Uma fé imatura

Wanju Duli
11 min readFeb 6, 2022

--

https://www.istockphoto.com/br/foto/faith-gm529988020-93331605

É quase como se crentes e não crentes vivessem numa Torre de Babel: não conseguem se comunicar. Quem tem uma fé enorme em Deus tem dificuldade para entender como alguém é capaz de não acreditar em Deus. E quem não acredita em Deus de jeito nenhum se pergunta “Deus? De que raios estão falando?”

Claro, há pessoas que estão no meio termo. Há quem acredite em Deus, mas que deixe espaço para dúvida e compreenda quem não acredita. Por outro lado, também há quem não acredite em Deus, mas até ache bonito quem acredita e consegue entender como a crença em Deus pode ajudar as pessoas.

Eu me considero uma pessoa que acredita em Deus, mas que não tem a fé tão forte como aquelas pessoas que falam de Deus com tanto amor e paixão que até dá inveja. E eu penso: “Como eu queria ter a fé assim!”. Curiosamente, algumas pessoas já me disseram essa frase e eu me sinto honrada, pois não sei que impressão eu passo. Eu não duvido que Deus exista, mas às vezes eu tenho medo de coisas como sofrimento e morte e para mim isso mostra que minha fé em Deus não é tão grande como parece. Afinal, embora o medo seja algo natural e humano, eu ainda me vejo correndo de medo de muitas coisas.

O que eu penso de pessoas que não acreditam em Deus? Acho que é um pensamento razoável, pois diferentes pessoas tiveram diferentes criações e experiências de vida. Agora mesmo estou lendo um livro chamado “Infiel” de Ayaan Hirsi Ali, que viveu em muitos países muçulmanos, sofreu muito com imposições religiosas e se tornou ateísta.

Acho totalmente compreensível que alguém se torne ateísta após ter experiências ruins ou até terríveis com religião. No Brasil é comum ouvir histórias de pessoas que tiveram experiências ruins com a igreja católica ou evangélica, principalmente se a pessoa for LGBTQIA+. Em outros países também é comum mulheres e outros grupos enfrentarem repressão em países muçulmanos, budistas ou com outras religiões.

Pessoas são diferentes e não se encaixam em quadradinhos. Há os “ateus que simpatizam com budismo”. Há quem tenha uma visão meio animista de que “Deus está em tudo” ou muitas outras possibilidades. Por que não?

Muita gente não gosta de religiões organizadas e não entende porque alguém iria querer se tornar cristão ou muçulmano, para se “aprisionar” em um monte de regrinhas chatas, como se as regras de viver em sociedade não bastassem.

Mas as pessoas sempre quiseram ser aceitas num grupo. Se você gosta de escutar rock, talvez queira um grupo de amigos com gostos parecidos. Se você gosta de videogame, busca um grupo. Finalmente, se você se interessa por religião, também busca pessoas que se interessam.

Os seus amigos que gostam de rock e videogame vão discordar em várias coisas, isso é normal. Até em religiões organizadas as pessoas discordam. Mesmo assim, é legal fazer parte de grupos como esses, trocar ideias e participar de eventos e rituais juntos. Cria um senso de identidade.

Acho que as pessoas são muito solitárias. Por isso elas buscam algo para não se sentir tão sozinhas: uma família, um companheiro, amigos, filhos, bichos de estimação, amigos na internet. Você pode até ter um tamagotchi, um bichinho virtual, sem precisar ter um bicho de verdade, para se sentir menos solitário. Ou jogar um RPG online e viver em outro mundo.

Essa ideia de outro mundo é muito interessante. Eu gosto de fazer uma analogia entre ter uma religião e jogar um RPG online. Para mim, ter uma religião é como se você assistisse aqueles animes isekai: uma pessoa é transportada para um mundo de fantasia.

É uma explicação que posso dar: se eu tenho uma nova religião, é como se eu fizesse um pacto com um ser espiritual. E eu passo a habitar um novo mundo incrível, repleto de anjos, demônios, deuses e com novas regras. E mais: há outras pessoas que seguem a mesma religião e elas realmente acreditam em todas essas loucuras! Isso não é extraordinário?

Então para mim ter uma religião é como se eu fosse transportada para um universo paralelo ou para dentro de um RPG online. É como se os seres espirituais me dessem poderes mágicos. Através da fé e outros rituais eu adquiro um poder imenso e totalmente real de encarar a dor e a morte do mundo real.

Por isso eu amo religiões. Eu vejo como elas me dão esse poder de fato. Não é uma enganação, não é mentira. A fé e a coragem que adquirimos é assustadoramente real. Eu não conheço nenhuma terapia, nenhum conselho motivacional ou científico (embora tudo isso ajude também), nada parecido com o poder assombroso que as religiões podem conferir a um ser humano.

É assim que eu vejo as coisas. Mas não se preocupe, isso é apenas como eu penso e eu não sei de tudo. Se você conhecer outras coisas mais poderosas pode me contar. Claro, há o amor: amor que sentimos uns pelos outros. Mas na minha visão o Deus das religiões apenas torna esse amor sagrado e te conta que há um amor absoluto que é fonte de todos esses outros amores.

Mas por que o título desse texto é “Uma fé imatura?”. Porque eu queria falar um pouco dos casos de pessoas muito religiosas que perdem a fé após um grande sofrimento. Ou mesmo de casos de pessoas que passam a odiar religiões após experiências ruins.

Eu respeito as experiências de cada um e não cabe a mim julgar. Mas pense o seguinte: você vê uma ou várias pessoas brancas serem racistas e logo chega à seguinte conclusão: “Todas as pessoas brancas são preconceituosas, então eu odeio todas as pessoas brancas”. Ou você escuta milhares de histórias sobre homens estupradores, mulheres que são espancadas e mortas em casa constantemente e chega à conclusão: “A maior parte dos homens são violentos e estupradores, então eu odeio homens”. Muita gente aplica esse tipo de pensamento a religião, política e muitas outras coisas, mas é um pensamento perigoso que pode levar ao preconceito.

Você ouve histórias de evangélicos roubando dinheiro dos fiéis nas suas igrejas, de grupos terroristas em países muçulmanos reprimindo mulheres e pensa: “OK, a maior parte dos religiosos são pessoas péssimas, então eu odeio religião, religião não presta, é um atraso para o mundo, só causa guerras, etc”.

Como eu costumo dizer, a maior parte das organizações de caridade do mundo são cristãs ou muçulmanas. Mais de 60% dos hospitais de países africanos são cristãos. Mas quem fala sobre isso?

E quanto a pessoas crentes que perdem a fé porque coisas ruins aconteceram a elas, é algo parecido ao Livro de Jó na Bíblia.

Existe uma visão ingênua sobre religião, uma fé imatura, de pessoas que acreditam que Deus é uma espécie de gênio da lâmpada mágica que só existe para atender nossos desejos. Então nós oramos para Deus pedindo algo. “Deus, me dê dinheiro”. Se você ganha dinheiro, agradece a Deus e sua fé aumenta. Então você passa a acreditar em Deus porque recebeu o que pediu.

Mas esse é um tipo de fé extremamente interesseira. Talvez você fale com sua família, tenha um namorado ou namorada, tenha amigos, etc, porque vai ganhar algo com isso. E aplique o mesmo pensamento para religião. Enquanto a religião e a crença em Deus te dão vantagens, você as mantém. No momento que passam a ser um incômodo, basta descartar.

Mas sabemos que a maior parte das pessoas não é tão “racional”, frio e calculista. Eu sou otimista o bastante para acreditar que a maior parte de nós mantém contato com os pais por amor, tem amigos porque gosta de estar com eles, divide a vida com outras pessoas não para tirar vantagem, mas porque aquilo envolve seu emocional também.

Alguns que acreditam que a maior parte das pessoas são interesseiras (mas ela não, é sempre “os outros” que são) podem também não acreditar em Deus, porque talvez tenham a visão pessimista de que vivemos num mundo horrível, com muito sofrimento. Deus só poderia existir se o mundo todo fosse um parquinho feliz sem sofrimento e morte.

Essa é a “fé imatura” de que eu falo: o pensamento ingênuo de que Deus só existiria se o mundo todo fosse um parquinho de diversão em que todos passeassem com balões coloridos. Como Deus permite as guerras, os assassinatos, a tortura, a desigualdade social, os terremotos?

Acho que o amadurecimento da fé é adquirir a visão oposta: Deus existe exatamente porque há dor e morte. Jesus disse que as pessoas saudáveis não precisam de médico e sim os doentes. Se o mundo já fosse perfeito, Deus não precisaria existir. Se todos fossem saudáveis, médicos para quê? Poderíamos abolir a profissão de médico se doenças fossem extintas.

Então eu não vejo sentido nenhum no famoso “argumento do mal” que costuma ser tido como o argumento mais forte para negar a existência de Deus. Há sofrimento, doença e morte, portanto Deus não existe, porque um Deus bom não permitiria essas coisas, se fosse realmente bom.

Mas Deus existe para nos ensinar como lidar com o sofrimento e morte de forma madura. Então se Deus fosse bom ele nos trataria eternamente como crianças num parquinho, retirando da nossa frente toda dor? E o objetivo da vida seria sermos crianças para sempre, viver apenas para nos divertirmos, ter prazeres, como bobos.

Aparentemente há pessoas que acreditam que o objetivo da vida é esse: ter mais e mais prazer. Então quando o parquinho vai embora, elas batem o pé como crianças e dizem: “Eu acreditava em Deus enquanto ele me dava sorvete, mas agora ele tirou meu sorvete. Deus mau, não gosto mais de você, me devolve meu sorvete!”. E choram. (tem até um livro com uma capa com um sorvete caído no chão chamado “O Deus que destrói sonhos”. Recomendo).

Eu sinceramente quero acreditar que o mundo é mais que isso. Não por conveniência, mas simplesmente porque não faz sentido ser menos que isso! Sim, há pessoas que acham que a vida não tem sentido e que depois da morte não há nada. Tudo que podemos fazer é desfrutar os prazeres de nossa existência animal. Ou, usando termos mais bonitinhos: “Vamos amar uns aos outros, respeitar as pessoas, combater desigualdades sociais e preconceitos, trazer justiça, diminuir a pobreza e depois tudo que nos resta é comer comidas gostosas juntas, pois a vida é mais ou menos isso”.

Alguns até mesmo acabam transformando política em religião, mas isso é outra história. Sem dúvida é louvável que cada um tente fazer algo para tornar o mundo um lugar melhor. Mas se já vivêssemos num mundo sem fome, sem guerras, sem desigualdades sociais, sem doença, sem morte, como seria a vida? As pessoas iriam curtir seu tempo juntas, como já fazem. E depois?

Eu não sei quanto a vocês, mas eu não vejo muito sentido nisso. De todas as visões que já vi até agora, sempre achei a visão religiosa a mais profunda, a que vai mais longe, a mais ousada, pois fala de Deus e de um mundo depois desse. Fala de um sentido espiritual para a vida, não um sentido apenas terreno. A religião torna o amor sagrado e não apenas humano.

Penso que acreditar em Deus e ter uma religião em geral nos torna mais otimistas, nos dá esperanças no mundo, na vida e nas pessoas, nos faz lidar melhor com a existência da dor e da morte. Também faz mais sentido ajudar os outros do que se fôssemos apenas corpos que logo morrerão. Somos almas!

C.S. Lewis dá o seguinte exemplo para explicar isso: você cuidaria melhor de um feto se soubesse que ele resultaria num aborto ou se soubesse que ele nascerá para uma vida após o corpo da mãe? É claro que você tomará mais cuidado com o bebê se souber que ele nascerá para outra vida. Da mesma forma, faz mais sentido que as pessoas se sintam mais motivadas a ajudar os outros (e efetivamente ajudem mais gente, a exemplo das tantas organizações de caridade no mundo com inspiração religiosa) quando você acredita que todos têm almas e viverão num mundo depois desse.

Você pode ser otimista, ter esperanças e ajudar muita gente sem acreditar em Deus? Sem dúvidas, mas terá que buscar em outras fontes a força para tanto otimismo e esperança. Há muita gente que não acredita em Deus mas acredita no amor e na amizade. Mas por que acreditar no amor, não é uma superstição? Eu penso que entender porque existe essa crença coletiva numa entidade abstrata chamada “amor” (em vez de acreditar que amor são apenas substâncias químicas no cérebro que nos enganam para perpetuarmos a espécie) é uma boa forma de explicar para ateístas porque tanta gente acredita em Deus. A lógica não é tão diferente. Você pode provar que o amor existe, que não é ilusão? Não, mas você só acredita nessa crença coletiva de tantos ao seu redor, também porque você sente o amor e ele é real o bastante para que essa crença se mantenha. O amor também te motiva a fazer coisas boas. O mesmo ocorre com a crença em Deus, que apenas potencializa essa crença no amor.

É claro que você já viu muita gente religiosa pessimista, intolerante, covarde, arrogante, egoísta, etc. Porém, há grandes chances de muitas dessas pessoas terem a tal “fé imatura” em Deus: acreditar que Deus é o gênio da lâmpada e o mundo é nosso parquinho. Claro que muitos ateístas não acreditam em Deus porque também possuem essa visão de Deus como o gênio da lâmpada no parquinho. Realmente não daria para levar a sério um Deus assim.

Eu não considero quem não acredita em Deus alguém ignorante ou meu inimigo que “precisa ser educado sobre a verdade”. Eu gosto de explicar porque acredito em Deus não para provar que isso é melhor, mas para explicar que a religião me dá um chão, me dá esperanças e menos medo da morte em situações de quase morte.

Eu vejo muita gente com problemas de saúde mental, ansiedade, depressão, etc. Não é que isso não aconteça comigo, mas quando acontece eu tenho a religião para recorrer e isso me dá um alívio imenso. Então penso que outras pessoas podem encontrar consolo com a religião para dar sentido e significado para suas vidas.

Tem gente que acha que religião é enganação, que é uma mentira, que é acreditar no Papai Noel, que é uma fuga da realidade, etc. Mas eu respeito nossos antepassados de tantas épocas e países que acreditavam em Deus. Nossos antepassados passavam por muito mais sofrimento e morte que nós. E para eles a religião era a resposta. Eles encontravam consolo em Deus e na religião para os sofrimentos mais terríveis. Até hoje a religião é a esperança dos mais pobres e dos que mais sofrem no mundo.

Então por que pessoas que vivem num conforto relativo, de classe média, de países que não estão em guerra, não podem encontrar suas respostas em algo tão poderoso como a religião? Ninguém precisa reinventar a roda e bolar um novo método genial de como lidar com o tédio, solidão e tristeza do mundo contemporâneo. Nossos antepassados enfrentaram coisas muito mais terríveis e se apoiaram em Deus. Se eles conseguiram, por que não nós?

Eu já li muitos livros de filosofia, religião, de ateístas, de cientistas e também tive várias experiências de vida. Nem de longe sofri tanto como muitos. No entanto, é isso que aprendi até aqui. E escolho compartilhar o que sei.

Não sei a que conclusões chegarei no futuro. Mas é assim que penso hoje. Estou sempre aprendendo coisas novas e com esperança de ter a mente aberta para novos aprendizados. Eu não tenho todas as respostas. Mas uma das coisas mais lindas que aprendi na minha vida foi isso, talvez após ler tantos livros escritos por autores antigos das mais variadas épocas: religiões são belas. A espiritualidade é bela. Deus existe. E tudo isso dá um sentido extraordinário a nossas vidas.

Eu me considero uma pessoa feliz, em paz comigo mesma, com esperanças, principalmente por causa da minha crença em Deus e meu amor a religiões. Sim, eu também tenho medo, eu sofro, eu me irrito, nem sempre trato os outros bem, não sou perfeita. Mas eu ouço tanta gente pessimista sobre o mundo, com muitas ansiedades e penso: “Se ao menos eu pudesse mostrar o que eu sinto, como a visão de mundo pode se transformar totalmente com a crença em Deus…!”

Mas não posso impor isso para ninguém. Cada um deve descobrir o seu caminho, tendo paciência consigo mesmo e perdoando a si mesmo. Talvez você encontre respostas diferentes das minhas e se sinta em paz com isso. Eu respeito respostas diferentes. Mas só posso falar do que conheço.

--

--

Wanju Duli
Wanju Duli

Responses (2)