Ser cristão ou ser muçulmano?

Wanju Duli
12 min readJul 9, 2020

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https://findingjesusamongmuslims.com/2019/10/21/st-francis-and-the-sultan-living-their-legacy-today/

No ano passado, os cristãos comemoraram os 800 anos do aniversário do encontro entre São Francisco de Assis e o sultão Al-Malik Al-Kamil do Egito, ocorrido em 1219.

Foi na época da quinta Cruzada que São Francisco chegou na Palestina para visitar o sultão do Egito. Os dois homens respeitaram a fé do outro e se impressionaram um com o outro de forma excepcional. Esse encontro tornou-se célebre. Muitas pinturas o retratam.

Até hoje, graças a esse encontro, a presença franciscana na Terra Santa é muito bem aceita. Quando eu visitei alguns locais sagrados da Terra Santa no ano passado, fiquei muito surpresa ao constatar o grande número de frades franciscanos que vi, inclusive no Santo Sepulcro. Lembro que na época eu não entendi isso e pensei: “Por que será que os franciscanos estão dominando a Terra Santa?”. E aí está uma bela explicação. Esse encontro foi tão marcante que definiu o destino de oito séculos, numa terra que é conhecida por grandes desentendimentos religiosos.

Você não precisa necessariamente se converter a outra religião ou tentar convencer outra pessoa a se converter, como prova de que você respeita e admira determinada fé.

Ainda assim, desde a Antiguidade vemos histórias de pessoas que amaram demais duas religiões e ficaram na dúvida. Seja na Índia, na China ou na Terra Santa, sempre houve pessoas que decidiram se converter a uma religião diferente daquela que tinham. Ou que, em grande parte da vida, nutriram um amor muito forte a uma religião ou cultura diferente da sua, que beirou a conversão.

Uma história que consigo pensar agora de um cristão que amou demais a cultura chinesa é a de Matteo Ricci, jesuíta italiano do século XVI. Ele foi para a China com a intenção de converter os chineses. De fato, ele ensinou o cristianismo para eles e permaneceu cristão. Mas fica muito claro o seu amor à cultura e às religiões dos chineses nessa passagem do livro “A Grande Aventura dos Jesuítas no Brasil” de Tiago Cordeiro:

“O jesuíta [Matteo Ricci] se vestia como chinês, alimentava-se como chinês, falava como chinês e aceitava uma série de preceitos dos chineses, sobretudo o pensamento de Confúcio e o culto aos ancestrais. De dentro desta civilização, respeitando suas características, inseria sem pressa preceitos cristãos, inclusive entre os pensadores com quem interagia em conversas em chinês”

Eis uma imagem do jesuíta:

https://www.wikiwand.com/pt/Matteo_Ricci

Estou quase acabando de ler o livro “A Segunda Montanha” de David Brooks. O autor vem de uma família judia que se mudou para os Estados Unidos. Desde criança ele conviveu com as tradições judaicas de sua família e também com a educação dos colégios cristãos americanos nos quais estudou. Por isso, hoje ele não sabe se considera a si mesmo “o judeu mais cristão que já houve” ou “o cristão mais judeu que já houve”.

Ele simplesmente amou tanto as duas religiões que não era capaz de decidir por apenas uma.

No meu caso, não foi muito difícil optar por me tornar cristã na época que decidi começar a seguir uma religião seriamente. Afinal, eu não tinha nenhuma outra religião naqueles tempos. Então eu não precisava abrir mão de nada.

Uma das coisas que mais me chamou atenção no cristianismo foi a caridade, o amor. Eu senti que realmente queria fazer parte formalmente de uma comunidade tão grande, antiga e respeitável que se organizava pelo mundo todo para fazer tantas doações aos pobres e que fundou tantos colégios, universidades e hospitais para os mais necessitados.

O próprio Jesus foi pobre e essa é uma religião que desde sua origem está voltada para os mais pobres. A caridade cristã e a forma com que eles largavam suas riquezas e dividiam tudo foi algo que impressionou até os antigos gregos e romanos.

Infelizmente, desde que a religião cristã foi institucionalizada, ela passou de uma religião de pobres, mártires e perseguidos para uma religião dominante. Desde então, até os dias de hoje, há muitos cristãos que estão mais preocupados com dinheiro e poder. É verdade que até hoje há muitos cristãos que ainda vivem os antigos ideais, principalmente em mosteiros ou cidades do interior. Ainda assim, não são tantos.

Eu já sou formalmente cristã (crismada) há sete anos. Nos últimos anos fiz vários retiros em mosteiros e pude observar de perto que essa ideia da pobreza cristã ainda sobrevive até hoje. Mas também pude ver que infelizmente, até mesmo na Terra Santa, muitos lugares sagrados viraram meros locais turísticos.

Às vezes eu tenho a triste impressão de que a religião cristã já não parece tão viva. Na Índia, por exemplo, o hinduísmo parece vivo em todos os lugares, mesmo nos pontos turísticos.

https://findingjesusamongmuslims.com/2019/10/21/st-francis-and-the-sultan-living-their-legacy-today/

Nos mosteiros em que fiz retiros eu conheci incontáveis pessoas incríveis, que realmente vivem o ideal cristão. Já li muitas histórias de vidas de santos nos livros, mas é sempre impressionante encontrar verdadeiros santos vivos na sua frente.

Eu poderia falar de várias pessoas extraordinárias que encontrei e de tudo que elas fizeram. Mas no momento falarei apenas de uma pessoa.

Eu fiquei impressionada com esse padre argentino que se parece fisicamente com Santo Inácio de Loyola. Ele tem no pulso duas tatuagens: uma que ele fez no Egito e outra que ele fez no Iraque. São as tatuagens que os cristãos fazem no caso de serem perseguidos por muçulmanos radicais que queiram matá-los, a não ser que eles se convertam. A tatuagem é um símbolo de que eles aceitam o martírio em nome da religião.

Mas não é apenas um símbolo. O cristão a coloca em si porque mesmo que mentisse que não é cristão por medo da morte, quando procurarem em seu corpo o símbolo estará lá para que ele seja martirizado.

Esse padre argentino falou sobre o quão forte é a fé dos cristãos nesses países em que eles são perseguidos. Como dizem, “o sangue dos mártires é a semente de novos cristãos”.

Um ano depois desse retiro, conheci um padre do Iraque que foi perseguido e quase morto. O amigo dele, também padre, foi morto por ser cristão e ele costurou em suas vestes sacerdotais o nome desse padre, para jamais esquecê-lo.

Esse é um cristianismo vivo. A fé dessas pessoas é forte.

http://www.asianews.it/news-en/Coptic-martyrs-beheaded-in-Libya,-source-of-faith-and-miracles-46269.html

Essa é uma foto famosa dos cristãos coptas (egípcios) que foram decapitados por jihadistas do Estado Islâmico na Líbia em 2015. Lembro que eu soube disso num dos retiros que fiz num mosteiro, pois foi uma situação muito comentada na época.

O caso ficou tão famoso que até fizeram uma pintura retratando os 21 mártires. Cada um deles deu a vida em nome da fé, como o próprio Cristo, e por isso são mostrados como Jesus:

https://www.tmatt.net/columns/2019/2/11/modern-day-coptic-martyrs-the-old-world-faith-of-the-21-executed-in-libya

Observe que na pintura há um homem negro no meio. Ele foi retratado de forma única porque, diferente dos outros vinte homens que eram cristãos, esse era um muçulmano, embora a fé muçulmana dele não fosse a mesma dos jihadistas.

Segundo conta a história, os vinte cristãos morreram sem renunciar a fé, um após o outro. Por último, chegou a vez do muçulmano. Esse homem não precisava morrer, porque ele já era muçulmano. Porém, ele disse: “Depois de testemunhar o exemplo de fé dos meus vinte companheiros cristãos, quero morrer com eles” e também foi decapitado.

Essa é uma história tão impressionante e tão digna quanto o encontro de São Francisco de Assis com o sultão. É a história de pessoas com fé diferente que respeitam uns aos outros.

Toda minha formação cristã nos últimos sete anos esteve repleta de histórias como essa. Essas são coisas que se contam com frequência em mosteiros, pois somos inspirados pela fé dos outros, para aumentar nossa própria fé.

A palavra “martírio” vem do grego e significa “testemunha”. Eu descobri isso quando tive lições de grego bíblico num mosteiro e li uma passagem do Novo Testamento. O mais interessante é que o Novo Testamento em grego está repleto dessa palavra. Jesus queria que tivéssemos fé não necessariamente porque vimos um grande milagre, mas pelo testemunho de vida uns dos outros.

“Não existe maior amor do que este: de alguém dar a própria vida por causa dos seus amigos” (João 15:13).

Ser testemunha é ser mártir e ser mártir é ser testemunha. Esse é um conceito que também existe no islamismo.

https://www.lastampa.it/vatican-insider/en/2017/10/04/news/st-francis-the-sultan-and-13th-century-fake-news-1.34396850

Como eu disse anteriormente, o cristianismo começou como uma religião de pobres, mártires e perseguidos. Cristãos ainda são perseguidos e martirizados até hoje em vários países. A cada ano esse site publica a lista dos 50 países em que os cristãos correm maior risco de perseguição, tortura e morte. Esses são os onze primeiros da lista atualmente, que estão em vermelho porque a perseguição foi classificada como “extrema”:

1- Coreia do Norte

2- Afeganistão

3- Somália

4- Líbia

5- Paquistão

6- Eritreia

7- Sudão

8- Iêmen

9- Irã

10- Índia

11- Síria

É verdade que existem países majoritariamente cristãos que também perseguem, torturam e matam pessoas de outras religiões, ateus, gays, etc. Meu ponto aqui não é mostrar que cristãos são mais perseguidos que outros. Na verdade, muçulmanos também são muito perseguidos e sofrem extremo preconceito em muitos lugares.

Mesmo sendo considerada a religião mais perseguida (talvez porque os cristãos estão em maior número), os cristãos hoje são muito menos perseguidos do que antigamente. Não há como comparar um cristão vivendo em Roma no século IV com um cristão vivendo atualmente num país democrático ocidental majoritariamente cristão.

Muitos cristãos hoje levam vidas confortáveis e acomodadas, então talvez a fé deles tenha esfriado. Por outro lado, os muçulmanos são muito mais pobres, e, dentre os refugiados, são os que estão em maior número.

Portanto, pode-se dizer que o islamismo é a nova religião pobre e perseguida da atualidade. É a religião dos novos mártires, em que a fé está “quente”, viva e pulsante.

Muita gente no passado quis se tornar cristão porque se sentiu inspirado pelo exemplo de caridade e pobreza dos cristãos antigos. Porém, atualmente há muito mais pessoas se convertendo ao islamismo do que ao cristianismo. Por quê?

Não é difícil de responder essa pergunta. Se você busca hoje uma religião de pobreza e caridade, essa religião é o islamismo. O número de terroristas ou muçulmanos que defendem a violência é mínimo (menos de 0,01%, segundo algumas estimativas) comparado com o grande número de muçulmanos que fazem doações de caridade e ajudam diretamente seus irmãos.

Eu busquei o cristianismo sete anos atrás inspirada por seu exemplo de caridade. Porém, se a nova religião da caridade e da pobreza de hoje é o islamismo, isso significa que devo me tornar muçulmana?

https://www.npr.org/templates/story/story.php?storyId=129407295

Essa é uma pergunta muito delicada, pois envolve diversas questões.

Em primeiro lugar, os teólogos nos dizem que a única boa razão, ou a melhor razão, para escolher uma religião é se decidimos que ela é a verdade.

O que isso significa? Precisamos analisar tudo o que o cristianismo e o islamismo nos dizem e decidir qual das duas representa a verdade.

Por muito tempo eu concordei com esse argumento, mas não hoje em dia. Ele faz algum sentido, mas não todo o sentido.

Em primeiro lugar, as “religiões do Livro” (judaísmo, cristianismo e islamismo) são muito parecidas. As três creem num Deus supremo, na importância da oração, nas boas ações.

O ser humano tem condições de investigar qual das três religiões ele acha ser mais próximo da verdade (no caso de analisarmos apenas essas três). No entanto, os teólogos são muito arrogantes sem perceber quando declaram, talvez sem se dar conta, que é necessário praticamente tornar-se um teólogo muito eminente e dedicar pelo menos uns dez anos ao estudo da teologia para ter capacidade de decidir por uma religião.

Isso não é realista. Esse é um pensamento elitista. Em suma: somente um teólogo pode ser salvo. Somente os teólogos que vivem numa Torre de Marfim e possuem tempo livre sobrando para se dedicar a teologia, porque tem outras pessoas plantando o alimento deles e lhes dando condições de vida. É como dizer que só pode ser salvo quem tem tempo livre para viver meditando numa caverna.

Portanto, eu rejeito a afirmação de que só podemos escolher uma religião quando concluirmos racionalmente que ela é verdadeira. Essa frase só está correta se houver outras formas de decidir sobre a verdade de uma religião sem usar argumentos lógicos e teológicos.

Se uma pessoa dá um exemplo, é testemunha, se martiriza em nome da sua fé, esse é um bom indicativo de que aquela religião é verdadeira. Eu diria que é um indicativo muito mais forte do que qualquer argumento lógico.

Como muitos cristãos já morreram em nome de sua fé, para mim é lógico que a religião cristã é uma boa candidata para religião verdadeira.

No entanto, apenas morrer em nome da fé não basta. Também é preciso viver em nome dela. E nos dias de hoje há muitos cristãos vivendo na riqueza e no conforto. Isso diminui minha fé.

Quando vejo tantos muçulmanos vivendo de forma simples (evidentemente, nem todos são pobres por opção) e dando a vida pelos outros, podemos dizer: esse é um verdadeiro testemunho de fé.

https://www.ssnationaldialogue.org/waving-flag-of-south-sudan/

Mas será?

Em muitos países, o cristianismo é a religião dominante e os muçulmanos sofrem extremo preconceito, como nos Estados Unidos.

Contudo, também há países em que o islamismo é a religião dominante e que esmaga minorias religiosas. Esse é o caso do Sudão, que passou recentemente por uma violenta guerra civil. O norte do Sudão era majoritariamente muçulmano e estava impondo o ensino de árabe nas escolas e a cultura muçulmana para o sul, que tinha religiões animistas. Com a guerra civil, surgiu o Sudão do Sul em 2011, a mais nova nação do mundo.

Isso tudo me fez recordar de um trecho do meu livro favorito: “O Jogo das Contas de Vidro” de Hermann Hesse, que também é um autor que se viu dividido entre seu amor pelo cristianismo e o budismo.

Em certo trecho do livro, o protagonista pensa em fazer uma mudança radical em sua vida. Após décadas de comprometimento, descobriu um ideal maior ao qual se dedicar. Mas o seu companheiro o alerta a respeito da importância da fidelidade.

Suas palavras me marcaram muito, desde a primeira vez que as li. É preciso ter fidelidade ao senhor ao qual você serve. Não podemos largar o nosso senhor assim que descobrimos um segundo senhor mais poderoso. Não é questão de descobrirmos um senhor maior após o primeiro. É questão de fidelidade.

Então se já temos fidelidade a uma religião devemos mantê-la até o fim? Mesmo se depois acharmos uma religião em que há um ideal maior de pobreza e sacrifício? Essa religião pode ser assim agora, mas e quando houver fartura? Os muçulmanos não se acomodarão como os cristãos? Alguns já não se acomodaram? Não é esse o destino de todas as religiões?

Hoje em dia o islamismo se tornou um símbolo de resistência à cultura ocidental do consumismo. Antes o cristianismo também era uma resistência, mas para alguns passou a ser uma confirmação, o que é algo triste. Alguns, como Malcolm X, inclusive escolheram o islamismo como religião por considerarem, assim como muitos, o cristianismo como uma religião de brancos. Então hoje o cristianismo não representa apenas a riqueza dos privilegiados, mas também a brancura. O islamismo não seria, portanto, o símbolo de uma religião de resistência? Uma religião para os pobres, negros e marginalizados? Uma fé viva.

Ainda não tenho a resposta para isso. Mas tenho pensado em todas essas coisas: em como fazemos escolhas porque temos testemunhas poderosas ao nosso redor.

Depois de 800 anos do diálogo de São Francisco com o sultão muçulmano, nem o cristianismo e nem o islamismo são hoje as religiões que eram naquela época. Elas mudaram. Por isso, a questão não é se vale a pena ter uma religião ou outra baseando-nos exclusivamente nos cristãos e muçulmanos do passado, mas nos religiosos do presente. Afinal, ter uma religião não é apenas ter um título. É vivê-la. E não se vive nenhuma religião sozinho, mas dentro de uma comunidade. Resta-nos saber se a comunidade atual desses religiosos nos inspira.

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Wanju Duli
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