Religião pública ou privada?

Wanju Duli
7 min readNov 26, 2020

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Tudo começou quando eu estava vendo vídeos de islamismo no Youtube e apareceu a sugestão de uns vídeos de coreanos convertidos ao islamismo. Achei tudo muito legal, pois é bem interessante ver novos convertidos em países em que o islamismo não é a religião majoritária. Achei bem emocionante os vídeos em que eles filmaram o momento da Shahada.

Em um dos canais, um muçulmano coreano falou sobre outro muçulmano coreano que tinha um canal famoso e que declarou que ia sair do Youtube e do Islã. Ele estava tentando pedir para que ele não fizesse isso, embora respeitasse a posição dele.

Nas últimas semanas assisti alguns documentários e vídeos sobre novos convertidos ao islamismo no Brasil. Eles enfrentam alguma estranheza e preconceito, mas aparentemente a situação da Coreia e de outros países é bem mais complicada.

Percebi que novos convertidos ao islamismo no Brasil se sentem relativamente à vontade para usar roupas tradicionais muçulmanas se quiserem, enquanto os Youtubers coreanos muçulmanos raramente fazem isso. Eles o fazem de forma privada, em mesquitas, mas não em público, pois há um grande choque cultural e julgamento social.

Foi então que eu percebi algo que eu não havia reparado imediatamente: é muito mais fácil ser um “cristão não praticante” do que um “muçulmano não praticante”. Isso porque o cristianismo costuma interferir mais na sua vida privada (como regras de conduta sexual) do que na sua vida pública.

Então para um cristão é mais fácil esconder se ele não está cumprindo algumas regras de sua religião. Já para os muçulmanos é diferente. Muçulmanos não podem comer carne de porco, não podem beber álcool e não podem consumir alimentos que não sejam halal (preparados de forma específica, assim como os judeus comem alimentos kosher). Por outro lado, Jesus declarou na Bíblia que nenhum alimento é impuro. Cristãos retiram alguns alimentos na Quaresma, mas hoje em dia ela é praticada de forma muito mais leve do que antigamente.

Já dos muçulmanos se espera que, além de todas as restrições alimentares que devem realizar por toda vida, ainda jejuem em todo o mês de Ramadã. Isso significa que em qualquer evento público, qualquer saída para comer fora, eles devem cuidar na escolha dos alimentos. Isso é bem difícil, pois enquanto um cristão não necessariamente sabe e não vai perguntar a conduta sexual de outro cristão, já que isso faz parte de sua vida privada, um muçulmano irá eventualmente ou frequentemente comer em público e suas escolhas alimentares ficarão bem visíveis.

Além disso, há a questão do vestuário. Antigamente mulheres cristãs cobriam a cabeça com um lenço para assistir as missas. Todos vestiam roupas mais solenes para a ocasião. Hoje em dia não é mais assim. E enquanto alguns cristãos optam por vestes mais discretas, não há uma regra visível a esse respeito. Algumas regras específicas de vestuário são eventualmente observadas por alguns grupos protestantes.

Por outro lado, existe a questão do véu para as mulheres muçulmanas. Houve uma polêmica na França quando o véu e o uso público de símbolos religiosos (como cruzes) foi proibido. O uso do véu é um tópico até hoje largamente discutido.

Mas os muçulmanos não possuem regras de vestimenta apenas para as mulheres, mas para os homens também. É esperado que um novo convertido aos poucos vá acrescentando novos elementos à sua fé. Mas tradicionalmente se admira muçulmanos que tentam viver uma vida mais parecida à do profeta Maomé. Então um homem muçulmano que deixa sua barba crescer e veste roupas tradicionais muçulmanas está fazendo uma demonstração pública de sua fé.

Para completar, exige-se dos muçulmanos que façam cinco orações diárias. Embora elas possam ser feitas de forma privada, se você trabalha ou estuda fora fica óbvio se está seguindo ou não a rotina de orações, que devem ser feitas em determinados horários. Já o cristão pode escolher quando e com que frequência irá orar.

Na Bíblia, Jesus critica as pessoas que se gabam da própria fé com demonstrações públicas, como aqueles que oram na esquina para que o vejam orando ou que fazem alarde das doações que fazem. Jesus convida que cada um se feche no seu quarto e ore em segredo.

“16 Quando jejuardes, não vos mostreis contristrados como os hipócritas; porque eles desfiguram os seus rostos, para que os homens vejam que estão jejuando. Em verdade vos digo que já receberam a sua recompensa.

17 Tu, porém, quando jejuares, unge a tua cabeça, e lava o teu rosto,

18 para não mostrar aos homens que estás jejuando, mas a teu Pai, que está em secreto; e teu Pai, que vê em secreto, te recompensará”

(Mates 6:16–18)

Em comparação, vejamos esse trecho do livro “A Mensagem do Islam”, por Dr. Abdurrahman al-Sheha:

Acredito ser essa uma diferença significativa entre cristianismo e islamismo. Para os cristãos, sua religião é algo pessoal entre o cristão e seu Deus. Alguns acharam que não precisavam de padres para confessar os pecados, pois podiam fazê-lo diretamente para Deus, como defendem os protestantes.

É verdade que alguns cristãos misturam religião com política, mas geralmente os padres e alguns pastores são orientados a não defender posicionamentos políticos em seus discursos nas igrejas. Quando surgiu a Teologia da Libertação, por exemplo, isso foi identificado como mistura de religião com política e o movimento foi criticado pela Igreja Católica.

Isso tudo porque Jesus disse:

“Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.”

(Mateus 22:21)

Por outro lado, Maomé viveu numa época de turbulência política. Ele e seus seguidores foram perseguidos em Meca e tiveram que mover a recém formada comunidade para Medina.

Jesus defendeu os pobres, mas não havia uma guerra acontecendo lá. Já Maomé viveu muitas guerras e por mais que talvez desejasse separar as coisas, era difícil. Ele simplesmente tinha que misturar religião com política ou sua comunidade teria sido dizimada. É claro que os cristãos também foram perseguidos, mas inicialmente foi principalmente devido a alguns pronunciamentos de Jesus, que se tornaram polêmicos. Tanto religiosos como políticos se sentiram ameaçados. Mas sua presença foi tolerada por um tempo. Já Maomé tinha que participar frequentemente de guerras, embora preferisse a paz.

Como resultado, é claro que o ensinamento dos dois foi diferente. Jesus defendia a justiça para os pobres, mas não através de uma guerra. Ele enfatizava as pequenas ações, como doações e como resistir pacificamente a um agressor, como ele mesmo morreu na cruz.

Maomé também optou por uma vida de pobreza e simplicidade, sempre enfatizando a misericórdia de Deus mais do que suas punições. No islamismo, assim como no cristianismo, os mártires também são exaltados. Mas no islamismo se aceita a guerra como defesa. Na verdade, no catolicismo também se aceita a guerra como defesa (a doutrina da guerra justa), embora em suas histórias de santos enfatize-se mais os mártires que apenas aceitam a morte nas mãos do inimigo, como o caminho mais rápido para Deus e para o céu.

No fundo, as duas religiões são muito parecidas, mas há essas diferenças sutis. O cristão está muito mais conectado à sua fé pessoal, às orações e penitências que faz em segredo. O muçulmano possui um senso maior de comunidade, valorizando os sinais públicos de fé. O Hajj é um grande exemplo disso, com tantos muçulmanos peregrinando para Meca e, juntos, realizando em público uma demonstração da fé.

É verdade que muitos problemas de países muçulmanos ocorrem porque há grupos de muçulmanos conservadores que querem impor as regras e manifestações públicas de fé para todos, misturando explicitamente religião e política. Exatamente porque muitos muçulmanos acham que a fé não é apenas um assunto privado entre você e Deus, mas envolve toda a sociedade.

É claro que é mais fácil seguir uma disciplina religiosa quando você torna suas manifestações públicas. Talvez por isso, em parte, alguns cristãos tenham relaxado na rotina de orações e outras práticas. Se minha religião é assunto meu e de mais ninguém, se eu parar de seguir minha disciplina ninguém vai ficar sabendo e para mim será mais conveniente. Mas se você segue certas disciplinas junto com outras pessoas, uma apoia a outra para que continue seguindo em frente. Falo mais disso aqui.

Enfim, essa questão do aspecto privado e público da religião é bastante polêmica e envolve muitas questões. Como em todas as coisas, há os aspectos positivos e negativos de enfatizar nas demonstrações públicas de fé. Mas considero esse um tópico interessantíssimo que merece melhor reflexão.

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Wanju Duli
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