Terror e espetáculo

Wanju Duli
10 min readDec 16, 2020

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http://www.rmmagazine.com/2017/06/01/insuring-against-terrorism/

Ontem eu terminei de ler o livro “Islã para leigos” por Malcolm Clark e hoje terminei de ler “Columbine” por Dave Cullen. Ambos são livros densos, de mais de 400 páginas e muito bem pesquisados. Embora tratem de temas diferentes, ambos, em algum momento, levantam a questão do terrorismo.

A primeira definição de “terrorismo” que achei no dicionário foi essa:

“Modo de impor a vontade pelo uso sistemático do terror”

Por sua vez, “terror” seria algo terrível, um estado de pavor.

Atualmente usa-se mais a expressão terrorismo para se referir ao extremismo/radicalismo islâmico. No entanto, o terrorismo está muito longe de ser exclusivo de radicais dessa religião.

No livro de Clark, o autor trata do terrorismo apenas em uma pequena parte do livro, pois essa é uma nota de rodapé envolvendo o islamismo. Evidentemente, não é assim que a questão é tratada pelo Ocidente e pela mídia, dando a falsa ideia de que muçulmanos são violentos ou apoiam ações violentas. As estatísticas nos mostram que os radicais são menos de 0,001% dos muçulmanos.

Fiquei gratamente surpresa ao encontrar a expressão “terrorismo” hoje num livro escrito por um autor americano para se referir ao que aconteceu no massacre de Columbine em 1999. Isso mostra que o termo pode ser usado com exatidão em vários outros contextos.

Qual seria o objetivo do terrorismo quando praticado por extremistas muçulmanos? Essa não é uma pergunta fácil de responder, uma vez que existem dezenas de grupos que o Ocidente define como terroristas em diferentes países, alguns deles usando meios violentos para atingir seus objetivos. Porém, os métodos e metas variam muito. Enquanto alguns grupos lutam em situações religiosas ou políticas específicas em seus países, outros, como a Al-Qaeda, declararam uma “guerra contra o Ocidente” (particularmente Estados Unidos e Israel).

Alguns muçulmanos criticam o “estilo de vida ocidental” muito centrado no dinheiro e pouco centrado em Deus. No ocidente, as pessoas estariam mais interessadas em buscar segurança, prazer e conforto, que obteriam principalmente com dinheiro. Quando é realizado um ato terrorista no país delas ou perto de onde elas vivem, o objetivo não seria necessariamente matar um grande número de pessoas, mas escolher um local simbólico que é destruído de forma teatral (por isso a preferência por bombas, em particular homens-bomba). A mensagem seria algo como: “nós não tememos a morte, pois temos Deus. Você temem a morte, pois o Deus de vocês é o dinheiro. Pois eu estou ameaçando seu conforto e sua segurança”. A partir dali, as pessoas passariam a temer essas ameaças e viver com medo.

Esse é apenas um exemplo, uma simplificação e possível interpretação. Como eu disse antes, pessoas e grupos que usam o terrorismo como arma podem ter visões e objetivos diversos. Alguns nem mesmo usam o terrorismo num contexto religioso. E normalmente eles mesmos não se definem como terroristas.

https://www.indiatoday.in/world/asia/story/blast-rocks-jalalabad-in-eastern-afghanistan-304192-2016-01-17

Esse foi o caso de Columbine: um terrorismo essencialmente sem motivos religiosos. Alguns alegam que é a religião que incita o terrorismo islâmico. Mas o que incitou os assassinos de Columbine?

Muitos inicialmente começaram a culpar filmes e jogos de videogame. O massacre de Columbine foi causado pelos adolescentes de 18 e 17 anos Eric e Dylan. Os dois gostavam muito de ler, ver filmes, jogar jogos e ouvir música. Os dois inclusive apelidaram a operação de NBK (Natural Born Killers) em referência ao filme “Assassinos por Natureza” de 1994, com roteiro de Quentin Tarantino. Eles gostavam muito de jogar Doom e Eric faz referência ao jogo em seus momentos de raiva, dizendo que queria matar “como em Doom”. Sua banda preferida era KMFDM, uma banda alemã que se pronunciou após o ataque deixando claro que não apoiava o nazismo ou os atos do assassino.

Eric também era um leitor voraz. Gostava muito de Shakespeare e também era fã de filósofos como Nietzsche e Hobbes. Porém, é curioso que ninguém tenha acusado as leituras como possível inspiração para o assassinato. Isso mostra que é mais fácil usar uma explicação simplista e acusar filmes e jogos violentos como a inspiração, como o bode expiatório.

Dylan recebeu uma educação judaica e cristã. Ele faz muitas referências ao cristianismo em seus escritos, em seus momentos de crise existencial. Ele acredita em Deus e se pergunta sobre o certo e o errado. Até mesmo chega a cogitar que os assassinatos poderiam ser moralmente corretos. Porém, ninguém acusou o cristianismo de ser uma possível inspiração para o assassinato, da mesma forma que acusam o islamismo de apoiar a violência. Inclusive, frequentar igrejas cristãs após o massacre foi algo que muitos buscaram.

Houve até mesmo uma polêmica sobre as cruzes dos assassinos. Eles mataram 13 pessoas e depois cometeram suicídio. Alguns tiveram a ideia de erguer 15 cruzes, com duas para os assassinos. Porém, essas cruzes seriam posteriormente quebradas por pessoas que não acharam de bom tom que os assassinos também recebessem cruzes.

Dylan (esquerda) e Eric (direita)

Lendo o livro “Columbine” eu descobri que antes de 1999 tiroteios em colégios não eram assim tão comuns nos Estados Unidos. Após o massacre, começaram a surgir muitos copycats. Assassinos posteriores expressaram explicitamente em vídeos sua admiração a Eric e Dylan.

E o que esses dois fizeram de diferente em relação a tiroteios anteriores que fosse digno de admiração? A diferença foi exatamente o terrorismo. O objetivo deles não era matar um grande número de pessoas. Da mesma forma que outros tipos de terroristas, eles escolheram um alvo simbólico (o colégio deles) e um horário de movimento (hora do almoço).

Mas isso não foi tudo. Assim como outros terroristas, eles escolheram matar de forma teatral. Eles usaram armas de fogo, mas somente isso não cria o efeito desejado. Eles também fizeram muitas bombas para que houvesse um clima de terror e espetáculo.

E para completar o teatro, vestiram sobretudos negros e coturnos.

Eric (esquerda) e Dylan (direita)

O objetivo deles era criar uma lenda de terror. De certa forma, eles conseguiram, embora tenha havido várias falhas no plano (as bombas não explodiram). Porém, o pesadelo ocorrido em Columbine continuaria a assombrar os moradores locais e muitos americanos.

Muitos se perguntaram o que raios esses dois queriam. Qual era o objetivo deles? Eles não queriam fazer reféns. Não estavam fazendo aquilo por vingança. Certamente não por dinheiro.

Eles só queriam matar e morrer. Os dois deixaram muitos diários e as famosas “fitas do porão” (gravações que os dois fizeram que aparentemente só serão liberadas na íntegra ou parcialmente em 2027).

Mas os dois eram diferentes. Eric era a “cabeça” por trás da ideia. Ele era psicopata e isso ficou claro nos escritos de seu diário, a exemplo desse:

Enquanto isso, Dylan tinha uma personalidade mais depressiva. Ele já pensava em cometer suicídio há alguns anos. Ou, como já foi dito: Eric queria matar e não se importava em morrer. Dylan queria morrer e não se importava em matar. Então, juntos, fizeram as duas coisas.

Eric recrutou Dylan para seu plano e cuidou de quase tudo: das armas e bombas. Até tentaram recrutar uma terceira pessoa, um colega e amigo, mas não conseguiram.

O pensamento de Eric era bastante niilista. Ele não estava com raiva de um grupo em particular e sim de toda a humanidade, que julgava como inferior, enquanto considerava a si mesmo como um deus.

Os dois achavam tudo muito engraçado, embora tenham demonstrado momentos de olhar para trás em seus diários. “Eu teria sido um fuzileiro naval do caralho” disse Eric, que já havia cogitado ingressar nas forças armadas. Já Dylan era apaixonado pela colega Harriet, mas não teve coragem de falar com ela, então declarou de forma dramática em seus escritos que só tinha duas opções: o amor ou o suicídio.

Mas eis o perigo de romantizar demais os dois. Eric expressa claramente que tinha preconceito contra mulheres (e fantasia de estuprá-las), assim como preconceito contra negros, latinos, gays e outros grupos. Dylan, por tabela, concordava com Eric. Alguns fantasiam que Eric era apenas um psicopata frio que queria matar todo mundo sem distinção. Até simpatizam com ele quando ele diz que gostava dos pais e gostava quando a mãe dele trazia doces para seu quarto quando ele parecia triste. Mas exatamente por ser psicopata Eric era muito bom em fingis emoções, mentir e enganar. E ele enganou quase todos ao seu redor.

Por que o massacre de Columbine ficou tão famoso e virou esse espetáculo? Há muitas possíveis explicações e eu tenho algumas opiniões a respeito.

Em primeiro lugar, o massacre ocorreu nos Estados Unidos, num colégio frequentado por estudantes de classe média e classe média alta, de maioria branca. Isso faz com que muita gente “se identifique” ou se interesse, pois se você é branco ou de classe média vivendo num país ocidental, provavelmente vai se identificar mais com esses estudantes que assistem filmes e jogam jogos que você conhece do que com muçulmanos de países pobres do Oriente Médio ou com negros de países africanos vítimas de guerras e violência.

No entanto, em alguns países da África e do Oriente Médio crianças e adolescentes são vítimas de tiros e bombas em colégios em quantidade tão grande que já foi banalizado. Porém, a tragédia de Columbine, após 13 mortes de estudantes brancos de classe média, chocou não somente muitos americanos como pessoas de outros países. Até o presidente dos Estados Unidos chorou com a notícia.

Claro que é justo e aceitável chorar pela morte de treze pessoas inocentes, não importa a classe social ou a cor. Mas o que transformou Eric e Dylan em “heróis” para muita gente?

Sim, eles são assassinos, mas muita gente ficou fascinada por eles. Muitos não gostam do sistema de ensino ou de obedecer a autoridade de professores. Muitos acham ridículo nossa sociedade dominada pelo dinheiro, os valentões do colégio ou os colegas que se destacam nos esportes e conquistam as garotas.

Então era como se Eric e Dylan se vingassem por tudo isso, como se zombassem desse sistema, simplesmente atirando para todo o lado e causando o caos. Como diz no livro, seria como Robin Hood, a vitória de nerds e geeks.

É verdade que Eric chegou a criticar o colégio em seus diários: o quanto o sistema de ensino os doutrinava para obedecer. Ele odiava colegas e professores, mas ele odiava muita gente.

Eric e Dylan

Se você procurar na internet, verá pessoas fazendo cosplays dos dois assassinos, verá também muitos desenhos dos dois.

Eu acredito que essa seja uma glamorização completamente equivocada dos assassinos. É curioso, pois se estivéssemos falando de dois assassinos negros e pobres, que escutam músicas que não gostamos, e que seus crimes fossem motivados por dinheiro, nós normalmente apenas nos referiríamos a eles como “criminosos” e fim de assunto. Não daríamos atenção, acharíamos que mereceram morrer ou que deviam apodrecer na cadeia.

Eric e Dylan não foram motivados por dinheiro porque vinham de família de classe média. Já tinham todo o dinheiro que precisavam para comprar roupas estilosas, comprar armas e fazer bombas. Então é simplista admirá-los porque eles não foram motivados por “coisas banais como dinheiro”. Eles não precisaram matar alguém porque estavam com fome ou porque tinha alguém doente na família.

Para quem tem dinheiro o bastante para sobreviver, é fácil julgar e acusar os “criminosos pobres, esfarrapados e sujos”. Você não vai ver ninguém na internet fazendo cosplay de um assassino negro e pobre que matou por se envolver em tráfico de drogas ou outra coisa do tipo.

Ah, mas Eric estudava alemão e lia Shakespeare! Então, de alguma forma, tentamos romantizar o que eles fizeram. Tentamos acreditar que ser psicopata, que matar pelo prazer, é algo mais nobre e interessante, que os colocaria numa categoria acima dos “mortais comuns” com sede pelo dinheiro e clamando por segurança e prazer.

É verdade que há algumas pessoas que admiram membros da Al-Qaeda e do Estado Islâmico por motivos parecidos: assim como Eric e Dylan cometeram suicídio, admirariam os homens-bomba por não temerem a morte. E por se colocarem contra o capitalismo e imperialismo ocidental.

Mas eu acredito que pensar assim é um erro. É fácil admirar todas essas pessoas, estando no conforto da nossa casa e quando nosso país não está em guerra.

Eu já assisti alguns documentários sobre o Estado Islâmico e quando você vê os membros do ISIS dando entrevista pode até simpatizar ou rir com algumas coisas. Mas quando você vê cenas de morte, cadáveres, mutilação e principalmente de tortura nesses documentários é muito diferente. Você para de rir. Aquilo não é um filme, mas a realidade. E na vida real tortura, mutilação e assassinato são repugnantes.

Eu gosto muito de ler biografias e ver documentários para perceber o quanto a realidade é diferente da ficção. Você pode, é claro, simpatizar com o lado humano de Eric e Dylan nos escritos deles e nas suas preferências. Pode ver humanidade em terroristas e assassinos (eu também já li uma biografia de bin Laden, que mostra seus altos e baixos), pois sem dúvida todos somos seres humanos. Todos temos motivos diferentes para fazer o que fazemos. Cada pessoa é complexa e é difícil definir sua complexidade com meros rótulos disso ou daquilo.

E, é claro, você pode perdoar, assim como muitas vítimas feridas que sobreviveram e parentes de vítimas de Columbine perdoaram os assassinos.

De uma perspectiva religiosa podemos dizer que todos estamos conectados como parte da humanidade. Então eu devo amar Jesus, mas também devo amar Judas? Devo amar o diabo? Jesus conversava com ladrões e prostitutas, pois, dizia ele, não são os sãos que precisam de médico e sim os doentes.

Jesus estava ao lado de dois ladrões na cruz. E levou consigo para o céu aquele que se arrependeu. Então é um desafio para nós nesse mundo aprender a amar quem é diferente de nós, até mesmo ladrões e assassinos. Mas, ao mesmo tempo, sem perder a perspectiva daquilo que acreditamos, daquilo que sabemos que é certo e errado. E daquilo que devemos fazer nesse mundo.

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Wanju Duli
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