Eu tenho um corpo

Wanju Duli
6 min readDec 10, 2017

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Despair, por Max Kurzweil (1867–1916)

Frequentemente nós nos esquecemos que temos corpos. Só lembramos disso quando o corpo grita: uma dor, uma doença, fome, frio, calor, sono.

Não é incomum que essas coisas aconteçam conosco. “Às vezes, eu acredito em seis coisas impossíveis antes do café da manhã” disse Alice. Eu diria que podemos sentir pelo menos seis dessas sensações até mesmo antes do café da manhã: podemos acordar com sono, com frio, com fome ou com alguma dor.

Podemos sentir vários desconfortos ao longo do dia. Porém, no mundo em que vivemos hoje temos uma série de facilidades à nossa disposição e relativa liberdade.

Um carro, um ar condicionado, um remédio, alimentos não perecíveis. Existem diversas opções hoje para nos proporcionar alívio. Por isso, caso não tenhamos uma dor crônica, doença grave ou alguma condição que nos relembre constantemente de nossos corpos, é comum esquecermos dele até que ocorra uma mordida de mosquito.

É fácil bradar com orgulho que não somos os nossos corpos, que somos almas, ou mesmo a noção budista de que não há um eu e que essa dor não me pertence. É simples filosofar sobre essas coisas quando estamos no conforto de nossa casa, com um ventilador, com a liberdade de comer quando desejarmos.

É comum romantizarmos a realidade humana. Nós romantizamos o quanto uma vida no campo pode ser bela, como Rousseau e seu bom selvagem.

A beleza de uma vida retirada perto da natureza tem lá suas verdades. Quando faço retiros em mosteiros de cidades do interior, sinto a sensação de voltar alguns séculos no tempo. O silêncio, os sons da natureza, os mistérios da vida sussurram em cada canto.

Mas não é um mar de rosas. Sente-se mais frequentemente os espinhos de experiências como essas, que são apenas brevemente entrecortados por sensações de êxtase.

A meditação resume bem isso. Falemos a verdade: até mesmo para pessoas calejadas, a experiência da meditação não é muito diferente de optar por um suplício voluntário.

Então por que as pessoas optam alegremente por essa tortura? Apenas pela recompensa de sentir as breves sensações de êxtase que podem ser obtidas? Não. Isso porque o mundo não se resume somente em diminuir a dor e aumentar o prazer.

Felicidade não é sinônimo de prazer. É a compreensão de que a dor faz parte da vida e isso não é absurdo ou errado.

Assim como nos esquecemos de nossos corpos, nós nos esquecemos da dor corporal. Na maior parte do tempo estamos lidando com dores mentais, estados da mente que nos incomodam. As diversões nos distraem, mas elas podem ser vazias.

Isso porque nos esquecemos que somos não apenas mente, mas também corpo. Se nos recordássemos disso com mais frequência a vida poderia ter mais significado e fazer mais sentido.

Geralmente nos recordamos dos nossos corpos pela dor. Ela é o maior professor.

Muitas religiões nos ensinam sobre o sentido da vida explicando sobre a natureza da dor: o papel do sofrimento no mundo. Buda disse que a vida é sofrimento. Jesus disse: “Se alguém deseja seguir-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e segue-me” (Mateus 16:24). Essa passagem sempre ressoou fortemente em mim. Há esse vídeo que gravei numa igreja no início desse ano em que é cantado esse versículo (em 0:39).

Religiões são dolorosas e talvez por isso sejam belas. Elas exigem sacrifícios.

Muitos não gostam de religiões porque buscam prazer e não dor. Pode ser que muitos confundam prazer com felicidade. Alguns dogmas e exigências ritualísticas de religiões incomodam porque arrancam nosso conforto e nos impõem provas. Não vemos sentido nelas porque buscamos alegria imediata.

Porém, uma alegria imediata pode ser instável. Uma felicidade estável e duradoura precisa de tempo para criar raízes. E muitas vezes ela é semeada com a semente da dor e não do prazer.

O prazer também faz parte da vida, mas ele não conta a história completa. Para entendermos a vida é preciso desfrutar do todo e compreender seu significado.

Meditamos para obter as sensações impressionantes dos estados alterados de consciência, mas não é para isso que a meditação serve.

A meditação serve para nos ensinar a dura realidade de que a vida é sofrida e possuímos um corpo. Experimente ficar algumas horas meditando sem se mexer e conhecerá o que é o inferno.

“Isso é a vida” você entenderá. “Mas isso passará. A vida passará. Meu corpo passará. Esse momento passará”.

“O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras jamais passarão” (Mateus 24:35). O cristianismo nos ensina a importância do corpo. Cristo encarnou para nos mostrar que é através da dor desse corpo que é compreendida a vida, a morte e as grandes realidades espirituais.

Quando sentimos dor vivemos o presente. Não vivemos o passado ou o futuro, que é o que geralmente acontece no dia a dia, quando esquecemos que temos um corpo. Quando há sofrimento há a vivência do agora. É isso que precisamos entender.

No dia a dia é fácil sermos arrogantes, orgulhosos, fazer discursos bonitos e nos sentirmos superpoderosos como Deuses.

Tente meditar seriamente. Não para se divertir, mas para aprender a sofrer. Tente fazer um retiro longo e ter disciplina, ter toda a sua liberdade arrancada.

Experiências em mosteiros me recordaram que eu tenho um corpo. Eu me senti como se vivesse na Idade Média, sem consolos, ou numa prisão. Quando medita você se recorda da prisão do seu corpo. Mas é exatamente essas correntes que podem te libertar.

Eu queria dormir e não podia. Queria comer e não podia. Às vezes eu me sentia rasgando por dentro de sono, de formas que jamais senti mesmo quando eu dormia pouquíssimo no meu dia a dia.

Fazer trabalhos braçais pesados com fome e com sono em mosteiros é sofrido. “Eu sou só um ser humano miserável” eu pensava. E fantasiava que queria sair correndo pelos portões do mosteiro para comprar a primeira comida que eu visse na minha frente. Não importava o que fosse.

Eu só queria dormir e comer. Nada me deixaria mais feliz. Eu trocaria todo o ouro do mundo por breves instantes de sono ou um pedaço de qualquer coisa comestível.

Porém, eu tinha que esperar mais umas quinze horas para comer ou dormir da próxima vez. Às vezes pouquíssimo tempo de sono, comida fria, em pouca quantidade, com o mesmo gosto. E teria que ficar lá mais alguns dias ou semanas. Não tinha escolha.

Isso tudo me ensinou o valor da liberdade. Ao mesmo tempo, o quanto a disciplina é capaz de nos libertar. Não somos mais escravos dos caprichos dos nossos corpos. Pelo menos não tanto quanto antes.

Eu sou apaixonada por religiões porque elas nos mostram que o sofrimento possui significado. Não precisamos fugir dele e sim aprender com ele.

É fácil fazer esse discurso. É quase insuportável pronunciar essas palavras no momento da dor intensa. Quando o sono nos rasga de forma mais dolorosa do que se uma faca nos atravessasse.

Mas então entendemos: “Ah, era isso”. E há consolo em meio à dor. Queremos ser como Buda, queremos ser como Cristo. “Completo em minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo” (Colossenses, 1:24).

Sim, nós temos um corpo e sentimos dor. Por que Deus nos deu um corpo de carne e por que sofremos? Porque é através do corpo que chegamos ao espírito. Na meditação, é porque temos um corpo que podemos alterar o estado de consciência. Sem ele, não haveria jornada.

Peter Kreeft disse as seguintes palavras: “Nós não somos brinquedos; somos espadas. E isso requer forja no fogo”.

Receber treinamento espiritual significa treinar o corpo para chegar ao espírito. O caminho não é todo feito de dor, mas inevitavelmente a dor faz parte da travessia. Desejamos pegar um atalho para não cruzar com o sofrimento, mas ele faz parte de estar vivo.

Para aprender a viver e a morrer é preciso aprender a sofrer. Lembramos que temos um corpo e que ele irá perecer. Nós filosofamos para obter uma mente forte como uma espada. Mas é preciso treinar o corpo: o guerreiro que irá manejá-la. De que adianta uma espada poderosa se o guerreiro é fraco e não sabe usá-la na batalha?

A vitória virá. A paz virá. Exatamente quando entendermos que o objetivo da vida pode não ser nem a vitória e nem a paz. A derrota e a guerra que travamos dentro de nós possuem um papel crucial.

No campo de guerra aprendemos a batalhar e a perder. Entendemos que somos fracos e precisamos das outras pessoas. E assim desenvolvemos a humildade para aprender a amar e ser amado.

Sem dor não precisamos pedir ajuda e receber amor. Sem que as outras pessoas sintam dor não preciso ajudá-las ou amá-las. A dor leva ao nascimento do amor. Aprendemos a confiar nas outras pessoas e em Deus. Mas isso leva tempo.

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu” (Eclesiastes 3:1).

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