Resenha de Magia do Caos: Uma Jornada pelo Inconsciente

Wanju Duli
12 min readAug 13, 2022

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A obra já começa em grande estilo:

“Conhece a Ti Mesmo, assim conhecerás os deuses e o Universo!”

(Oráculo de Delphos)

Quantas vezes já ouvimos essas palavras, mas quantas vezes realmente paramos para refletir seriamente sobre elas? Parece que sempre buscamos nossas respostas do lado de fora. Onde estão os deuses? Numa dimensão inalcançável aos seres humanos comuns? Quantas meditações precisaremos fazer, quantos estados alterados precisaremos alcançar para nos tornarmos dignos da presença dos deuses?

Achei intrigante como “deuses” está escrito com letras minúsculas e “Ti Mesmo” em maiúsculas. Acho que isso diz muito sobre para onde devemos olhar se queremos aprender sobre o Universo (também em maiúsculas).

O autor, Luis Z. Siqueira, já tem uma caminhada na magia de longa data. Ele menciona que a origem para a ideia desse livro começou em 2001. Então eu fiquei pensando: o que eu estava fazendo em 2001? Eu tinha 14 anos e havia descoberto a magia há pouco mais de um ano. Eu estava lendo muitos livros de wicca e bruxaria, xamanismo, estava lendo Eliphas Levi e recém começando a ouvir rumores sobre uma tal Magia do Caos, que eu ainda não sabia bem o que era. Eu só iria mergulhar nela de verdade uns quatro anos depois.

Segundo o autor, o conhecimento do Corpo é um caminho para o autoconhecimento. O Templo é o Corpo. Para mim isso faz todo o sentido. O templo do nosso corpo inclui não somente nossa parte física, mas também nossa mente, emoções, espírito. E eu realmente gosto quando, no fim do poema de abertura, é mencionada a “força criadora”.

Às vezes focamos na mente e esquecemos do corpo, ou o contrário. Mas o Corpo contém o Universo. Nos velhos tempos já desvalorizei o corpo físico, considerando-o como algo inferior à mente ou à alma. Eu achava que só bastava cuidar da mente e deixar o corpo de lado. Eu consegui resgatar a importância do corpo depois que me envolvi com a enfermagem. O cristianismo também menciona muito o corpo de Cristo. Então eis a grande descoberta: eu tenho um corpo! E ele não é um peso, é nosso Templo.

De 2003 a 2020 ocorreram as 20 edições de Caos, A Jornada. A experiência com sonhos dos participantes foi uma grande fonte de inspiração para a elaboração desse livro. Isso já nos dá uma ideia sobre as dimensões da obra, em termos de conteúdo e importância.

A partir da Magia do Caos foi criado um Novo Sistema de Magia chamado CAOS O JOGO. Suas origens tiveram estreitas relações com a filosofia e o “Conhece a Ti Mesmo”.

Mas nós conhecemos a nós mesmos? Podemos pensar nisso quando estamos acordados e conscientes, mas o quão fundo podemos ir usando apenas esse estado de consciência? Há diversas formas de alterar nossos estados, como meditações e danças, por exemplo. Mas passamos uma parte enorme da nossa vida dormindo. Como poderíamos ignorar tudo isso? Não é possível que os sonhos sejam apenas um resquício da evolução, que já teve algumas funções relevantes no passado, mas agora “não servem para nada”.

Antigamente também se pensava que o apêndice do corpo humano não servia para nada. Hoje em dia sabemos que ele é um importante reservatório de bactérias protetoras do nosso sistema imune.

Os sonhos são uma porta para algo maior, para um conhecimento profundo a respeito de nós mesmos. Nós não temos acesso direto a essa porta quando estamos acordados. Por isso os sonhos são tão relevantes.

E por isso essa obra sensacional se baseia tão fortemente nos sonhos. Não por acaso, o autor também se baseou bastante na psicologia e psicanálise, pois por intermédio dessas ferramentas seria possível realizar uma análise muito mais complexa.

Uma das coisas mais incríveis sobre “Magia do Caos: Uma Jornada pelo Inconsciente” é que o livro tem uma progressão que faz todo o sentido. Não estamos falando de sonhos por acaso. Não estão sendo usados elementos da psicanálise como uma escolha aleatória, mas porque levam ao conhecimento do Corpo, como um todo. Freud, Jung, Lacan, muitos pensadores e estudiosos escreveram sobre o Inconsciente e isso é discutido nessas páginas.

“Ache os outros”

Ao ler essas palavras de Timothy Leary no livro fiquei emocionada. Isso me traz tantas memórias! Comecei a ler os livros do Tim Leary no começo do meu estudo de Magia do Caos e eles eram sempre refrescantes. Aquele trecho em especial citado no livro desperta muitas emoções em mim.

O impulso com o qual esse livro foi escrito foi “registrar o caminho para que outros pudessem trilhar”. Isso cria um tipo especial de conexão. “Ache os outros!” é algo que sobrevive além da nossa morte: o registro das experiências que chega a mim, a você e a quantos mais! Agora mesmo as palavras do Tim Leary chegaram a mim, por meio desse livro. Esse homem extraordinário que não está mais nesse mundo. Eu ainda era uma criança quando ele morreu, mas é uma honra ter caminhado no mesmo mundo que o dele, enquanto ele ainda estava em vida. E no mundo de Robert Anton Wilson e tantos outros que trilharam o caminho antes de nós e nos deixaram um legado.

Mas até agora eu estava falando apenas sobre a introdução do livro. Então falemos sobre o capítulo 1! O autor explica o que é Magia do Caos de forma primorosa e com propriedade.

Fractais, Tao, o Caos na biologia, na física e na matemática. A obra de James Gleick citada no livro também abriu meus olhos e foi um divisor de águas para que eu tivesse um entendimento mais detalhado sobre sistemas caóticos.

E, é claro, Austin Osman Spare. Nas palavras do autor: “Sigilos e servidores são técnicas mágicas dentro do paradigma mágico criado por Spare” (ao longo dessa resenha, quando eu citar frases entre aspas geralmente serão citações diretas do livro).

Como não poderia deixar de ser, o Tarot é debatido em profundidade. Afinal, a obra acompanha um deck de cartas belíssimo. A arte do livro é um verdadeiro deleite! Raphael Marques fez um trabalho não somente fascinante, mas totalmente criativo. Eu me encantei analisando cada uma das cartas do deck. Honestamente, eu me senti sendo levada para outros mundos apenas ao fitar as imagens. A visão é um sentido poderoso e quando influenciada dessa forma pode nos fazer maravilhas! Eu me senti convidada a sonhar fitando as cartas.

O capítulo 2 nos apresenta onde estamos: aqui. Quando? Agora. E com nosso corpo. Mas não estamos sozinhos! Podemos usar instrumentos de auxílio. E quais são eles? O Tarot da Jornada! A Jornada descrita nas cartas é nada menos que a clássica Jornada do Herói, de Joseph Campbell.

“Cada carta é um Arcano, um conjunto de símbolos que contam uma história oculta, um segredo”. Uau! O autor explica que o deck que acompanha o livro apresenta cartas com alguns significados diferentes. É outro sistema, com semelhanças e diferenças em relação ao tarot tradicional. E é exatamente por isso que eu acredito que vale a pena explorá-lo.

Observando os significados das cartas, possíveis combinações e o universo de leituras possível, eu me empolguei bastante, pois nunca tinha visto nada parecido. Com certeza a vasta experiência de narração de sonhos da Jornada foi fundamental para um trabalho tão único. Inclusive, temos descrições detalhadas de vários desses sonhos ao longo da obra.

O capítulo 3 trata sobre a consciência: “a base pela qual percebemos nossa vida”. As técnicas mágicas “buscam aproximar a consciência do seu limite, o Inconsciente”. Então, senhoras e senhores, eis um capítulo emocionante: vamos falar sobre os estados alterados de consciência!

Mais especificamente, o capítulo começa abordando o transe em estado “Alfa” e os sonhos. Temos exercícios práticos, como observar o limiar entre o sono e a vigília. E aquele termo super legal que o AOS usa: “Nem aqui, nem ali”, o famoso “Neither-Neither”, “para designar algo entre a consciência e a inconsciência”.

Sério, quão legal isso pode ser? Agora estamos conversando! Eu adoro essas técnicas para alterar o estado de consciência. Eu aprendi isso mais com meditação, mas é bom sempre ter uns truques na manga quando você precisa fazer um feitiço, mas não quer “apagar” demais. Então você só altera um pouquinho, o suficiente para o feitiço pegar no tranco, sabe? Ah, adoro!

“A Magia do Caos é uma porta extra”. Sim! É o “Algo mais” como diz o autor, que vai além da velha dualidade “bem e mal”, “certo e errado”, “Deus e Diabo”.

Outra definição interessante de Magia do Caos que o livro traz: “Um sistema que consegue representar o abstrato de outros sistemas”, apropriando-se dos paradigmas desse sistema. Bem, se nós queremos ser “ladrões”, pelo menos devemos fazer isso de forma elegante, não é mesmo?

Sobre aquela tirada clássica de três cartas, representando o passado, o presente e o futuro, para mim é nostálgico, pois foi a primeira que aprendi a fazer quando comprei meu primeiro tarot aos 13 anos. Então eu fiz uma tirada dessas com o deck do livro, para relembrar os velhos tempos.

Percebi algumas coisas usando o deck. Primeiro, é muito emocionante mexer nele. As cartas são misteriosas, lindas e cheirosas, haha! Elas são boas ao toque, é bem agradável. E é sempre divertida a sensação de não saber qual carta virá, num mundo de possibilidades!

No começo é bom consultar o livro para se acostumar com o significado das cartas, pois algumas são novas. Mas mesmo sem conhecer tão bem as cartas, eu me senti à vontade para usar esse deck. O que eu senti de estranheza foi uma estranheza boa, no sentido de ser uma novidade. É muito interessante quando aparecem cartas mais desconhecidas.

Consegui fazer uma interpretação muito legal das cartas que saíram para mim. E os desenhos, ah, os desenhos! Não canso de me encantar. As imagens me inspiram a sentir um significado escondido.

E vamos ao capítulo 4!

Nesse capítulo aprendemos mais sobre os arcanos. Por exemplo, há um chamado “Casa Abandonada” e o desenho desse arcano combina muito com o nome.

Tirei uma foto de algumas das cartas que eu mais gostei:

Eu sou fã de magia contemporânea, então eu curti muito essas cartas com elementos mais modernos da nossa realidade, como “estação espacial”. Achei o máximo!

Achei a capa do livro belíssima, então não por acaso fiquei fã dessa carta que mostra a imagem da capa colorida! Achei simplesmente linda, a escolha das cores ficou perfeita! É uma imagem poderosa! É assustadora, mas ao mesmo tempo não é algo que me afasta. É um mistério que quero desvendar, é um medo que desejo sentir! No fundo, chega a ser um medo emocionante, pois é como conhecer mais um aspecto de mim mesma. E tudo faz parte de mim: o belo e o horrível.

Gostei da carta chamada “Prédios Habitados” sendo representada por arranha-céus modernos. Esse arcano simboliza a estrutura do Eu, como nós vemos nossa vida na forma de estruturas e projetos.

Eu achei tão divertida a carta “O Ônibus”! Não pude deixar de sorrir ao ver os ônibus voando! Também quero um ônibus voador!! :)

O ônibus pode estar sendo dirigido por nós ou por um motorista. Também muda o significado caso a pessoa sonhe com um ônibus voando ou trafegando pela água. O ônibus é o caminho percorrido, uma jornada, uma aventura!

A “Estação Espacial” é a jornada que se estende para além do espaço e do tempo. Dentro da estação há muitas possibilidades, como viajar no tempo, para o passado ou futuro. Alguns significados: aventura em grupo, perigos, descobertas!

“O Submarino” trata do Inconsciente Indiviso, assim como a carta anterior. É uma jornada em equipe, pois juntos podemos ir aonde nunca imaginaríamos ir sozinhos!

Eu gostei particularmente de cartas que representam lugares, pois para mim lembra muito um jogo e um cenário no qual podemos viajar. No começo da minha jornada na magia eu costumava usar cenários prontos para ajudar na minha visualização, então eu me identifico muito com essa abordagem!

O capítulo 5 nos apresenta os personagens dos arcanos. A Bufona, por exemplo, é uma carta lindíssima!

O Jogo Triádico representa a tríade com os seguintes personagens: o Bufão (emocional), o Executor (ação) e o Cientista (razão). Também podem ser usados no feminino (a Bufona, a Executora e a Cientista).

No capítulo 6 é debatida a questão do mágico e do mundano. Até que ponto podemos separá-los? Nesse momento entra a carta A Bruxa, símbolo do domínio. É a operação do jogo por intento.

O capítulo 7 nos ensina a usar o tarot para navegar na jornada. Fala-se de métodos de leituras oraculares, incluindo o método “WTF?!” (What The Fuck). Adorei, achei super original e divertido esse método. É bem a cara da Magia do Caos. E a Jornada também possui um método próprio para tirar as cartas.

O capítulo 8 nos mostra o tarot da Jornada em mais detalhes, associado aos quatro verbos clássicos da magia: ousar, querer, saber e calar.

No capítulo 9 temos o significado das 77 cartas pelo método “WTF?!” (eu ainda acho difícil escrever o nome do método sem rir, mas acho que a ideia foi essa, hehe).

Esse capítulo é muito útil, pois fornece descrições de todas as cartas de forma sistemática, e pode ser facilmente consultado posteriormente.

No final do capítulo temos uma parte sensacional chamada “Usando os arcanos do Tarot da Jornada como meio de encantamento do Universo”.

No capítulo 10 temos mais explicações sobre Caos A Jornada.

Na bibliografia você pode encontrar alguns títulos interessantes, como obras de Ramsey Dukes, que eu adoro. A parte de psicanálise também é super detalhada. Oba, também temos Principia Discordia! Oh, e temos RAW! Essa bibliografia está tudo de bom!

O apêndice também traz reflexões pertinentes. Em vez de usar o tarot para responder perguntas de “sim ou não” ele também pode ser usado como um jogo de probabilidades com quatro respostas possíveis:

1- Provavelmente Sim;

2- Talvez Sim;

3- Talvez Não e

4- Provavelmente não.

O autor nos ensina um método de leitura com o Tarot da Jornada para realizar esse tipo de jogo.

Segundo o autor, uma leitura oracular seria uma busca de uma resposta SIMBÓLICA a uma pergunta. Cada carta representa uma METÁFORA.

Uma definição de magia apresentada seria “alterar a probabilidade de que um evento venha a ocorrer”. Acho essa definição interessante, para não olharmos um feitiço apenas em termos de sucesso e fracasso (a velha dualidade!). Eu sempre gosto de falar dos “efeitos residuais” da magia. Mesmo que uma magia não funcione exatamente como gostaríamos, pelo simples fato de termos colocado a magia em ação, alteramos o universo e outras coisas podem acontecer.

Acho que chegamos ao final do livro! Mas a boa notícia é que o fim não é realmente o fim, já que a obra acompanha esse tarot lindo e super original para você usar e explorar! Isso significa que você irá abrir essa obra mais vezes para estudar as cartas e fazer consultas.

Acabar de ler um livro dá um misto de tristeza e alegria. Alegria por ter finalmente concluído o conteúdo, mas tristeza porque deixa saudades. Felizmente, a alegria é maior nessa obra, exatamente porque além de um livro de leitura tradicional, do início ao fim, também é possível percorrer os capítulos individualmente.

Você pode consultar os capítulos sobre o tarot quando estiver fazendo tiradas de cartas e precisar de ajuda extra para possíveis significados. E alguns capítulos aprofundam tanto alguns tópicos que vale a pena reler ou montar um grupo de estudo de magia com amigos para debater alguns assuntos levantados. Sem dúvida vale a pena anotar os trechos preferidos.

Achei a leitura fascinante! Antes de começar a ler, eu já esperava que a obra fosse excelente, porque o autor é um dos magistas do caos mais experientes do Brasil (e não somente do Brasil). É difícil achar um magista do caos brasileiro que não ouviu falar dele. Eu mesma já ouvi o nome dele (e suas muitas alcunhas) desde meus primeiros anos de caoísmo.

O livro foi tão bom quanto eu esperava, mas até mesmo superou minhas expectativas. A beleza da obra, da edição e das imagens é incontestável. E o conteúdo é muito completo. É um livro ideal tanto para iniciantes quanto para magistas experientes.

Você vai encontrar aqui um pouco de tudo, incluindo um conteúdo mais tradicional, como um pouco da história da Magia do Caos, origens, significados dos termos, etc (tudo muitíssimo bem explicado e com notas de rodapé) e também conteúdo original do autor. É tudo muito criativo.

Agradeço ao autor e ao ilustrador! Dá pra ver que tudo foi feito com muita dedicação. Foi uma honra pode ler e ter essa experiência!

Se eu recomendo a leitura? Com certeza! Até recentemente tínhamos poucos livros nacionais de Magia do Caos, realidade que vem gradativamente mudando. Quando alguém me pedir recomendação sobre um livro introdutório ao caoísmo, ou um livro mais aprofundado, um livro mais teórico, mais prático, algo criativo e interessante, essa obra atenderá todos os requisitos. A partir de agora, esse será um dos títulos de Magia do Caos que primeiro virá à minha mente para recomendar.

Você pode adquirir a obra aqui! :)

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Wanju Duli
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