Servir o senhor a quem jurou

Wanju Duli
9 min readDec 5, 2018

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Oath on the Rutli, 1779–1781, by Henry Fuseli

“ Queremos ser um único povo de irmãos,
não devemos nos dividir em perigo ou aflição.
Devemos ser livres, como nossos pais o foram,
e preferir a morte à escravidão.
Devemos acreditar em Deus todo poderoso
e não temer o poder dos homens”

(“Guilherme Tell”, de Friedrich Schiller, 1804)

Vós revelais um excessivo sentimento por vossa própria pessoa ou uma dependência demasiada dela, o que de modo nenhum é o mesmo que ser uma grande personalidade. Alguém pode ser uma estrela de primeira grandeza em talento, força de vontade, perseverança, mas estar tão bem centrado no sistema a que pertence, que vibra em uníssono com o conjunto sem o menor atrito e desperdício de energia. Um outro indivíduo possui os mesmos dotes superiores, talvez ainda mais belos, mas o eixo não passa exatamente pelo centro, e metade de suas energias é desbaratada em movimentos excêntricos, que acabam por debilitá-lo e perturbar o ambiente”

(“O Jogo das Contas de Vidro” por Hermann Hesse)

Desde a primeira vez que li essa passagem no livro de Hesse refleti sobre seu significado. Após ler tantas vezes esse livro, talvez eu tenha chegado a algumas possíveis interpretações.

Quando Buda disse que a vida é sofrimento, ele usou a palavra “dukkha”, que pode ser explicada como o eixo de uma roda que está fora do lugar, que não está no centro. Assim o carro ou carroça não pode andar, levando a um passeio desconfortável.

O dharmachakra é um símbolo encontrado no hinduísmo, budismo e jainismo, conhecido como roda da doutrina ou roda da lei. Também é encontrado na bandeira da Índia. “Dharma” é aquilo que está estabelecido ou firme.

Konark Sun temple in Odisha, Odisa, Orissa, India from the 1200’s AD. Photo by Chaithanya.krishnan.

No primeiro verso do Dhammapada (o “caminho do dharma”) podemos ler o seguinte:

“ Tudo o que nós somos é resultado do que nós pensamos: é baseado em nossos pensamentos, é feito de nossos pensamentos. Se um homem fala ou age com um pensamento malévolo, a dor lhe segue, como a roda segue as patas do boi que puxa a carroça”.

Aí vemos novamente o tema da roda da carroça. Portanto, os nossos pensamentos, palavras e ações que determinam se o eixo da roda do nosso carro estará alinhado no centro.

A mãe de Hermann Hesse era indiana e ele mesmo estava muito familiarizado com as religiões da Índia, tendo escrito também o livro “Siddhartha”. Sendo assim, podemos levar isso em consideração ao analisar o trecho.

No tarot existe a carta do carro (7) e da roda (10). Na história de Comte de Mellet em “Le Monde Primitf” (livro com as primeiras raízes da correspondência entre tarot e cabala), a roda representa “ o mundo em que vivemos, inconstante e que muda” e o carro “ as guerras em que somos pegos entre vícios e virtudes”.

Ou seja, Buda diz que a vida é sofrimento (uma guerra, como um carro de guerra) e que o desejo causa o sofrimento (a roda com o eixo fora do lugar, ou o mundo inconstante dentro de nós). Livre-se do desejo e livre-se do sofrimento, conclui Buda, e aponta o Caminho Óctuplo para isso, representado pela roda de oito eixos. De um modo simbólico, significa que se todas as oito vias do caminho forem equilibradas, o centro da roda volta para o lugar e o carro poderá andar da forma que deve.

Daí o “Caminho do Meio”. É claro que existem diversas formas de interpretar isso, mas essas associações me vieram à mente nesse momento. E agora, após essa reflexão sobre rodas e carros, podemos pensar sobre o que esse trecho do livro tem a ver conosco.

Elijah Taken Up in a Chariot of Fire, Giuseppe Angeli, circa 1740 /1755

“Pois eis que o Senhor virá com fogo; e as suas carruagens como um redemoinho; para tornar a sua ira em furor, e a sua repreensão em labaredas de fogo”.

(Isaías 66:15)

“De repente, enquanto caminhavam e conversavam, apareceu uma carruagem de fogo, puxada por cavalos de fogo, que os separou, e Elias foi levado aos céus num redemoinho”.

(2 Reis 2:11)

Por que as rodas da carruagem que aguarda Elias estão com seu eixo alinhado? Porque é o carro de Deus. Há um trecho em que Elias correu mais rápido que a carruagem de Ahab. Você pode tentar centrar seu eixo através do seu próprio poder ou confiar no poder de Deus.

O que eu quero dizer com isso é que, como disse Hesse, “alguém pode ser uma estrela de primeira grandeza em talento, força de vontade, perseverança”. No entanto, talvez você não esteja centrado no sistema a que pertence. Você não vibra em uníssono com o conjunto, há muito atrito e desperdício de energia.

Podemos fazer essa reflexão tanto para o mundo que está dentro de nós como fora de nós. É difícil lidar com a guerra dentro de nós. Sentimos dores físicas, porque temos um corpo, e também dores mentais. Já é difícil o bastante lidar com a guerra em nosso interior e ainda temos que lidar com a guerra lá fora, ao nos conectarmos com um mundo em que também há sofrimentos.

Você precisará de rodas muito poderosas para seu carro. O mais importante não é ter uma carruagem potente, mas rodas eficientes, que possam cumprir a finalidade a que foram designadas: fazer o carro andar, atravessando o caminho acidentado diante de si, cheio de pedras.

Para isso é necessário estar centrado em nosso próprio corpo, em harmonia com ele, inclusive na aceitação de suas dores. E em uníssono com o conjunto. Tanto o conjunto de ossos, músculos e sangue, como o conjunto de seres humanos. Se há atrito com o que ocorre em nosso interior ou temos atrito com os outros, pode haver muito desperdício de energia.

Dessa forma, o carro da nossa vida não anda, não sai do lugar ou fica dando voltas.

O Juramento dos Horácios, Jacques-Louis David, 1784.

Essa é a primeira parte da minha reflexão. Na segunda parte, existe essa passagem do livro que segue logo após a primeira:

“Quem quer servir deve servir o senhor a quem jurou, para o que der e vier e não com a intenção secreta de trocar de senhor, tão logo encontre um mais majestoso. O servidor arvora-se assim em juiz do seu senhor e vós fazeis exatamente a mesma coisa. Quereis sempre servir apenas ao maior senhor e tendes a candura de decidir vós mesmo sobre a categoria dos senhores, entre os quais escolheis”

Esse é o ponto mais importante que eu queria chegar, após a reflexão sobre a roda e o carro.

Na vida podemos adorar muitos Deuses, ou ídolos: o Deus dinheiro, o Deus fama, o Deus beleza, o Deus poder, o Deus status, dentre muitos outros Deuses populares e com muitos seguidores nos dias de hoje, que realizam uma série de rituais e oferendas em nome deles.

O tema do monoteísmo na Bíblia possui tanto um significado literal quanto simbólico. Existe uma insistência para que se sirva ao maior dos senhores (o Deus de Israel) e não Deuses menores.

Em “O Jogo das Contas de Vidro”, uma obra da maturidade do autor, é dito que Hermann Hesse se reconciliou com o cristianismo no qual foi educado em sua infância e adolescência. Então, naturalmente a reflexão sobre a lealdade a um senhor retorna.

Devemos acreditar em Deus todo poderoso e não temer o poder dos homens” é dito por Friedrich Schiller em sua versão do “Juramento de Rütli”. Isto é, também não precisamos temer os deuses criados pelos homens. Somente assim seremos livres “como nossos pais o foram”.

O que acontece com uma pessoa que tem o eixo fora do lugar? Ela quer cumprir sua missão no mundo, seguir o seu caminho, mas que missão e caminho é esse? Talvez ela esteja confusa, decida que não há caminho ou missão pronta e que irá, sozinho, moldar seu destino. Tudo isso é muito belo, mas qual é o próximo passo?

Tanto Buda como Jesus insistem para confiarmos nos conselhos daqueles que vieram antes. O budismo Theravada, por exemplo, é o “caminho dos anciãos” e significa que devemos confiar na tradição e no testemunho daqueles que seguiram esse caminho antes de nós e asseguraram que tiveram sucesso. Nós não estamos sozinhos na caminhada.

Da mesma forma, a Bíblia é uma história das tragédias e vitórias da humanidade. Ela explica os erros e acertos de várias pessoas que vieram antes. Aqueles que foram vitoriosos fizeram uma única coisa: adoraram o Senhor acima de qualquer outro Deus, não seguindo ídolos ou Deuses menores. Quando você segue um Deus menor talvez peça favores pequenos como um sucesso aqui e ali para alimentar certos caprichos, mas isso pode ser energia desperdiçada que deveria ser direcionada ao que há de principal em sua vida, ao seu papel no mundo.

De forma análoga, Buda diz a mesma coisa em outras palavras. Confie nas Três Joias: O Buda, o Dharma e a Sangha. Ou seja, o testemunho dos iluminados, os ensinamentos das escrituras e a comunidade de monges ou daqueles que já entraram no caminho, estão no barco, pegaram a correnteza. De resto, não é preciso se apegar, pois podem ser distrações.

Buddhist symbol representing the Three Jewels (Buddha, Dharma, Sangha), Christopher J. Fynn

Em nossa vida muitas vezes estamos perdidos pois não sabemos qual senhor seguir. Será que devo jurar lealdade ao Deus Dinheiro? No momento em que eu decido que esse é o Senhor mais importante, pode ser que eu direcione toda minha vida pessoal e profissional visando adorá-lo. Mas talvez, no meio do caminho, eu fique encantado com outro Deus que me parece mais poderoso (digamos, o Deus Fama) e subitamente eu decido que a fama ou status são mais importantes que esse outro Deus.

Nesse momento, eu mudo todo o rumo da minha vida, termino um relacionamento, mudo de profissão, porque o Deus fama parece melhor. Até que, lá pelo meio do caminho, decido que o Deus Poder é o maior de todos. Então, como se não fosse nada, paro de adorar o Deus anterior e adoro esse, novamente levando minha carruagem nesse novo rumo. Mas para isso preciso arrumar as rodas tudo de novo, para que meu carro seja capaz de correr nessa nova direção.

Às vezes temos medo de mudar. Quando percebemos que estamos adorando o senhor errado, achamos que já é tarde, que dá muito trabalho ou levaria muito tempo, energia e sofrimento para adorar o novo senhor, e deixamos por isso mesmo. Ou isso, ou talvez mudemos de ideia demais e estamos sempre como baratas tontas adorando Deuses diferentes e começando tudo do zero.

É esse o “desperdício de energia” de que fala o texto. Pode ser que uma pessoa seja inteligente, habilidosa, talentosa, mas não saiba o que quer ou o que é certo ou bom fazer. Então ela não está em uníssono nem com ela mesma e nem com o ambiente ou as pessoas ao seu redor. E sofre.

Por isso a Bíblia nos avisa para servir, acima de tudo, o maior dos Senhores. Assim não vamos errar. O maior senhor tem muitos nomes, como amor e sabedoria, que no fundo são a mesma coisa, pois um apoia o outro. Onde está um está outro, “como a roda segue as patas do boi que puxa a carroça” diz o Dhammapada.

Para evitar esse atrito e perda de energia é necessário confiar no caminho daqueles que vieram antes de nós. Mas cada um possui um papel diferente na teia da vida. Você deverá descobrir o seu de alguma forma. Orações para Deus e para seu anjo, ou meditações, por exemplo, são algumas maneiras de realizar essa travessia. Outras são leituras espirituais, conversas e vivências.

Mas isso é só o começo. É muito fácil confundir o que eu quero fazer e o que devo fazer com o que a sociedade e outras pessoas ao meu redor querem que eu faça. Por isso, é necessário muita clareza, mas isso leva tempo e amadurecimento. Devemos ter paciência conosco e com os conselhos dos outros. É uma longa jornada, mas que não chega a uma conclusão em vida. Ela prossegue ao longo de toda a vida, mas passa por etapas marcantes.

Podemos vagar por um tempo. É importante, é necessário. Mas eventualmente devemos assumir certas responsabilidades, nem que seja com nosso coração e com nossa consciência. Se eu entendi e acredito que algo deve ser feito, um dia deverá ser feito. Só assim seremos honestos conosco, diante de Deus e do mundo.

“Servir o senhor a quem jurou” significa isso: em algum momento eu tomar decisões e assumir a responsabilidade por elas. Em certo momento, seguir um caminho. E, uma vez que o caminho certo a seguir esteja claro em nossa mente e em nosso coração, finalmente podemos alinhar o eixo de nossas rodas. Assim não perderemos tempo olhando para trás ou para os lados, mas apenas seguiremos em frente servindo esse senhor a quem juramos lealdade.

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