Resenha de “O Dilema das Redes”

Wanju Duli
7 min readOct 2, 2020

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Escrevi num post do Facebook a minha opinião sobre o documentário da Netflix “O Dilema das Redes”. Inicialmente eu não pretendia postar aqui, mas talvez seja interessante para quem não tenha Facebook:

Terminei de assistir “O Dilema das Redes” na Netflix. Enquanto algumas pessoas deletaram suas redes sociais depois de assistir, outras disseram que o documentário “disse apenas o óbvio”. Vou dar minha opinião.

Acho que o documentário teve pontos positivos e negativos. Como muitas pessoas que viram, eu já sabia da maior parte daquilo que foi dito. Mesmo assim, achei interessante acompanhar os argumentos e o raciocínio. E principalmente os exemplos.

Sobre o filmezinho, a historinha paralela que eles contaram junto com o documentário, até achei legal, embora tenha deixado a coisa toda muito dramática, haha.

Pelo menos no documentário eles dão alguns exemplos de aspectos positivos do uso das redes sociais e da internet. Só achei uma pena que eles tenham mencionado isso apenas brevemente.

Sim, as redes sociais, o Google e a internet em geral buscam lucro, espalham fake news, podem contribuir para nos alienar, etc. Mas essas mesmas redes sociais e internet também são o meio mais rápido de nos dar acesso a diferentes fontes de informações.

Tanto que no próprio documentário é dito que uma das maneiras mais efetivas de melhorar o problema do mau uso das redes sociais é através da própria internet. Eles reforçam que o problema não é a tecnologia em si, que trouxe muitas melhorias para a sociedade.

O propósito do documentário não é demonizar a tecnologia, mas nos deixar cientes dos problemas, tentarmos buscar uma solução juntos e nos incentivar a usar com cautela as redes sociais. Eu concordo principalmente em ter cautela em relação a crianças e adolescentes.

Eu não sei se diminuir o uso ou deletar as redes sociais seria a solução ou a melhor escolha para que adultos não sejam “manipulados”. Cada um deve se perguntar se isso irá trazer benefícios. Pelo que sei, a maior parte das pessoas deleta as redes sociais ou diminui o uso para ter mais disciplina ou sobrar mais tempo para estudar, trabalhar ou passar mais tempo com família e amigos na vida real. Não para “não ser manipulado”. “Ser manipulado” você já é só de sair na rua, passear no shopping, ver outdoors com propagandas, etc. Isso já existia muito antes da internet: propagandas na TV, rádio, etc. E nos séculos anteriores propagandas em revistas, jornais. Isso sempre existiu.

Então acho ilusão e um pensamento meio ingênuo achar que essa manipulação e fake news surgiram com a internet e com as redes sociais. Só se você se isolar numa montanha ou numa floresta você vai se livrar disso.

Aliás, eu acho que sem a existência das redes sociais, internet, TV, etc, a probabilidade de termos mais fake news e sermos ainda mais manipulados é muito maior. Vou dar um exemplo.

No documentário eles citaram o exemplo de Mianmar. As fake news através do Facebook levaram a ainda mais ódio à minoria muçulmana rohingya e a ainda mais violência.

Mas não é o Facebook que principalmente espalha fake news. É o bloqueio que governos de alguns países fazem à internet, o que deixa as pessoas praticamente sem notícias e sem opções de onde procurar notícias. Dessa forma, qualquer boato pode chegar a elas sem ser possível verificar. Pelo menos com internet você tem a opção de checar duas ou três diferentes fontes de informação, em vez de ter apenas uma fonte ou nenhuma, como ocorre em alguns lugares.

Uma vez li um livro muito bom sobre a guerra de Srebrenica, genocídio que ocorreu em 1995, considerado o pior genocídio na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Pelo que eu li, havia pouquíssimo acesso a informação na Bósnia e Herzegovina. E uma das técnicas que eles usavam para que um lado da guerra ficasse com raiva do outro era espalhar fake news pelo rádio. Diziam que o inimigo matou um monte de gente, as pessoas ficavam com raiva, acreditavam, não tinham como verificar a informação, e matavam em retaliação.

Então eu pergunto, será que deletar redes sociais, não usar internet e não ler jornais e não ver notícias para não ser manipulado é melhor? Então vamos simplesmente não buscar notícia nenhuma? Acho que o melhor é verificar notícias em diferentes fontes, que sejam de preferência confiáveis.

Eu uso bastante o Facebook e o Twitter para acompanhar as notícias da Cruz Vermelha Internacional e dos Médicos Sem Fronteiras, para saber o que está acontecendo agora nas mais de cem guerras que estão ocorrendo nesse instante no mundo ou em países muito pobres. Também uso redes sociais para auxiliar no aprendizado de idiomas.

Na Amazon Prime Video vi um documentário sobre a Síria (City of Ghosts) mostrando como as redes sociais, Youtube e principalmente Facebook foram importantes para que algumas organizações pudessem denunciar os horrores da guerra na Síria. Li num livro que até hoje há pessoas espalhando que a guerra “nem está tão ruim assim” e que é mentira que estão prendendo e torturando pessoas. O Estado Islâmico removeu as antenas das casas em cidades da Síria para impedir que as notícias verdadeiras se espalhem.

Ou seja, diminuir acesso a redes sociais e a internet (ou bloqueá-las) seria um grande golpe contra a democracia, que pode deixar pessoas de muitos lugares sem informação. Então eu realmente não entendo o argumento de que apagar redes sociais ou reduzir a busca de notícias na internet pode ser bom, pelo medo das fake news. Sim, o preço de buscar notícias é receber algumas notícias falsas ali no meio. Hoje em dia mais pessoas morrem por erros médicos do que pela soma de mortes por câncer e acidentes de trânsito combinados. Mas a maior parte das pessoas não defende que as pessoas deixem de ir no médico por isso.

Não usar redes sociais e não ver notícias pode ser bom para sua saúde mental, claro. Pode ser bom para você, individualmente, limitar o tempo na internet, ter tempo para fazer outras coisas.

Mas não adianta, seja na internet, jornais ou qualquer outro lugar, as fake news sempre vão existir.

Eu entendi o ponto do documentário. Eles não são contra as redes sociais, apenas apontam que a forma como elas funcionam atualmente nem sempre é bom. Mas eu ainda acho que usar as redes sociais tentando espalhar notícias de boas fontes é melhor do que simplesmente deletá-las. Claro, não tem nenhum problema apagar o Facebook. Eu também já apaguei algumas vezes, quando sentia que isso ia me dar mais tempo pra fazer outras coisas. Mas meu motivo nunca foi apagar para não ser manipulada.

Sim, eu também sou manipulada pelos livros que eu leio. Minha solução é não ler livros? Não, é ler dezenas, centenas de livros, com os mais diferentes tipos de autores, para ver diferentes opiniões e compará-las.

Então, sinceramente, eu achei o documentário meio exagerado, embora tenha seus bons momentos. Pessoas dizem coisas como: saia um pouco da internet e viva a “vida real”. Mas a vida real é passar mais tempo só com sua família e amigos (que concordam com você) e ignorar as notícias e o que está acontecendo no resto do mundo? Nesse sentido, ter acesso a internet te dá uma noção muito melhor do mundo real do que aquilo que você experimenta na vida real apenas no seu bairro, cidade ou país.

Você é manipulado e tem acesso a fake news até no colégio, na faculdade, no trabalho. A diferença é que tendo acesso a internet você descobre mais facilmente que existem coisas como fake news. No dia a dia, tendo contato apenas com pessoas da sua comunidade imediata, parecidas com você, talvez você nem perceba que aquilo que aprendeu são fake news. E talvez seja mais difícil verificar se são ou não.

Isso foi o que eu escrevi no Facebook. Vou aproveitar para acrescentar mais algumas informações.

Edward Snowden já tinha nos alertado dos perigos de sermos constantemente vigiados através da internet. Concordo com o que ele tem a dizer. Segundo ele, não é porque “não temos nada a esconder” que devemos deixar de nos preocupar com esse problema, que ameaça a liberdade individual. Ele explica esse ponto muito bem em sua autobiografia “Eterna vigilância”, que eu li e gostei muito. Já li também livros sobre o Julian Assange, fundador da WikiLeaks, que se envolve com a divulgação de notícias que são frequentemente escondidas.

Então é claro que é um problema que consigam rastrear todos os sites que acessamos e buscas que fazemos. E que através disso nos sugiram outros sites e vídeos que confirmem nossas opiniões, ou que nos façam gastar dinheiro em certos produtos.

Se você apoia certo posicionamento político ou opinião em relação a qualquer coisa, a internet vai te sugerir apenas coisas parecidas. Porém, eu acredito que na “vida real” isso também aconteça, embora não seja tão óbvio.

Na “vida real” você acaba tendo contato principalmente com sua família, amigos, no colégio, faculdade ou trabalho, pessoas mais ou menos da sua classe social. Ou seja, você tem contato com pessoas que pensam parecido, que receberam uma criação mais ou menos com as mesmas referências culturais.

Eu acho que é muito mais fácil aumentar seu campo de visão com a internet, pois assim você tem contato com pessoas de diferentes países, religiões e posicionamentos políticos. Apesar dos esforços das redes sociais de te sugerirem vídeos e sites parecidos com o que você pensa, é óbvio que pelo simples fato de você usar a internet acaba sim sendo exposto a coisas completamente diferentes. Muito mais do que se você nunca usasse a internet.

Então o ato de deletar sua rede social, usar menos a internet e ter contato com mais pessoas na vida real não vai magicamente expandir sua mente. Pelo contrário, penso que isso apenas te joga de volta para seu casulo: voltar a ter contato com quem fala seu idioma, que é da sua classe social e pensa mais ou menos como você.

Então, não, deletar as redes sociais não é a solução mágica que vai te deixar menos exposto às fake news e vai te fazer mais tolerante. No máximo, isso pode te deixar com menos raiva, porque você vai ler menos comentários intolerantes de quem não concorda com o que você pensa. Sim, essas coisas realmente acontecem com mais frequência na internet, já que você tem menos probabilidade de ser preso falando de forma anônima na internet do que pessoalmente.

Apesar dos lados ruins da internet e das redes sociais, ainda acho que ainda há mais pontos positivos em usá-las do que não usá-las. Mas até que ponto isso pode ser benéfico para você devido a circunstâncias individuais, cada um deve decidir.

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Wanju Duli
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