Que o sim seja sim

Wanju Duli
11 min readNov 21, 2020

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Vou começar essa reflexão com alguns trechos do livro “Ser cristão na Era Neopagã” de Joseph Ratzinger (Bento XVI).

Em primeiro lugar, sempre achei engraçado o título desse livro. Em segundo lugar, eu ia colocar aqui apenas um trecho do livro relacionado a esse post. Mas eu reli mais trechos dele que anotei e gostei, então aqui vão todos eles:

“Uma visão do mundo que não pode dar sentido também ao sofrimento e fazer dele algo precioso não serve para nada. Ela fracassa quando surge a questão decisiva da existência. Aqueles que dizem apenas que o sofrimento deve ser combatido se enganam. Certamente é preciso fazer de tudo para aliviar a dor de tantos inocentes e para limitar o sofrimento. Mas não existe vida sem dor, e quem não é capaz de aceitar a dor evita aquela purificação que nos amadurece”.

“Deve ficar claro que dizer que a opinião de alguém não corresponde à doutrina da Igreja não significa violar os direitos humanos. Cada um deve ter o direito de formar e expressar a sua opinião. No Concílio Vaticano II, a Igreja se declarou abertamente favorável a isso e o é ainda hoje. Mas isso não significa que todas as opiniões têm que ser reconhecidas como católicas. Cada um deve ter a possibilidade de se exprimir como pode e como quer diante da sua consciência, mas a Igreja deve poder dizer aos seus fiéis quais opiniões correspondem à sua fé e quais não correspondem. Esse é um direito e um dever, para que o sim seja sim e o não seja não, e seja preservada a clareza que ela deve aos seus fiéis e ao mundo”

“Este é o ponto realmente crítico da modernidade: a ideia de verdade foi praticamente eliminada e substituída pela ideia de progresso. O progresso ‘é’ a verdade. Todavia, nessa aparente exaltação ele perde a direção e se esvazia. Se não há uma direção, tudo pode ser bom, tanto o progresso quanto a regressão”

“Parece-me que os pregadores de hoje falam pouco de Deus. O tema ‘Deus’ é muitas vezes marginal. Fala-se muito de problemas políticos, econômicos, culturais e psicológicos. Pensam que Deus já é conhecido e que os problemas práticos da sociedade e do indivíduo são mais urgentes. Em outras palavras: falar de Deus não parece falar de uma realidade ‘prática’, de uma coisa que tem a ver com nossas necessidades reais. E aqui Jesus nos corrige: Deus é a coisa mais prática e urgente para o homem”

Hoje em dia é popular a ideia de que a verdade é relativa, que qualquer coisa é igualmente boa ou que qualquer coisa serve. Entendo que o que há por trás dessas ideias é o respeito por pensamentos diferentes. E, de fato, mesmo que não concordemos com algo, pode valer a pena conversar com aquela pessoa ou ler livros sobre aquilo que não concordamos para tentar descobrir o que há por trás daqueles pensamentos. Em alguns casos há sim várias possibilidades.

No entanto, o problema de dizer que tudo é igualmente bom é que esse pensamento muitas vezes nos confunde. Claro, há aqueles casos em que algo definitivamente não é bom, como preconceitos ou torturar uma pessoa. Mas nem preciso apontar esses casos extremos. Podemos usar exemplos bem mais sutis.

Por muito tempo na minha vida essa questão do “qualquer coisa serve” me confundiu. Vou usar um exemplo bem simples: se eu quiser escolher uma profissão, não há uma profissão realmente melhor que outra, então eu posso me tornar uma traficante de drogas ou uma escritora, é realmente uma questão de preferência?

Espere, então há uma regra oculta aqui. Eu não deveria fazer algo que machuque diretamente pessoas. Então será que machucar indiretamente pode ser, como trabalhar numa fábrica de refrigerantes?

Então se eu fizer algo que nem machuque e nem ajude ninguém, está tudo bem? Mas não é melhor se, além de não machucar, eu fizer algo que ajude um pouquinho? E se ajudar muito?

Esse é apenas um exemplo claro para ilustrar meu ponto. Nós nascemos num mundo no qual podemos fazer diversas escolhas que são classificadas como igualmente boas. E qual o critério para eu escolher entre elas? Algo vago chamado “preferência”.

Cada pessoa gosta de muitas coisas, às vezes mais ou menos aleatórias. Nem sempre sabemos porque gostamos de certa cor ou de certa música. Talvez exposição na infância, por amigos, porque representam um status social. Ou simplesmente gostamos porque… porque sim!

Então no mundo em que vivemos nós somos ensinados a fazer as escolhas mais importantes das nossas vidas (como em que vamos trabalhar, com quem vamos casar, que religião teremos) com base no seguinte critério: “escolha o que achar mais legal!”

Mas como? Como assim? Como vou fazer minhas escolhas? Com base num instinto? Vou escolher o que eu achar mais bonito, mais prazeroso, mais confortável?

No final, fazemos um tipo de cálculo meio bobo: o que é mais fácil? O que traz mais prazer? O que traz menos desconforto?

Eu já mencionei a questão das religiões antes como exemplo. Normalmente queremos escolher a religião ou caminho espiritual que nos traga mais liberdade e conforto. Não queremos dificuldades. Mas será que buscar o que é mais bonito e mais fácil irá mesmo nos satisfazer espiritualmente?

Eu penso exatamente o contrário. Muitas vezes são as religiões difíceis que nos trazem mais aprendizado espiritual e mais crescimento. E aí entra o primeiro parágrafo do livro que coloquei no começo desse post: é importante dar sentido ao sofrimento e não apenas enxergá-lo como algo incômodo, um erro que deve ser completamente eliminado.

Novamente menciono que não é por acaso que religiões como cristianismo, islamismo, budismo e hinduísmo, apenas para citar algumas, sejam seguidas por tanta gente. É claro que Buda falou do sofrimento, e Jesus, e Maomé. A vida tem muito sofrimento e para lidar com isso precisamos de religiões poderosas que não fujam do sofrimento e nem o botem debaixo do tapete, mas que o enfrentem.

Não é fácil rezar várias vezes por dia, fazer rezas longas, jejuar. Mas são essas coisas que geralmente nos trazem mais realização espiritual, aumentam nossa fé e nos conectam com Deus.

Pelo contrário, quando buscamos uma espiritualidade fácil, que seja apenas prazerosa e divertida, sem dificuldades, isso pode realmente nos ensinar algumas coisas e ser interessante. Mas por quanto tempo?

Eu sou totalmente a favor de prazeres e diversão. Sou a favor de lazeres, de rir, de desfrutar a vida. Mas eu também sou a favor de não fugir do sofrimento e de se preparar para ele quando acontecer. Então devemos buscá-lo em vez de fugir dele. Ou no mínimo simulá-lo, como acrescentar jejuns religiosos em nossas práticas. Pois se um dia passarmos fome estaremos preparados. Isso não irá nos derrubar física e mentalmente.

Esse é apenas um exemplo, claro. Aqui chegamos ao terceiro parágrafo do livro de Ratzinger: “Se não há uma direção, tudo pode ser bom, tanto o progresso quanto a regressão”

Aí está. Nós podemos escolher qualquer religião e respeitar a escolha dos outros, obviamente. Somos pessoas diferentes e é natural que iremos nos sentir mais conectados com certas religiões do que outras.

Não precisamos doutrinar os outros a escolher a religião que escolhemos, mas quando chega o momento de escolher nossa própria religião, acho que não é momento de dizer: “escolha a que achar mais bonita, como se escolhesse um sorvete”.

O argumento de que “todas são igualmente boas” é verdadeiro no sentido de que todas têm algo a te ensinar, todas têm algo de sagrado e devem ser respeitadas. Mas com base em sua vida, naquilo que você é e no que deseja atingir, não é o momento de dizer que qualquer uma serve, mas de analisar seriamente. E dizer que, sim, elas são diferentes, melhores em umas partes, piores em outras, talvez.

Eu sei que hoje em dia muita gente não liga para religião. Muita gente também não liga para a escolha da profissão ou do parceiro porque “pode trocar a qualquer hora”.

Você é uma pessoa livre, mas a questão é que temos tantas opções hoje em dia que ficamos confusos. Creio que boa parte dessa confusão é o fato de nos ensinarem que temos que “escolher o que gostamos” com base em critérios meio aleatórios como “gostei porque sei lá”.

Então nós permitimos que as questões mais importantes da nossa vida aconteçam de forma meio aleatória enquanto, ironicamente, para tomar decisões menores que irão nos impactar menos às vezes refletimos por muito tempo.

Enquanto o mundo nos ensina uma noção estranha de liberdade que nos deixa mais confusos e perdidos ainda, a religião rebate com algo incrível: Deus nos deu uma missão sagrada. Nós não nascemos por acaso. E o melhor: Deus deu uma missão individual para cada um de nós.

Uau! A missão que ele me deu é só minha e de ninguém mais! Isso não é maravilhoso?

Eu adorei a primeira vez que escutei isso, quando eu ainda era criança. Eu entendi que não devia apenas “inventar” um passatempo qualquer para fazer na minha vida enquanto estava viva. Eu percebi que isso não me completaria.

Eu realmente não achava que fazia sentido a ideia de que fui jogada aqui e devia escolher qualquer coisa para fazer enquanto minha vida não se esgotasse. A noção de ter uma missão divina fazia muito mais sentido e era mais emocionante também.

Deus me escolheu para algo único. O fato de que ele deu uma missão diferente para cada um significa que, sim, há várias possibilidades de coisas boas para fazer na vida. Mas isso não é o mesmo que dizer que qualquer coisa que escolhermos será boa! Há até mesmo as categorias das coisas “boas” e das “muito boas” e há uma diferença entre as duas!

“Há dois caminhos, um de vida e um de morte, e há uma grande diferença entre os dois”

(Didache)

Como descobrir a missão que Deus nos deu? Eu já escrevi vários posts sobre isso, então não irei me repetir aqui. Resumindo, devemos passar por um processo de autoconhecimento, que envolve muitas orações, leituras, vivências, etc. É algo que combina tanto lógica quanto uma noção moral profunda: nós simplesmente “sentimos” que é aquilo.

Mas esse “sentir” não é aquele “sentir” vago de quando achamos algo bonito, prazeroso e interessante. É algo que nos toca mais profundamente. É algo que toca nossa alma, que realmente soa como uma missão sagrada, mesmo que seja algo aparentemente simples aos olhos do mundo.

Dei o exemplo da religião, mas isso pode naturalmente ser aplicado aos mais variados aspectos da nossa vida. Claro, nem tudo que fazemos precisa envolver a missão que Deus nos deu. Não estou dizendo para você orar cada vez que precisa escolher o sabor de um sorvete ou para usar um método divinatório a cada pequena decisão do dia, como fazem alguns.

Nesse ponto irei comentar sobre o quarto parágrafo do livro de Ratzinger: nós muitas vezes nos preocupamos com coisas mais práticas da vida e achamos que religião e Deus não são importantes. Porém, “Deus é a coisa mais prática e urgente para o homem”.

Antes de tudo, vem a descoberta da missão que Deus nos deu. Não farei algo que eu escolhi, mas que Deus escolheu para mim. Eu só precisarei reunir a coragem e a fé para dizer “sim”.

Alguns não gostam dessa ideia de missão divina porque parece que estou abrindo mão da minha liberdade de escolha e deixando que outros escolham para mim. Não é isso! É exatamente o contrário!

Muitas vezes achamos que nós estamos fazendo uma escolha de algo que gostamos, mas é a sociedade que escolhe por nós. Escolhi fazer isso porque me dá mais status, ou porque quero que as pessoas me olhem de certa maneira. Ou simplesmente porque fazer aquilo é considerado como útil na minha sociedade.

Então temos a ilusão de que estamos escolhendo algo porque “queremos” ou “gostamos”, mas muitas vezes o que achamos que queremos e gostamos é simplesmente o máximo de prazer e o mínimo de dor. Então iremos escolher algo por mera conveniência.

A diferença é que a missão que Deus nos deu é muitas vezes algo difícil, que irá nos trazer dor. Nós não escolhemos algo porque queremos dor. Queremos facilitar nossa vida. Mas Deus não quer nos dar a missão mais fácil, mas aquela que irá te purificar espiritualmente: que te aproxime de Deus, que ajude mais gente, que explore todo o seu potencial como ser humano.

E agora eu finalmente retorno para o segundo parágrafo: que o seu sim seja sim e o seu não seja não.

Deus nos deu uma missão e devemos dizer “sim” ou “não”. Dizer “sim” significa ter uma vida de desconfortos e dificuldades. Ou, como dizem os cristãos, de perseguição e martírio. Em compensação, seremos sinceros com nossa consciência, iremos agir segundo nossos princípios morais mais elevados e iremos agradar Deus. Isso irá nos gerar uma paz imensa no coração, embora nosso corpo e nossa mente nem sempre estejam em paz. É uma paz de espírito, mesmo que perturbe sua mente. Não importa: nós somos mais que mente.

Hoje em dia estamos cheios de medos, dúvidas e problemas de saúde mental. Por várias razões, é claro, pois não podemos simplificar. Há a questão da pobreza, desigualdade social e muitas outras.

Mas será que nossa abordagem não está errada desde o início? Se temos algum problema psicológico, iremos elaborar estratégias para minimizar aquela dor e buscar paz mental. Claro que algumas soluções de curto prazo são necessárias para urgências. Depois tentamos analisar o problema mais a fundo e buscar as origens para resolvê-lo ou amenizá-lo.

Mas meu ponto é que essa forma de pensar se baseia na seguinte ideia: o máximo que eu posso esperar da vida é ter um pouco de paz e alegria e ter menos dor. Então vamos minimizar a dor e aumentar paz e felicidade.

Num nível superficial isso pode até ser satisfatório. Mas eu acho que essa abordagem é incompleta.

Nós não somos apenas corpos e mentes. Somos almas! Não basta curar o corpo físico e trazer paz para a mente. A vida é muito mais do que saúde física e mental.

O ser humano sente necessidade de algo num nível mais profundo. É uma sede, uma fome espiritual. É algo que somente Deus pode saciar. Algo que nenhum dinheiro ou prazer do mundo pode comprar.

Acho que parte dos nossos problemas psicológicos, dúvidas, medo, dor e tédio é porque achamos que a vida é apenas só se divertir e ter prazer. Ou, para usar palavras bonitas: “ter paz, ter amor, ter felicidade”. OK, buscar a paz entre nações e os direitos humanos são as coisas básicas e fundamentais.

Mas viver não é apenas comer, ter acesso a água, saúde, educação, etc. Viver é mais. Enquanto ainda estamos lutando para garantir as coisas básicas para as pessoas, esquecemos que no passado as pessoas eram muito mais pobres, havia muito mais injustiças e, ainda assim, a religião parecia efetiva para trazer muitas respostas.

Isso porque a religião não nos ensina que devemos fugir da dor, minimizar a dor ao máximo e buscar o máximo de prazer. É esse pensamento que nos deixa confusos, seja na escolha de uma profissão, de um parceiro, de um hobby, etc.

Se, por outro lado, descobrimos que somos uma alma, nascemos com um propósito e devemos realizar a missão sagrada que Deus nos deu, isso é um alimento profundo para o espírito! É algo que nos preenche, que nos dá um sentido!

É dizer SIM para Deus. Esse único sim nos cura em todos os níveis.

Nós temos a liberdade de dizer não para Deus, é claro. E dizer sim para nossos pequenos confortos e caprichos. Isso pode nos satisfazer por alguns meses, por alguns anos. Mas nosso coração ficará realmente preenchido?

Não é verdade que qualquer coisa serve. Eu acredito que sim, que Deus deu uma missão individual para cada um e partir em busca dela é a coisa mais importante e nobre que você fará na vida.

E uma vez dito “sim” não haverá dor no mundo que irá te derrubar, pois Deus estará ao seu lado. Você vai ter menos conforto, vai passar por muitas complicações que poderia ter evitado.

Em compensação, o que pode ser melhor do que fazer a coisa mais importante do mundo? Não vale a pena sacrificar todos os confortos por isso?

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Wanju Duli
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