão diferente daquele outro cara: do cara mau. Talvez também exista algo bom no cara mau. E talvez existam coisas ruins em mim.

Muitos acusam a religião de ser maniqueísta e simplista, uma mera luta do bem contra o mal. Porém, se lermos muitos pensadores religiosos veremos que não é bem assim. É muito comum se encontrar textos falando sobre o papel do diabo na nossa salvação.

Satan Smiting Job with Sore Boils’, William Blake, c.1826

Sempre me lembro do livro de Jó no Velho Testamento. No início do livro, Deus e o diabo fazem uma aposta para ver se Jó irá manter sua fé mesmo diante de infortúnios que ocorressem em sua vida. Deus dá autorização para que o diabo o teste. O início do livro “Fausto” de Goethe, em que Deus e diabo fazem uma aposta, é inspirado nesse livro da Bíblia.

Portanto, está na própria Bíblia: Deus permite que o diabo continue por aí, para nos testar. O diabo tem um papel na criação. Assim como Judas teve um papel na crucificação de Cristo e posterior ressurreição (o livro “Silêncio” de Shusaku Endo explora isso muito bem. O filme baseado no livro também, até certo ponto).

Não é que Deus deseje o mal. Mas o livre-arbítrio do ser humano é mais importante do que forçar o bem nas pessoas. E no momento em que há uma escolha haverá o mal.

Caso Deus se mostrasse mais claramente, seria mais fácil aceitarmos o bem. No entanto, Deus se esconde para nos testar, como fez para testar os anjos. Para que nossa escolha pelo bem seja mais sincera.

Embora não possamos ver Deus face a face nessa vida, podemos ver e interagir com as outras pessoas. E há os anjos e demônios. Os anjos são o espelho de Deus e nos inspiram a fazer o bem. Os demônios são anjos caídos que nos tentam e nos testam.

Ou seja, tanto os anjos quanto os demônios possuem um papel de interação com o ser humano nesse mundo. E as pessoas também, umas com as outras.

Porém, anjos e demônios possuem uma visão mais clara de Deus e mais poderes, pois não possuem corpos. Eles são capazes de extremos: anjos podem fazer um bem enorme e demônios são capazes de um mal enorme.

Quando uma pessoa faz muitas coisas boas pode ter sito inspirada por anjos, como Maomé que recebeu o Alcorão do anjo Gabriel. É dito que São Francisco de Assis também tinha muitas visões de anjos, que desempenharam um papel crucial em vários episódios importantes da sua vida.

Por outro lado, quando uma pessoa faz um mal muito grande, costuma-se dizer que demônios a inspiraram. Isso não é assim tão absurdo. É aquela sensação de frio na espinha que sentimos quando vemos um ato que nos causa uma repulsa tão enorme que nos dá vontade de vomitar. Quando nos sentimos tão mal vendo aquilo que achamos que não vamos aguentar, que vamos desmaiar.

Costuma-se dizer que a maior parte das pessoas não é nem muito boa e nem muito ruim. Elas apenas vivem suas vidas e tentam fazer o bem quando podem. É como aquela descrição do anjo no Apocalipse:

“Conheço as tuas obras, que nem és frio nem quente; quem dera fosses frio ou quente!

Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca”

(Apocalipse 3:15–16)

Porém, quando temos contato com religião e espiritualidade, é comum que nós mesmos possamos permitir que se abram as portas de nosso coração, de nossa alma, para influências espirituais externas.

Claro que anjos e demônios também atuam na vida de pessoas que não são religiosas. Mas essa atuação é mais evidente quando nós rezamos diretamente para Deus e permitimos essa influência.

Alguns se perguntam: por que será que a maior parte das organizações de caridade do mundo são religiosas? Por que a maior parte dos santos e mártires têm conexão religiosa? E muitas pessoas que admiramos, que inclusive foram inspiradas pela religião para lutar por mudanças políticas e sociais (Gandhi, Martin Luther King, Malcolm X). Uma possível resposta: pode ser que anjos tenham inspirado esse bem que elas fazem.

Porém, outras pessoas ficam confusas e se perguntam: por que tanto mal no mundo é feito por terroristas muçulmanos? Ou por cristãos fanáticos? Essas pessoas também rezaram e abriram o coração para influências espirituais. Pode ser que demônios tenham as influenciado a fazer um mal tão grande.

Por isso é comum haver esses extremos de atos muito bons ou muito ruins em pessoas religiosas, embora felizmente os atos bons ainda sejam maioria, conforme vemos nas estatísticas de números de organizações de caridade religiosas que existem versus organizações terroristas (que são menos de 0,001% dos muçulmanos). A questão é que essas pessoas não se conformam em apenas ter uma vidinha “morna”. Elas querem mudar o mundo, embora algumas se enganem sobre o modo correto de fazê-lo. E frequentemente é a religião que as inspira a sair da zona de conforto, para o bem ou para o mal.

Não estou afirmando que anjos e demônios controlam os seres humanos como se eles fossem fantoches. Longe disso. Também não afirmo que todo o mal do mundo se explica porque demônios influenciaram as pessoas. A influência de um demônio na decisão de alguém não exime a pessoa da culpa.

Afinal, nenhum anjo ou demônio tem poder de obrigar ninguém a fazer nada. Eles apenas fazem sugestões através de vários meios. Cabe a nós dizer “sim” ou “não”.

Às vezes quando dizemos “sim” para um demônio e cometemos um erro, somos orgulhosos para nos arrepender e caímos cada vez mais no erro. Mas o grande milagre da religião é seu grande otimismo: não importa o mal feito, Deus sempre está disposto a nos perdoar se sinceramente nos arrependermos.

É claro que um ser humano pode não concordar com isso. Há crimes, acreditam eles, que não merecem perdão. Porém, nós achamos isso porque pensamos como seres humanos. Mas Deus e os anjos têm uma visão muito poderosa ou “extrema” do bem, assim como os demônios têm uma visão extrema do mal.

Por isso é comum que sejamos incapazes de explicar porque algumas pessoas fazem coisas boas demais e outras coisas ruins demais. Porque a maior parte de nós, principalmente quando não nos envolvemos com religião, se encontra “mais ou menos no meio”.

Uma visão ateísta e secular do mundo nos ensina que devemos ter um sistema justo de governo, direitos humanos, educação e comida para todos, etc. E que isso será principalmente resolvido através da política. Fora isso, devemos ser gentis com os outros, ser éticos na nossa profissão, ser honesto, leal e tudo mais. E isso é tudo.

A religião não se contenta com isso. De acordo com muitas religiões, sim, tudo isso está certo, mas é apenas o mínimo. Religiões focam na importância da nossa transformação interior para mudar o mundo. Tudo deve começar em nós.

“Minha culpa, minha culpa, minha tão grande culpa!” clamam os cristãos batendo no peito.

Se há mal no mundo, a culpa não é do outro. A culpa é minha. A culpa não é do diabo. A culpa não é de Deus. E eu preciso rezar muito e realizar muitos atos de amor e caridade para mudar a mim mesmo para que assim eu possa mudar o mundo. Como eu posso apontar o dedo para os outros se há tantas falhas em mim?

“Como poderás advertir a teu irmão dizendo: ‘Irmão! Permita que eu tire o cisco do teu olho’, se tu mesmo nem sequer notas o tronco que repousa no teu olho? Hipócrita! Retira, antes de tudo, a trave do teu olho e, só assim, verás com nitidez para tirar o cisco que está no olho de teu irmão”

(Lucas 6:42)

Se nós não acreditamos em Deus, em anjos e demônios, mas apenas no bem humano e no mal humano estamos dizendo que há limites para o bem e para o mal. Estamos dizendo que o ser humano consegue ser bom somente até certo ponto e mal somente até certo ponto.

A religião nos ensina o contrário: não, você pode ser muito mais amoroso do que imagina! Porque existe esse ser totalmente amoroso chamado Deus que irá te inspirar a ser muito mais caridoso do que você imagina ser capaz de ser. E há esse exército poderoso de anjos te protegendo. Então não tenha medo! Não tenha medo de fazer um bem muito maior do que imagina ser capaz! Você não vai conseguir isso sozinho, mas com a ajuda de Deus. Então reze. E aja. Agora!

A religião também nos alerta: ao contrário do que você imagina, os seres humanos são capazes de fazer um mal muito grande. Então você deve ter medo disso, porque existem demônios que podem nos inspirar a grandes desgraças. Aí está mais um motivo para você se proteger e fazer um bem muito maior do que você pretendia. Deve rezar muito para se proteger desse mal muito grande: tanto nos outros quanto dentro de você.

Por isso a religião nos alerta constantemente sobre os perigos do inferno e sobre as maravilhas do céu. Não são estados que encontramos somente no outro mundo, mas nesse mundo: dentro de nós e nos outros.

Reconhecer a existência do diabo nos conecta a Deus. O diabo nos mostra que existe um mal possível que supera o que o ser humano é capaz de fazer e imaginar.

Quando você se envolve com uma religião, passa a ter mais consciência do seu papel no palco do mundo, no jogo do mundo. Você entende que há anjos e demônios brigando por sua alma. Você não é apenas um grão de areia, um animal sem importância que nasceu e irá morrer por acaso. Você tem uma alma, que é reflexo do próprio Deus.

Quando se dá conta da importância disso, é difícil aceitar que sua vida será apenas algo normal, que você irá apenas fazer um mínimo de bem e evitar o mal. Você não pensará assim por mero medo do inferno, mas porque se deu conta da grandiosidade disso tudo: de uma vida humana. Pois Deus a tornou sagrada.

Sua morte também é sagrada e seu sofrimento possui um papel: o da purificação.

Toda vez que você se sente tentado a fazer algo ruim ou a seguir um caminho que talvez não seja ruim, mas que seja medíocre, cômodo, deve saber que aquilo não é algo trivial. Se você não der importância e pensar: “é apenas algo pequeno”, não está levando a sério.

Imagine que aquilo é um demônio te tentando. A própria religião ensina que nem sempre quando pensamos em fazer algo ruim é o demônio que nos tenta. Mas vale a pena estar aberto à possibilidade para se precaver e erguer um escudo.

O que há nesse escudo? Principalmente orações. É quando reconhecemos que não estamos sozinhos na batalha espiritual, que é reflexo da nossa batalha física nesse mundo.

Nós normalmente já passamos por várias tentações em nossa vida normal. Mas para aqueles que desejam treinar e se preparar como um soldado para a guerra, existem as simulações.

Por isso alguns religiosos combinam as orações com jejuns e penitências. Ou colocam a si mesmos em situações difíceis e desafiadoras da vida real, para purificar a própria alma.

É normal que pensemos em fugir dessas situações difíceis. Porém, buscar o inferno em vez do céu é como buscar desafiar o diabo cara a cara e enfrentá-lo. É como abrir-se para a luta.

Por isso Jesus foi até o deserto: o Espírito Santo o mandou lá para ser tentado pelo diabo. E nesse período Jesus ficou quarenta dias e quarenta noites sem comer, rezando.

Foi no momento de sua maior fome e exaustão que o diabo o tentou, pois era quando Jesus estava mais frágil. Mesmo assim, ele resistiu.

É isso que fazem muitos religiosos: colocam-se em situações de fragilidade, de propósito, para serem tentados. Isso se chama buscar o inferno, buscar um confronto com o diabo. É buscar Deus através do diabo. É uma prova de coragem, para agradar Deus.

É basicamente disso que trata o livro “O Exorcista” de Blatty: de como Deus usa o diabo para nos levar ao caminho da fé. O próprio autor afirmou isso em entrevistas.

O diabo dentro da menina jogava jogos a ponto de deixar aqueles ao seu redor exaustos. Somente para que no final, após tantas adversidades, Deus triunfasse.

O mundo em que vivemos é basicamente o palco do diabo no qual atuará o Deus triunfante. E Deus deseja que atuemos como testemunhas uns dos outros nessa luta. Que sejamos a inspiração um do outro.

É claro que podemos escolher nos esconder da luta espiritual ou treinar para a batalha. O irônico é que o diabo não é realmente um inimigo. Ele na verdade nos ajuda, contanto que possamos superar sua tentação e vencer a batalha. As lutas com ele nos tornam mais fortes. Sim, podemos perder algumas lutas, mas o importante é vencer a guerra.

Ao mesmo tempo, o diabo é o inimigo número 1, pois é capaz de extremos de maldade. Exatamente por isso ele é o adversário mais formidável, embora seu poder não se compare à força de Deus. Como é dito no livro “O Peregrino Russo”:

“Shatan é uma criatura, cuja função é a de nos testar, de nos tentar para nos fazer mais fortes ou simplesmente para permitir que tomemos consciência do nosso grau de fé e confiança em Deus”.

“Sem os demônios e as ciladas que eles colocam no nosso caminho nós não conseguiríamos progredir, diziam os antigos Padres do Deserto”

Então da próxima vez que pensar o que deve fazer para aumentar sua fé em Deus, você já sabe onde procurar. Mas não vá desarmado para a batalha. Você faz parte de um exército comandado por anjos e Deus é o general. Seu objetivo não é se aliar ao diabo, mas derrotá-lo. Porém, nunca sozinho. Pois como também nos ensina o Peregrino:

“O cristão não é um homem melhor do que os outros, nem mais inteligente, nem mais amoroso, ele apenas caminha com alguém, ele se mantém na sua presença”

Essa caminhada nos muda. Ela pode nos inclinar fortemente para o bem. Ocasionalmente pode nos fazer tropeçar no mal, com a esperança de que isso possa nos fortalecer. Mas uma coisa é certa: nossa vida nunca mais voltará a ser comum. Mesmo que por fora pareçamos ter uma vida normal, haverá uma chama queimando dentro de nós. Com tempo e amadurecimento da vida de oração, ela se transformará em ações.

“O abade Lot foi ao encontro do abade José e disse: ‘Pai, conforme minha capacidade, sigo minhas poucas normas, meus poucos jejuns, minha oração, meditação e silêncio contemplativo; e, conforme minha capacidade, luto para limpar os pensamentos de meu coração. Agora, o que mais devo fazer?’ O ancião levantou-se, estendeu seus braços ao céu e seus dedos pareciam dez lamparinas acesas. Ele disse: “Por que não se transforma completamente em fogo?’”

(A Sabedoria do Deserto, por Thomas Merton)

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Wanju Duli
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