Talvez eu seja…
Acho que é comum criticarmos nos outros defeitos que nós mesmos temos. Por muito tempo eu critiquei nos outros a tendência de ser perfeccionista e pessimista. Eu dizia coisas como: “Eu não sou perfeccionista! E sou super otimista! Considero que esses são dois segredos para uma vida feliz”.
Mas eu não podia estar mais enganada. Recentemente eu descobri que eu venho sendo mais perfeccionista do que eu gostaria ao longo da minha vida. E o meu pessimismo, que eu não achava que tinha, teria levado a isso.
Como assim? Vou explicar.
Desde a adolescência eu estava buscando algo chamado “sentido da vida”. Mas será que eu estava buscando isso porque no fundo eu achava que apenas uma vida dedicada ao “verdadeiro sentido” tinha significado?
Hoje em dia eu acho que toda vida tem sentido. Não importa se a pessoa nunca trabalhou, nunca vá trabalhar, nunca vá realizar atos tidos como “bondosos”, ou de significado para o mundo. Nada disso importa. A vida tem valor por si mesma. Eu geralmente explicava isso dizendo: “Todo mundo tem alma, portanto todos são sagrados por si sós”. Mas você nem precisa colocar a alma na equação para esclarecer isso. Toda vida tem valor, ponto.
Ninguém precisa descobrir “o sentido da vida”, se é que ele existe, para ter uma vida maravilhosa. E ninguém precisa “ajudar os outros”, seja o que isso signifique, para ter uma vida com valor.
As religiões geralmente ensinam que é o bastante sermos gentis com as pessoas ao nosso redor, ou tentarmos ser. Mas eu sempre me senti encantada com as narrativas de salvar o mundo. Eu queria ser heroína, realizar algo grandioso, atingir a iluminação, me comunicar com os anjos, ser merecedora do céu, como diria Kant, ou algo do gênero.
Felizmente eu não penso mais assim. Talvez isso se chame amadurecimento.
Se eu achasse que uma vida só tem valor se fosse uma vida desapegada, sacrificando-se pelos outros, eu estaria dizendo que a vida de todo mundo que não faz isso não tem valor. E isso não faz sentido.
As religiões costumam ensinar que você não precisa ser santo para merecer o céu. Basta fazer o bem, esforçar-se. Você não precisa ser um herói.
Mas lá estava eu lendo histórias de vidas de santos, querendo me comunicar com anjos e fazer coisas grandiosas. Até que eu descobri que eu estava fazendo isso por causa do meu perfeccionismo.
E é claro que eu estava me sentindo melhor que os outros por querer fazer o máximo dos máximos que fosse possível nesse mundo. Mas por que ser uma pessoa “medíocre” não era o bastante?
Tive que ler muito e ter muitas vivências para começar a entender o que realmente importa na vida. Mas cada um tem sua jornada e esse aprendizado nunca termina.
Eu não quero mais ser perfeccionista. Num sentido espiritual, isso significa ajudar o maior número de pessoas, ou salvar (seja em qualidade ou quantidade, enfim) de acordo com o que nossa consciência indica que seja o melhor, ou seguir a vontade de Deus.
Mas agora minha consciência diz que eu estava sendo tola em pensar assim. Eu sou apenas humana e mesmo que eu dê o meu melhor, nunca vai ser o bastante. E eu realmente quero me esforçar ao máximo para me sentir melhor que os outros? Para ser elogiada? Para agradar Deus?
Talvez eu estivesse com uma visão extremamente pessimista do mundo se eu realmente acreditava que apenas uma pessoa que se sacrifica por outra era digna de merecer o céu. Então, por segurança, eu não devia buscar nada menos que o martírio para agradar Deus.
Até pouco tempo meu sonho era fazer carreira humanitária, ir para alguma guerra do Oriente Médio ou da África, salvar algumas vidas e de preferência morrer lá. Mas depois que eu comecei a ler livros sobre o complexo do salvador branco, fiquei meio chocada de entender que a maior parte das narrativas de brancos salvadores, heroísmo ou da donzela em perigo não passavam de histórias realmente preconceituosas.
Você quer “salvar o mundo”, você quer se sentir útil, a vida comum, a vida mundana não é o bastante para você. Pois você é melhor que isso, é melhor que todos eles, é mais corajoso, não teme a morte, é desapegado, você sozinho vai salvar o mundo!
Quando me dei conta do quão ruim isso tudo soava, comecei a odiar esse tipo de coisa. Eu quero e preciso me afastar desse tipo de narrativa por um bom tempo, pois estava gerando em mim uma visão extremamente distorcida do mundo.
O mundo não se divide entre “nós” os salvadores e “eles”, os pobres fracos incapazes que precisam ser salvos. Realmente, essa é uma visão pessimista e obscura do mundo e da vida.
Não existe “nós” e “eles”. Somos todos humanos e iguais. Eu não quero mais ter nenhum problema em ter uma vida comum, tendo um trabalho comum, usando a internet normalmente. Sem ter que usar nenhuma narrativa perniciosa de que a vida atual nos corrompe, de que a internet aliena ou qualquer coisa do tipo.
A vida não é perfeita e sempre precisamos achar um inimigo para jogar toda a culpa. A velha narrativa do nós, os bondosos, e eles, os vilões.
Hoje em dia eu não quero mais “salvar o mundo”, até porque eu não teria como fazer isso sozinha. Eu quero ter uma vida normal, perto da minha família, amigos e pessoas importantes para mim. Eu quero ter um trabalho comum (sem precisar necessariamente ir para uma guerra, por exemplo), ajudar pessoas com meu trabalho, contribuir para a sociedade e ter momentos de lazer e descanso sem me sentir mal por isso (sem achar que até no meu momento de descanso eu devia estar salvando o mundo).
Talvez tudo isso que eu disse seja trivial e óbvio, mas para mim não era. Por muito tempo me senti culpada por qualquer ato que eu considerava mais “egoísta”, como me divertir sem estar aprendendo algo (estudando para melhorar na minha profissão, estudando idiomas, etc) ou sem estar ajudando pessoas diretamente.
Entenda que eu tive muito contato com religiões, como budismo, cristianismo e Islã, principalmente, então eu passei pelo menos as últimas duas décadas escutando narrativas de que eu realmente devia me sacrificar pelos outros e me colocar em último lugar. No entanto, se interpretadas de uma maneira mais equilibrada, religiões podem ser maravilhosas. O problema é quando você interpreta uma religião de forma muito extrema ou fanática.
E como saber quando você está sendo extremo ou fanático? É difícil traçar uma linha, pois não há regras. E não estou colocando a culpa em religiões, pois com certeza religiões me ajudaram muito mais do que atrapalharam ao longo da minha trajetória.
E eu tenho certeza de que no futuro poderei me envolver com religiões específicas novamente, principalmente em momentos de sofrimento, dor e morte, que é quando mais preciso de ajuda.
Talvez eu tenha sido uma pessoa muito pessimista em considerar a morte como algo tão terrível que eu sentisse a necessidade de ler centenas de livros de religião para entender o que era de fato aquele horror.
Recentemente li um livro sobre cuidados paliativos em que a autora confessa que, mesmo atendendo pacientes terminais por longos anos, isso não a preparou para a morte do pai dela. Então não adianta, mesmo que você tenha muita fé, seja muito religioso, faça trabalhos humanitários numa guerra e veja a morte o tempo todo, nada disso vai te preparar realmente para a sua própria morte e para a morte das pessoas que você ama.
Isso não significa que leituras e experiências sejam inúteis. Elas te ajudam, sem dúvidas, mas não podemos ter a ilusão de que existe uma solução fácil para lidar com as questões mais difíceis da vida.
Sim, talvez eu seja um pouco perfeccionista e pessimista até hoje. Mas eu estou tentando mudar. Eu aprendi muito e estou feliz com o que aprendi até hoje. Ao mesmo tempo, estou alegre com a perspectiva de ter uma vida “comum” também. Pois por incrível que pareça, nos últimos anos eu achava que meu destino era morrer talvez com uns 50 e poucos anos num país em guerra, ter a perna amputada e ser enterrada numa vala comum. Talvez sem ninguém saber que morri. (eu já escrevi muitos livros de ficção com guerras e em muitos deles eu estava imaginando meu futuro).
Mas agora eu entendi que querer isso é meio bobo. É como os guerreiros antigos que sonhavam em ter uma morte gloriosa na guerra. Mas agora eu entendo que não existe uma vida ou uma morte mais gloriosa que outra. Toda vida e toda morte tem valor. Talvez esse meu desejo de morrer o quanto antes numa guerra seja porque eu tinha tanto medo da morte que preferia morrer antes que a morte “natural” me alcançasse, como se eu estivesse desafiando Deus e mostrando que não temia a morte, mas a convidava.
Também já houve uma época em que eu queria ser monja e viver o “martírio branco”, que é “morrer para o mundo” (em oposição ao “martírio vermelho”, que é morrer por Deus ou para salvar uma vida). Ou seja, eu estava em busca de algum tipo de morte e de uma vida menos convencional. Por tédio, por ideal ou por outro motivo? Por que eu não queria ser “como os outros”?
Não me importo mais em ter uma vida comum e uma morte comum. Não me importo mais de ser acusada de egoísmo, de não fazer tanto para ajudar os outros, pois alguns que me acusarem disso talvez nem entendam minha vida e minha trajetória.
Talvez eu devesse me preocupar menos com o que as pessoas pensam de mim. Porque a vida é só minha, a minha vida não é um espetáculo para os outros. Quem vai ter que lidar com as consequências das minhas escolhas sou eu.
Eu tenho muitos medos, mas está tudo bem ter medo. Escolher um caminho significa abrir mão de outro, mas não necessariamente por medo. Existem diferentes forças que nos movem para fazermos escolhas. Não é totalmente a razão e nem totalmente o coração. É uma combinação disso tudo.
A vida tem aspectos assustadores e terríveis, mas também tem beleza. De certa forma, estou feliz pela forma que vivi a primeira metade da minha vida. Desisti de fazer planos e de imaginar vários futuros possíveis, pois a vida é imprevisível. Então atualmente estou aprendendo mais a viver o presente. Vendo as coisas boas. E sem a pressão de ter que fazer tudo certo.