Alimentação, corpo e espiritualidade

Wanju Duli
24 min readDec 6, 2020

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https://courtauld.ac.uk/gallery/collection/renaissance/lucas-cranach-the-elder-adam-and-eve

Se observarmos as listas dos sete pecados capitais do cristianismo, na maior parte delas o pecado da gula se encontra em último lugar. E, vale ressaltar, a luxúria em penúltimo. Sim, os pecados são dispostos num ranking, com o orgulho como o mais grave.

Eu já li mais de uma biografia sobre São Tomás de Aquino. E todos os relatos são unânimes: esse santo é descrito pelos registros da época não somente como gordo, mas como “muito gordo”. Aliás, seu apelido no colégio era “boi burro” por causa do peso e de suas notas de não muito destaque. Porém, ele viria a se tornar, junto com Santo Agostinho, o teólogo mais notável da Igreja Católica.

É importante lembrar que “gula” não significa estar acima do peso, mas ter apego à comida de alguma forma. Por exemplo, um monge muito magro, mas que não gosta de muitos tipos de comida que lhe servem e que deixa comida no prato seria alertado de ter o pecado da gula. O correto num mosteiro seria aceitar comer o que lhe servem, sem muita frescura, e agradecer a Deus.

São Tomás de Aquino fazia todos os jejuns prescritos pela Igreja Católica, de forma rigorosa. Antigamente, exigia-se jejuns de longas horas antes de comungar, então ele jejuava com muita frequência. Ele foi um homem altamente disciplinado, tanto em seus escritos como no resto. De forma alguma eu diria que gula estaria contida na lista de pecados de São Tomás de Aquino, independente de seu peso.

São Tomás de Aquino (1225–1274)

Muitas religiões, incluindo judaísmo, cristianismo, islamismo, hinduísmo e budismo recomendam o jejum como muito útil para a espiritualidade. Eu não irei me estender no tópico do jejum nesse post, pois já falei muito dele em outros textos meus.

Nas religiões abraâmicas é dito que o jejum é útil para orar. Isso porque o fato de se abster de comida é como uma oferenda para Deus. Quando abrimos mão de qualquer coisa por Deus, nós nos aproximamos dele.

Muita gente diz: “Eu me sinto tão bem quando jejuo!”, mas o jejum espiritual não é útil para você se sentir bem. Na verdade, espiritualmente falando, não importa se você se sente bem ou mal quando abre mão de algo por Deus. Teoricamente, se você se sente mal é até “melhor”, pois, como diz São Francisco de Sales, a melhor oração é aquela que você reza sem vontade de rezar. Isso significa que você está fazendo aquilo por Deus e não por você mesmo.

Se você se sentisse bem, como diz Jesus, “você já teve sua recompensa”. Mas a sua recompensa deve ser somente o amor de Deus.

Então se alguém diz: “Eu me sinto tão leve, tão puro, tão alegre quando não como carne!” ou “Eu nem sinto mais fome depois do terceiro dia de jejum!” isso não tem significado espiritual.

Hoje em dia a melhor forma de convencer alguém a fazer alguma coisa é dizer que algo é prazeroso, que faz bem para a saúde ou qualquer vantagem que traga para nós mesmos. Mas é fundamental entender a perspectiva religiosa: saúde e prazer são coisas boas e Deus gosta de nos ver saudáveis, tendo diversão e alegria. Porém, o ser humano tem um destino maior que esse. Nós fomos feitos para essa vida sim, mas também para a vida depois dessa, ao lado de Deus.

Existe a morte e o ponto de vista religioso é olhar tudo aos olhos da morte. Isso pode parecer macabro, mas é incrivelmente realista e prático. Para quem gosta de ver as coisas do lado “prático”, não há nada mais prático do que se preparar bem para a morte e esse é um dos maiores objetivos da religião.

Christ of Pity-Simon Marmion (1425–1489)

O corpo é um elemento central no cristianismo, pois Deus enviou seu filho para ter um corpo em nosso mundo. Falo mais sobre o corpo nesse texto.

Em geral, as religiões indianas dão menos importância para o corpo porque “tudo é ilusão” e há a reencarnação ou renascimento. As religiões abraâmicas falam em ressurreição do corpo, dando diferentes significados a isso. Por exemplo, no cristianismo é dito que receberemos um novo corpo após a morte, assim como Jesus recebeu um. Por isso, mesmo que um corpo seja esquartejado ou queimado, ele ainda pode ressuscitar.

Mesmo assim, quando os cristãos medievais perdiam partes do corpo eles ainda consideravam importante enterrá-las, de preferência no mesmo lugar, para a ressurreição.

É verdade que algumas religiões se referem ao corpo quase como um saco, um cadáver, um mero repositório da alma. Insistem que nosso “eu” não é nosso corpo, mas nossa alma. No cristianismo não é dito isso, mas é dada importância ao corpo, que nos foi dado por Deus. Porém, o mártir, aquele que é torturado e morto em nome da religião ou ajudando os outros é o que deu mais importância ao seu corpo, pois ele o entregou para a maior glória de Deus.

Atualmente vivemos num mundo que, embora ainda bastante religioso, valoriza muitas ideias seculares. Nós buscamos enfeitar nosso corpo com roupas e acessórios. E também há uma preocupação com o peso de uma maneira que geralmente não é encontrada na maior parte das religiões.

No cristianismo e islamismo aceita-se que homens e mulheres enfeitem o corpo, contanto que a vaidade não seja excessiva. Afinal, como essas religiões tradicionalmente recomendaram um caminho de pobreza, como a exemplo de Jesus e Maomé, o objetivo seria que nosso corpo não fosse símbolo de opulência. Antigamente os cristão iam para as igrejas com roupas discretas e as mulheres usavam véus, mas hoje em dia a questão da vaidade e pobreza é bem menos rigorosa no cristianismo. Como diz Scott Hahn, você vai para a igreja e encontra seus vizinhos “vestidos como se fossem para um piquenique”, haha.

Quanto ao peso, como já foi dito, embora jejuns e moderação no comer sejam recomendações religiosas, estar acima do peso nunca foi um “pecado” tão grande na religião como é na sociedade secular atual.

Last Supper. Mironov, 2009

Há muitos símbolos de alimentos no cristianismo: o fruto do Éden, que já era um símbolo no judaísmo. O cordeiro do sacrifício que Jesus se tornou, devido à prática judaica de sacrificar um cordeiro na Páscoa. Mas, principalmente, o pão e o vinho, que são o corpo e o sangue de Cristo.

Jesus tornou puros todos os alimentos, de certa forma porque ele se tornou o sacrifício. Mas no judaísmo e no islamismo há diversas proibições alimentares. O significado dessas proibições não é por saúde ou higiene, independente de onde se originaram, e sim porque é um tipo de pacto com Deus abdicar de algo por ele, assim como no caso do jejum.

Atualmente nós olhamos para nosso próprio corpo e para os alimentos que consumimos com outro significado. Na religião, o objetivo do corpo é servir a Deus. Isso é mais importante do que saúde, prazer ou beleza. Mas hoje em dia nós lidamos com o corpo e escolhemos os alimentos principalmente com esses objetivos.

Repito: de uma perspectiva espiritual não há alimento puro ou impuro, melhor ou pior. Apenas ao analisarmos religiões específicas existem as recomendações.

O alimento kosher (para os judeus) e halal (para os muçulmanos) são aqueles em que o animal foi abatido de uma forma específica e havia alguém para consagrar aquele animal a Deus no momento da morte.

Nos dias de hoje, a maior parte das pessoas não se importa se um animal foi consagrado a Deus no momento da morte e sim se o animal foi criado solto e teve uma morte sem muito sofrimento. Muitos até optam por ser vegetarianos ou vegans, geralmente mais pelo sofrimento do animal do que por razões espirituais. Quase metade dos indianos seguem algum tipo de dieta vegetariana.

Eu não irei abordar nesse texto a questão de quais são os alimentos que fazem bem ou mal para a saúde. Também não irei levantar o tópico do vegetarianismo e suas relações com saúde e meio ambiente. Já li dezenas de livros sobre nutrição (e estou lendo um agora sobre os impactos ambientais), mas prefiro não levantar esse tema aqui para não perdermos o foco. Quem sabe um dia eu escreva um texto especificamente sobre isso.

É claro que as religiões também levantam questões sobre proteção dos animais e meio ambiente. Porém, devemos ressaltar que cada uma aborda a questão da alimentação relacionada à ética e espiritualidade de forma única.

Não há consenso entre as maiores religiões do mundo sobre o que devemos e não devemos comer. Você tem direito a ter suas opiniões e pode expor o ponto de vista científico e ético, mas quanto ao espiritual as religiões realmente diferem sobre quanto jejum ou tipos de alimentos podemos ou devemos consumir.

Não sabemos porque o mundo é assim do ponto de vista religioso: porque nós devemos consumir outros seres (plantas ou animais) e porque matamos outros seres apenas ao caminhar ou respirar. Se aceitamos que Deus existe, significa que, de alguma forma, Deus aceita que temos que tirar a vida de outros seres para nos manter vivos, ou a única forma de não ferir outros seres seria que todos os humanos organizassem um suicídio coletivo.

Porém, faz diferença comer uma coisa ou outra, jejuar ou não jejuar, seja em nome de Deus, de outras pessoas ou seres. É verdade que apenas boas escolhas alimentares e nossos jejuns, isoladamente, não nos garantem nem o céu e nem o nirvana, mas já é um começo.

A história do Éden nos ensina que no início dos tempos Adão e Eva viviam no jardim em harmonia com os animais e consumindo apenas frutas. De alguma forma, a existência de Adão e Eva não feria outros seres, pois eles estavam em harmonia com Deus. Após a desobediência, o próprio Deus ordenou que a partir daquele momento eles passassem a matar animais, pois o corpo deles se tornou mortal e a nutrição apenas de frutas já não era suficiente para o novo corpo. Lendo a Bíblia, vemos que Deus ordenava que não somente comêssemos animais para nutrição, como também exigia o sacrifício de animais em seu nome.

É verdade que essa história do Éden é principalmente simbólica, mas nos ensina algumas coisas. Ela nos sugere que antes da desobediência era possível um estado de harmonia em que não feríamos uns aos outros. E que o mundo para o qual iremos após a morte promete algum tipo de harmonia semelhante. Deus permitiria a morte nesse mundo, mas promete um mundo sem morte no futuro.

Vou aproveitar o gancho da história do Éden para falar um pouco a meu respeito, pois creio que minhas experiências e impressões possam ser usadas como exemplo para refletirmos sobre esse assunto. Afinal, como todos esses conceitos religiosos se aplicam para nossa vida hoje?

In the Garden of Eden, while the serpent curls around the tree of knowledge, Eve is about to taste the apple.

Eu já contei essa história em outros lugares, mas irei repetir para quem ainda não leu. Quando eu tinha 17 ou 18 anos eu decidi que iria passar a comer apenas frutas, pois cheguei à conclusão que era o alimento que feria menos seres. E não podia ser todas as frutas, mas somente aquelas que existissem para o consumo e não aquelas que feriam a planta. Essa foi uma época em que eu tive contato com mais conceitos religiosos, após minha primeira operação de Abramelin. Então eu estava disposta a fazer boas escolhas morais, mesmo que exigissem sacrifícios da minha parte.

Eu não fiz isso por mais de dois meses, pois meu cabelo começou a cair, minhas unhas começaram a quebrar, minha menstruação parou e um dia eu passei tão mal que fui parar no hospital e tive que passar a noite lá, vomitando. Quando a menstruação de uma mulher em idade reprodutiva para significa que há algo errado. Já li que uma das primeiras coisas que aconteciam às mulheres mandadas para campos de concentração era a interrupção da menstruação após o primeiro mês lá, devido à péssima qualidade e quantidade da alimentação oferecida. O corpo entra em estado de alerta e interrompe a menstruação, porque naquele momento é mais vantajoso focar na sobrevivência do indivíduo, pois o corpo não teria condições físicas de nutrir outro ser para passar os genes adiante.

Hoje em dia, após ler tantos livros, eu entendo melhor o que aconteceu com meu corpo da perspectiva biológica. Não irei explicar longamente isso aqui para não fugirmos do assunto. Apenas digo que ninguém pode alterar a alimentação subitamente e radicalmente de uma hora para outra, porque nós temos microrganismos (bactérias, vírus e outras coisas) habitando nossos intestinos. E quando mudamos radicalmente a alimentação de uma vez só, após algumas semanas muitas bactérias de nosso corpo morrem. É quase como tomar um antibiótico forte: você vai ter diarreia (aquele monte de bactérias mortas sendo eliminadas), ainda não vai ter novas bactérias para substituir as antigas, as defesas do seu corpo baixam.

É claro que quem não sabe disso acaba criando todo tipo de superstição sobre alimentos, e “acha” ou “sente” que tal alimento é bom ou ruim para ela sem passar por exames médicos. Se você fica muitos meses ou anos sem comer um determinado tipo de alimento e um dia subitamente o introduz em sua dieta (não importa qual seja), você pode ter diarreia ou passar mal por um tempo, até seus intestinos serem colonizados com as bactérias novas. Então muita gente diz: “Viu como esse alimento não faz bem para mim? Viu como ele faz mal para a saúde?”. Bem, você não passa mal toda vez que come fast food, doces ou alimentos industrializados e ultraprocessados, mas isso não significa que eles fazem bem para a saúde. Significa apenas que você já comeu esse tipo de coisa tantas vezes que seu corpo se acostumou e tem as bactérias para digeri-los. Mas no futuro podem haver consequências nessa luta constante de seu corpo em extrair os poucos nutrientes desses alimentos e jogar fora o que não faz bem.

Enfim, acho que quando somos jovens ao menos temos a desculpa da juventude para fazer uma ou outra coisa estúpida. Mas eventualmente em algum momento da vida é importante ler e se informar sobre muitas coisas, para dali em diante ter mais embasamento antes de tomar certas decisões. Então se você for decidir fazer outra coisa estúpida no futuro, ao menos a fará com conhecimento das consequências.

Seria realmente maravilhoso se o ser humano pudesse viver apenas comendo frutas. Até existem umas poucas pessoas que realmente conseguem isso sem comprometer muita a saúde, mas essa não é uma recomendação sábia para a maior parte de nós.

Claro, a vida não é apenas saúde. Mas se você decide abdicar de algo por razões éticas, espirituais ou o que seja, é fundamental uma coisa: informação, para saber tanto recomendações gerais quanto individuais.

Atualmente estou relativamente em paz com minhas escolhas alimentares. Nos últimos sete ou oito anos eu participei da Quaresma todos os anos (algumas vezes até em mosteiros) e nos últimos três anos participei do Ramadã. Caso eu me torne muçulmana no futuro terei que consumir apenas alimentos halal, o que é meio difícil no Brasil, mas essa é uma preocupação para o futuro. De qualquer forma, não acho que uma pessoa deva deixar de seguir uma religião apenas porque devido a uma ou outra circunstância pode não ser capaz de seguir todas as regras religiosas perfeitamente. Eu acho que pessoas perfeccionistas ou não se tornam religiosas ou se tornam monges ou mártires. Eu não me considero perfeccionista, então eu me sinto satisfeita em praticar uma religião da forma limitada que eu consigo.

Essa foi uma das coisas que tive que aprender sobre mim mesma e aceitar ao ter uma religião: sou cheia de defeitos. Talvez pela internet eu pareça ser disciplinada ou correta, mas estou muito longe disso. Não sou melhor do que ninguém, seja nas minhas escolhas alimentares ou no resto.

E já que esse texto é sobre corpo e alimentação, vamos falar disso. Quando eu era adolescente eu nunca me senti realmente bonita. É verdade que eu também não me sentia feia. Mas eu não costumava me identificar muito com personagens femininas de livros e filmes que eram descritas como “bonitas” ou “muito bonitas”. A primeira vez que coloquei maquiagem (que não fosse batom) eu tinha 17 anos. E eu só iria colocar de novo muitos anos depois. Não que maquiagem seja sinônimo de beleza, mas é um exemplo para ilustrar.

Nunca me importei muito com roupas ou aparência. Eu não me considerava insegura, pois não me achava exatamente feia, mas também não via nada de destaque em mim. Então eu não sabia se um dia alguém ia se interessar por mim ou se eu ia arranjar um namorado. Adolescente é assim: se algo não acontece em poucos meses ou anos, achamos que estamos condenados para a vida inteira. Hoje em dia tenho uma perspectiva bem mais ampla do tempo e estou totalmente tranquila em começar algo que vai durar dez ou vinte anos. Tudo bem, não estou com pressa. Se eu morrer antes, continuo meus planos no paraíso (ou no inferno, hehe), se for necessário e se Deus permitir.

Eu só comecei a tirar fotos minhas com 24 anos, quando comprei uma pequena câmera. Até então, eu não sabia que eu era bonita (ou eu não me sentia bonita). Aprendi a tirar fotos e descobri que era divertido. Esse passou a ser um tipo de ritual importante para mim, para que eu mantenha a confiança em mim mesma. Ou melhor, eu não tiro fotos pensando “vou tirar para manter minha confiança”, ou seria algo muito artificial. É um misto de diversão com outras coisas.

Eu costumo confiar na minha intuição. Embora eu não enxergue um valor espiritual imediato para o ato de tirar fotos, eu costumo manter pequenos lazeres na minha rotina sem utilidade aparente e isso me deixa tranquila. Se um dia eu parar de tirar fotos e parar de fazer outras coisas que faço atualmente, sem problemas.

De certa forma, é útil tentar ter uma boa aparência, pois a maior parte de nós se importa ao menos um pouco com isso, mesmo que inconscientemente. Então se alguém um dia acabar lendo um texto meu porque viu uma foto minha e ficou curioso, pode-se dizer que é uma forma de divulgar o que escrevo, embora eu nunca tenha feito questão de ter centenas de pessoas lendo meus textos. Se uma ou duas pessoas leem algo que escrevo, acho que já valeu a pena ter escrito. Embora escrever apenas para mim mesma já tenha um valor enorme, pois me ajuda a organizar meus pensamentos.

É importante dizer que embora eu ache divertido me arrumar às vezes, eu não me importo se outras pessoas não se arrumam. Se você entende “arrumar” como usar roupas e acessórios socialmente aceitos. Bom, eu nem precisaria dizer isso, já que tenho uma visão de mundo fortemente baseada em ideias religiosas, que dizem que aparência realmente não está entre as coisas mais importantes.

Eu não acho que uma pessoa que se importa com a própria aparência é melhor ou mais disciplinada do que uma que não se importa (dizem que um dia tentaram impedir Schrödinger de entrar numa conferência sobre física porque acharam que a aparência dele naquele dia se parecia com a de um morador de rua). Como dizem por aí, ser bom em matemática não significa que você é bom em geografia, ou vice-versa. Mas por alguma razão estranha, muita gente tende a pensar que se você tem “disciplina” pra algo ou é bom em algo, você necessariamente tem disciplina ou é bom em qualquer outra coisa, o que na verdade não tem relação nenhuma.

Acho totalmente bizarro que alguns pensem que se uma pessoa está acima do peso é porque não tem “disciplina” para emagrecer, e portanto não deve ter disciplina para outras coisas. E Tomás de Aquino, que era descrito como “muito gordo”, dormia apenas 4 horas por dia, sempre escrevendo, sempre orando, um dos santos mais disciplinados que o mundo já conheceu?

Quando eu era criança, eu não tinha “disciplina” para comer. Eu, como muitas crianças, apenas odiava quase tudo que botavam no meu prato, principalmente vegetais. Eu não era magra por disciplina e sim porque aleatoriamente não gostava daqueles rituais de sentar numa cadeira pra comer e preferia sair correndo por aí para brincar com as outras crianças (eu não tinha computador quando criança, então eu brincava lá fora). Acho triste que coloquem a culpa por estar acima do peso até mesmo em crianças, que muitas vezes podem ter problemas hormonais ou genéticos e isso não é propriamente investigado.

Lembro que quando eu tinha 12 anos e fui num show de metal com minha irmã e vi alguns homens bem acima do peso com cabelo comprido e vestidos de preto, eu pensei que eles deviam estar acima do peso de propósito para ficar com uma aparência mais “cool”. E eu achava realmente “cool”. Naquela época eu ainda não tinha sido doutrinada com a ideia de que magreza era beleza (eu não tinha internet). Eu naturalmente olhava para pessoas de pesos diferentes e não achava que quem pesava menos era mais bonito. Eu achava que algumas mulheres escolhiam pesar mais para ficar com mais curvas e que homens escolhiam pesar mais para ficarem com aparência mais musculosa.

Eu só fui começar a pensar na questão do peso quando eu tinha uns 14 ou 15 anos. Lembro que nos pesavam e mediam todo ano na escola, então eu ainda lembro que aos 13 anos eu tinha 37 quilos e aos 14 anos eu tinha 40. Aos 15 anos eu tinha uns 42 ou 43 quilos. Na verdade, eu nunca tive balança em casa (só comprei uma no ano passado ou retrasado) e quando eu me pesava em farmácias era sempre com roupa e tênis. Então eu nunca sabia meu peso exatamente.

A época da minha vida em que eu pesei mais até agora deve ter sido no final da adolescência, quando eu tinha uns 16 ou 17 anos, que eu passei dos 45 quilos. Mas até hoje eu nunca consegui doar sangue, pois você precisa ter no mínimo 50 quilos para isso. Essa é uma das partes mais desagradáveis de pesar menos de 50, pois eu sempre quis doar sangue.

Aos 18 anos eu comecei a ser vegetariana e meu peso baixou para 42 ou 43 novamente. Dez anos depois, voltei a comer carne por problemas de saúde e voltei aos 44 ou 45 quilos. Não vou falar a fundo aqui sobre o tema do vegetarianismo porque eu sei que ele é muito polêmico. Eu me sinto tão desconfortável ao falar disso que pra mim é mais fácil falar do meu peso publicamente do que disso. Pois várias vezes já fiquei chateada quando um vegetariano na internet descobriu que eu comia carne e me julgou por isso, sem saber que era por questões de saúde. Algumas pessoas defendem que nunca se coma carne mesmo se você tiver problemas de saúde. Mas existem consequências muito graves da anemia e outros problemas que algumas pessoas podem ter. Ferro baixo pode ser grave principalmente em bebês, crianças, mulheres (pois elas perdem ferro pelo sangue menstrual), grávidas, puérperas (perde-se sangue no parto), pessoas submetidas a cirurgia e aqueles com algumas doenças (como malária, hepatite e HIV).

Minha balança rosa. Foto de 4/12/20

Essa é minha primeira balança, que comprei há um ou dois anos. Eu me pesei anteontem. Meu peso atual costuma variar entre 45 e 46 quilos. O último jejum que eu fiz foi há muitos meses, provavelmente no último dia do Ramadã, que esse ano caiu dia 23 de maio, então faz mais de seis meses. Quando faço um jejum de 24 horas meu peso deve cair para 44 e com um jejum de dois ou três dias para 43. Mas o peso logo volta ao que era antes, claro, haha. Esse ano eu estou evitando ficar sem comer por mais de 6h porque quero que meu sistema imune fique forte, devido à essa época de pandemia. Claro que se você tem o hábito de ficar sem comer mais tempo que isso entre uma refeição e outra, não tem problema, pois o corpo se adapta a muitas coisas e cada corpo funciona de uma forma diferente.

Tecnicamente, se eu emagrecer mais alguns gramas meu peso vai ser considerado abaixo do IMC normal, então eu tento mantê-lo no normal. Claro, esse cálculo do IMC é aproximado e não acho que uma pessoa vá ficar doente por estar um ou dois quilos abaixo do IMC normal.

Eu sou da opinião de que se você engorda alguns quilos e não cabe mais nas suas roupas, o problema não está em você e sim nas roupas, que devem existir em todos os tamanhos, incluindo plus size.

Eu realmente não gosto quando as pessoas usam o argumento da saúde para dizer que pessoas acima do peso devem emagrecer. É verdade que estar dentro do IMC normal faz bem para a saúde e é bom buscar isso, mas existem várias outras coisas que é possível fazer para melhorar a saúde, como exercícios, dormir bem e ter momentos de lazer para ter menos estresse e melhorar a saúde mental. Não acho justo usar o argumento da saúde como desculpa para ter preconceito em relação a pessoas acima do peso.

Todos são bonitos em todas as formas, cores e tamanhos. Não faz muito tempo que li um livro de ficção com uma personagem principal que pesava mais de cem quilos e que virou uma modelo plus size. Após ler o livro pesquisei várias modelos plus size na internet que são realmente lindas, com qualquer tipo de roupa, incluindo biquini. Beleza definitivamente não tem nada a ver com peso.

Nós infelizmente fomos doutrinados a acreditar que ser magro é mais bonito. Eu às vezes vejo modelos ou atrizes, principalmente asiáticas, 10 ou 20 centímetros mais altas que eu, pesando menos que eu, que já estou quase abaixo do meu IMC (e que já estive abaixo muitas vezes). E nesses momentos às vezes eu pensava: “Será que eu devo emagrecer um ou dois quilos?”, mas isso é loucura! Por que pensar assim?

Eu também já conheci alguns homens muito magros que tinham o sonho de ficar mais fortes para ter mais massa muscular. Eles lutavam para pesar um pouco mais e não conseguiam. Ou conseguiam apenas depois de um grande esforço.

Quando eu tinha 21 anos, tive um namorado de um país africano que fazia academia e ficava meio chateado quando eu o levava para almoçar em um restaurante vegetariano. Ele dizia que tinha que comer carne para ganhar mais massa muscular. Aliás, ele era católico, ia para a igreja todo domingo e lia a Bíblia todo dia. Na época eu não estava tão interessada no catolicismo. Mal imaginava ele que eu iria me tornar católica alguns anos depois.

Bom, eu tenho o maior prazer de dizer que do ponto de vista espiritual o seu peso não faz diferença nenhuma. Deus não vai gostar mais ou menos de você e não vai te julgar pelo seu peso. Eu já li centenas, talvez até mais de mil livros de religião e até hoje eu nunca encontrei nada sobre o peso, nem em escritos antigos ou medievais. Como já falei, a questão da gula não se relaciona diretamente com peso e sempre foi considerada um pecado capital menor.

No início desse post eu mencionei que o sexo era considerado o pecado menos grave após a gula. Bem, eu teria que escrever um post apenas sobre isso. Mas assim como eu realmente não gosto de pessoas que te julgam pelo que você come para falar de espiritualidade, também não gosto de gente que te julga em relação à sua conduta sexual para decidir se você é “mais espiritualmente avançado”.

Nós no ocidente costumamos falar mais sobre sexo e espiritualidade do que sobre comida devido à nossa influência cristã. Porém, em países em que o islamismo é predominante, fala-se tanto de comida quanto se fala de sexo ou até mais. Provavelmente por causa do Ramadã e da alimentação halal. No caso da Quaresma, abrandou-se tanto as regras em relação à época medieval que a maioria dos cristãos nem jejua mais na Quaresma. Apenas comem peixe na Sexta-feira Santa. Porém, na prática no mundo muçulmano o Ramadã é seguido por muita gente, e da forma que era feito antigamente.

Acho que as pessoas frequentemente focam demais em minúcias e deixam de fora o que realmente importa. Para mim o foco da religião deve ser orar e ajudar os outros (com doações, ajuda direta, trabalho e outras coisas).

Penso que se você realmente deseja se aproximar de Deus, deve se preocupar em desenvolver uma vida de oração diária ou equivalente (meditação no caso do budismo) e diariamente se perguntar quais atos você fez naquele dia que ajudou alguém e o que você pode melhorar (em geral, agradecer pelo dia, pedir desculpas, etc, tudo isso é revisado também no momento da oração. Por isso ajudar os outros e orar estão relacionados).

Resumindo: oração e caridade. Isso é religião para mim. Quem não acredita em Deus e ajuda os outros sem orar, também pode fazer o exercício de refletir regularmente o que pode melhorar.

Eu acredito que Deus realmente existe e que o ato de orar não é meramente uma autossugestão, exercício motivacional ou revisão dos itens feitos no dia. Existe algo de misterioso e sagrado na religião, que nos conecta uns aos outros e a Deus, que para mim é insubstituível. Mas eu respeito a visão de quem não acredita e se você fizer o bem está tudo certo.

Não estou dizendo que escolhas alimentares e sexuais são irrelevantes. Acho que sim, elas têm implicações espirituais. Muitas religiões focam nesses pontos, então é um alerta para os considerarmos dignos de atenção.

Por outro lado, se você por acaso luta com questões referentes à alimentação ou ao sexo, não deve achar que religião não é para você! Mesmo as religiões mais “tradicionais” como cristianismo e islamismo. Há muito mais numa religião do que isso. Lembro que o Papa Francisco costumava reclamar que as pessoas se focavam demais em falar disso e de outras coisas e deixavam de lado o fundamental: ajudar os outros.

Lembro que ano passado eu li as 10 resoluções de ano novo mais comuns e em primeiro lugar estava perder peso. Disso deduzimos que a alimentação é sim uma questão importante para todos nós. Mesmo pessoas que estão no IMC correto, como eu, sempre tentam melhorar na questão alimentar, seja para perder peso, ganhar massa muscular ou melhorar a saúde.

Porém, aproximar-se de Deus ou melhorar a vida de oração não está no top 10 das resoluções de ano novo mais comuns. Felizmente, fazer trabalho voluntário está no top 10 e espero que sempre esteja.

Quando o assunto é perder peso, cada um diz uma coisa diferente: uns defendem comer uma ou duas vezes por dia somente (como os monges Theravada, embora eles não façam isso para perder peso, mas para se concentrar na meditação, sem interrupção); outros dizem para comer cinco ou seis vezes por dia em frações pequenas. Uns dizem para comer mais vegetais, outros dizem para comer mais carne, outros dizem para jejuar. Uns não comem quando anoitece (como no jainismo na Índia, embora eles também não façam isso para perder peso, mas por tradição religiosa), outros pulam o café da manhã, enfim. Algumas dessas coisas têm base científica e outras não, mas não vou falar quais têm e quais não conforme os livros que li, ou esse post ficará ainda maior do que já está.

Algumas recomendações podem servir para todos, mas outras funcionam para pessoas específicas, com base no estado de saúde e outras coisas. Também há a questão psicológica de que um método pode dar mais certo para um e não para outro, por simples hábito. Tem gente que acha muito fácil acordar cedo, outros não, e por aí vai.

Desculpa, mas eu realmente fico com raiva daqueles livros: “Acorde 5 da manhã e mude sua vida”. Nem todo mundo funciona bem de manhã. Acho um erro pensar que aquilo que funciona bem para a gente certamente irá funcionar para todos e tenta doutrinar os outros. Nas religiões existem regras, mas como se sabe que há diferenças individuais entre as pessoas, algumas coisas podem ser adaptadas.

Eu acho que ninguém precisa perder peso a não ser que realmente queira, seja pela razão que for. Se você quer perder peso não acho de forma alguma uma preocupação superficial, é totalmente legítima. Então se você quiser minha dica é: faça algo que ame tanto que até esqueça do horário de comer e de dormir. É normal que quando a gente faz algo que gostamos a gente esqueça de tudo. Embora nem sempre possamos escolher fazer o que amamos, é algo que devemos buscar (ou fazer o que Deus deseja que façamos).

Mesmo assim, como quase todos os muçulmanos, quando dá seis da tarde durante o Ramadã fico observando a linha do horizonte, mesmo que eu esteja fazendo algo que eu gosto, para ver se já anoiteceu e eu já posso comer!!

Todo mundo deverá enfrentar provações nesse mundo. Eu no momento estou lutando para conseguir aprender árabe, mas preciso de mais disciplina.

O que eu tenho a dizer é: seu corpo é belo do jeito que é. Cada um tem suas razões para suas próprias escolhas alimentares. Muita gente também usa o argumento da saúde para julgar quem fuma e quem bebe álcool, mas será que você sabe as ansiedades e questões que aquela pessoa enfrenta?

Lembro que me disseram uma vez: “Se alguém colocar um hambúrguer no pote de mendicância de um monge, ele vai ter que comer. Ele não pode escolher”.

Todos nós já enfrentamos muitas dificuldades e não necessariamente as escolhemos. Ao viciar-se em fast food, doces, cigarro, álcool, drogas, Netflix, vídeos de gatinhos (adorooo), tendemos a culpar o indivíduo, quando na verdade o modo de vida secular atual deixa um vazio dentro de nós que queremos desesperadamente preencher com alguma coisa.

Eu acho que isso que sentimos é vazio de Deus (e solidão, vazio por falta de conexão com outras pessoas). Claro, nem todos os nossos problemas têm essa explicação, mas muitos podem ter. E se direcionarmos nossa energia para o que eu considero os dois fundamentos da religião (oração e ajudar os outros, que não por acaso são dois dos cinco pilares do Islã) iremos perceber que não seremos nós que iremos, subitamente, adquirir disciplina para mudar algumas coisas em nossa vida. Deus nos dá essa disciplina.

Se você perceber, todas as outras regras religiosas existem somente para fortalecer nossa conexão com Deus (oração) e com os outros (amor, caridade, doações). Jejuns e regras alimentares, regras sexuais, regras sobre o dinheiro, não são as metas em si, mas uma ponte para te levar para esses dois caminhos. Não são a essência, mas facilitam a travessia. Se simplificarmos dessa forma, fica mais fácil entender o que é mais importante. Isso nos ajuda para sermos mais leves com nossa própria prática, sem se culpar tanto, e não julgar os outros.

E mais: o grau de amor que uma pessoa tem por Deus e pelos outros podem ser sugeridos por ações externas, como frequência de orações diárias e doações (de tempo e dinheiro), mas no fundo só Deus sabe. Não temos como medir o amor de ninguém. Ninguém tem a salvação ou condenação garantida. Esse é um segredo que só Deus conhece.

E vale lembrar: você não precisa ser “perfeito”, pois perfeito é só Deus. Se eu faço uma lista do que eu preciso melhorar, eu não boto tudo, senão não haveria folha longa o bastante. Eu me foco no essencial. Então fique em paz com a consciência de que fez o bastante e não perca seu tempo se focando em minúcias. A vida tem um tempo determinado e você precisa ser muito seletivo.

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Wanju Duli
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