Qual é a vontade de Deus?

Wanju Duli
12 min readJan 25, 2019

--

Vatican Art, Vatican Museum, Candlearbrum Gallery — With the grace of God and the effort of will, we obtain the excellence of virtue

Deus tem planos para cada pessoa. Antes mesmo de nosso nascimento, Deus já enxergou a nossa vida do início ao fim, pois está fora do tempo. É claro que esse tipo de afirmação levanta a questão do livre-arbítrio: se Deus já sabe tudo que vamos fazer, nós temos o poder de tomar nossas próprias decisões?

Segundo o cristianismo, há dois tipos de tempo: kronos e kairos, que são, respectivamente, o tempo do relógio e o tempo espiritual. No livro “Practical Theology” Peter Kreeft diz o seguinte:

“Embora a alma não esteja no espaço e na matéria, como o corpo está, ela está no tempo. De fato, ela está em dois tipos de tempo: o tempo que é relativo aos corpos materiais passando através do espaço, que é o kronos, e o tempo da mente, vontade e espírito, o tempo do significado e do propósito, que é o kairos. Mas ambos são tempo. As almas crescem, as mentes amadurecem, a humanidade vive através de uma história da consciência assim como em uma história da civilização material, tanto coletivamente como individualmente. A alma não é seu próprio fim, assim como a flecha não é seu próprio alvo. A flecha de nossas almas voa para Deus como alvo — a não ser que o arco esteja tão mal posicionado que voe ao contrário, caso em que perfura o olho do arqueiro e o torna cego”

Quando nascemos, Deus nos dá um kronos e um kairos. Nós sabemos o que é kronos: é a duração de uma vida humana, que pode durar mais para uns do que para outros, de acordo com nossas escolhas e com a vontade de Deus.

De uma perspectiva espiritual, ter uma vida longa só é vantajoso se ela nos traz mais oportunidades para o arrependimento, para endireitar nossa vida e fazer o bem. Caso Deus tenha decidido dar uma vida longa para uma pessoa e uma vida curta para outra, não significa que ele ama mais aquele a quem deu vida longa. Afinal, conhecemos centenas de histórias de vidas de santos que morreram jovens.

Pode ser que um santo morra jovem porque Deus entendeu que ele já estava preparado para o céu. Ou o próprio santo às vezes quer morrer o quanto antes e conquistar a coroa do martírio, para encontrar Deus o mais rápido possível, pois o seu amor é muito forte.

Quando Deus decide dar pobreza a uma pessoa e riqueza para outra (ou permite que as desigualdades sociais ocorram, não tendo sido ele que as originou), confortos na vida ou muitos sofrimentos, uma morte sofrida ou uma morte pacífica, nada disso é indicativo de que Deus ama mais um ou outro, ou que ele está dando bênçãos ou punindo. Na verdade, Deus decide as condições conforme o desafio espiritual que ele escolhe para cada um. Jesus e muitos santos nasceram pobres, tiveram vidas e mortes sofridas. Esse trecho do Evangelho mostra bem isso:

“E, passando Jesus, viu um homem cego de nascença.
E os seus discípulos lhe perguntaram, dizendo: Rabi, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?
Jesus respondeu: Nem ele pecou nem seus pais; mas foi assim para que se manifestem nele as obras de Deus”

(João 9:1–3)

Mas então voltamos à nossa pergunta inicial: é somente Deus que decide? Basta ler a Bíblia para entender. A Bíblia é uma história conjunta de Deus e da humanidade. Deus é o Mestre do Jogo e nós somos os jogadores. Nós temos a liberdade de escolher o que vamos fazer a seguir. Mas dependendo das nossas escolhas, o jogo muda.

Deus deseja que sejamos felizes e, mais que isso: ele quer que sejamos salvos. Nós fazemos muitas escolhas ruins ao longo de nossa vida. Deus responde com uma lição. Não necessariamente uma que nos tornará imediatamente felizes a curto prazo, mas uma que pode nos garantir uma felicidade mais duradoura no futuro. E esse futuro pode não ser em kronos (nesse mundo), mas sim em kairos: a salvação.

“The Last Judgment,” detail by Jan van Eyck

No entanto, kairos e kronos não são assim tão separados. Não devemos pensar que enquanto estamos vivos estamos em kronos e somente depois da morte estaremos em kairos. Como disse Peter Kreeft, kronos é o tempo do espaço e da matéria (os corpos no espaço) e kairos o tempo da mente, da vontade e do espírito.

Nós estamos sempre pensando e tomando decisões. De acordo com o cristianismo, a alma possui dois atributos: inteligência e vontade. Sendo assim, nós chegamos em kairos através deles: a nossa inteligência é aplicada a nossa vontade, para que possamos tomar decisões em conformidade com o amor de Deus.

Mas isso não é sinônimo de sentimentalismo. De fato, o cristianismo nos alerta para confiarmos mais em nossa inteligência, que é um atributo da alma, do que em nossas emoções, que não são completamente espirituais, embora possam nos ajudar a tocar a alma. Hoje minhas emoções me deixam alegre e com vontade de orar, mas amanhã minhas emoções podem me deixar triste e sem vontade. A inteligência nos dá estabilidade: o entendimento de que devemos orar sempre, independente de como nos sentimos fazendo isso, pois isso é bom e a vontade de Deus.

A imaginação e as emoções podem nos ajudar, contanto que sejam corretamente direcionadas. Por exemplo, se eu rezo o rosário e imagino as cenas da vida de Jesus, esse é um bom uso da imaginação. Porém, se eu uso a imaginação para visualizar todas as coisas que poderiam dar errado com meu futuro (como grandes sofrimentos) e escolho não seguir o caminho correto, a via indicada por Deus, por medo das provações que encontrarei no meio da caminhada, esse é um uso ruim da imaginação.

Ao usar a inteligência, nós chegamos à conclusão que é melhor seguir a vontade de Deus e ser salvo, mesmo que isso nos gere sofrimentos, do que não seguir a vontade de Deus, ter um conforto temporário, e não ser digno do céu.

O cristianismo nos ensina que céu e inferno não são lugares físicos para os quais vamos após a morte. Afinal, o espaço existe somente em kronos. Céu e inferno estão em kairos. A alma não está no espaço e na matéria. Céu e inferno são estados de espírito, que podemos experimentar não somente após a morte, mas aqui mesmo nesse mundo.

Vamos supor que sua consciência te direcione a seguir a vontade de Deus. Porém, por medo de sofrer, você escolhe a opção mais confortável. Você pode ter muito dinheiro, conforto e diversões, mas sente culpa, uma tristeza ou um vazio na alma. Nesse instante sua alma está experimentando um gosto do purgatório ou do inferno: é quando sua consciência sabe o que é o certo e o errado e, ainda assim, você opta por seguir o caminho errado por vontade própria. Nenhum dinheiro ou conforto desse mundo pode apagar essa sensação, que pode se traduzir em depressão ou uma melancolia persistente.

Por outro lado, aquele que optou por fazer a vontade de Deus, mesmo em meio aos sofrimentos físicos e mentais, já experimenta o gosto do céu ainda em vida: o amor de Deus, pois ele tornou-se fogo e assim consegue participar do fogo que é Deus.

Detail showin the Archangel Michael, Jan van Eyck, 1420-mid 1430s

Mas agora chegamos ao tema principal: como saber qual é a vontade de Deus? Nós conhecemos a vontade de Deus para a humanidade: que sejamos felizes e salvos. Mas como identificar qual é a vontade de Deus particularmente para mim? Afinal, a felicidade e a salvação podem se dar de vários jeitos diferentes.

Em suma: o que Deus quer que eu faça? Aqui e agora. Eu sei o que eu quero fazer, mas como saber o que Ele quer?

Muitas vezes nós temos dificuldade até em descobrir o que nós queremos fazer. Imagine descobrir a vontade de Deus!

A boa notícia é que nós temos um problema a menos: não precisamos saber o que nós queremos fazer. Afinal, nós não somos oniscientes para conhecer a nós mesmos tão bem quanto Deus nos conhece. Em vez de passar a vida toda fazendo um esforço enorme para se conhecer, é muito mais fácil perguntar a Deus: “Senhor, o que tu queres que eu faça?” e simplesmente obedecer.

Fazer a vontade de Deus é muito mais importante do que fazer nossa própria vontade. Isso porque nós somos arrastados por nossas emoções e dúvidas. Deus não muda. Ele sabe o que te fará feliz, o que te tornará santo e digno do céu muito mais do que você poderia descobrir por si mesmo, não importa o quanto se esforce.

Afinal, somos seres com sabedoria finita, mas a sabedoria de Deus é infinita. Basta ter fé e confiar. Mas não se trata de uma fé cega: é uma confiança fruto da inteligência. Tudo o que você deve fazer é direcionar a sua vontade para fazer a vontade de Deus.

Tentar descobrir nossa própria vontade costuma ser um processo longo. Nós pensamos: “o que me faz bem? Que emoção ou sensação eu sinto quando faço isso e aquilo?” e uso esses direcionamentos vagos para decidir o que eu quero fazer. Muitas vezes acabamos optando pelas decisões mais confortáveis ou que nos trazem um prazer imediato, sem pensar no longo prazo ou na salvação de nossa alma.

É muito mais fácil gostar, por exemplo, de um doce, que dá sensação imediata, do que de um problema difícil de matemática, que pode nos trazer um imenso sofrimento para resolver, mas que, uma vez resolvido, dará uma sensação muito mais incrível do que comer um chocolate. Ou melhor, acho que depende do chocolate. Se ele tiver sido preparado por um chef, pode ser melhor do que o problema de matemática, hehe.

Só temos um problema: como desvendar qual é a vontade de Deus para mim se Deus não chega na minha frente e fala claramente? Quais pistas eu devo seguir?

Belshazzar’s Feast (Rembrandt), 1635/1638

Em primeiro lugar, por que Deus não é mais claro? Porque se Deus fosse claro, isso poderia ferir nosso livre-arbítrio. Ele quer que façamos o bem naturalmente. Ele deseja que investiguemos o mundo natural e as produções da humanidade até agora, para assim chegarmos à conclusão que fazer o bem é algo bom e que Deus existe. Deus criou um mundo bom, com um propósito, e nossa vida também tem um propósito.

Quanto mais seriamente investigamos a natureza de Deus e a diferença entre o certo e o errado, com mais rigor seremos julgados. Alguns usam esse raciocínio como desculpa para não investigar se Deus existe e o que é o bem e o mal. Assim terão o álibi da ignorância a favor deles, para não serem julgados tão duramente.

Porém, Deus não é enganado por esses truques baratos (quer ser mais esperto que Deus? Lúcifer até tentou, mas não deu muito certo. Sabemos o que o orgulho causa). Se não sabemos com clareza qual é a vontade de Deus para nós, simplesmente tentamos fazer o melhor possível, seguindo nossa consciência e o caminho do bem. Isso pode ser o bastante.

Segundo o Gênesis, desde o pecado original nossa capacidade de distinguir o bem e o mal está prejudicada e nossa consciência está ferida. Nós sabemos, de forma geral, o que é o certo e o errado, mas às vezes ficamos confusos. Para compensar essa fraqueza humana, temos um anjo guardião para nos guiar e também podemos orar para Deus pedindo orientação.

Orar todo dia pedindo para que Deus revele Sua vontade em relação a nossas vidas é um modo efetivo para que Deus comece a dar algumas pistas, mas devemos ficar atentos a tudo: a sonhos, a situações diversas, a coisas que as pessoas ao nosso redor nos dizem. Muitas vezes Deus usa as pessoas e os acontecimentos diários para nos dar uma mensagem.

Nós podemos tentar conhecer a nós mesmos nos perguntando o que gostamos de fazer e pensando seriamente sobre isso. Porém, como já foi previamente discutido, muitas vezes isso pode nos dar uma resposta superficial.

Talvez eu goste de fazer algo que não vá ajudar tanto as outras pessoas ou contribuir na salvação da minha alma. Porém, se você insiste para Deus que está convicto que deseja seguir esse caminho, Deus pode dar um jeito de fazer com que seu hobby possa te levar a ajudar os outros e a salvar sua alma. Ele está aberto a conversas e negociações. Basta ver a divertida conversa de Deus com Abraão sobre a salvação dos habitantes de Sodoma.

Afinal, ele é Deus. Ele é capaz de fazer o que parece impossível. Mas ele não quer impor sua vontade. Ele não quer, do nada, te ordenar: “minha vontade é que você seja um cozinheiro e alimente os pobres”, sendo que você nunca cozinhou na vida e nem gosta de fazer isso. Deus geralmente tem outra abordagem. Ele quer, ao longo da sua vida, apresentar oportunidades para que você vá tomando gosto por cozinhar, até que um dia você mesmo naturalmente comece a gostar disso.

Por isso querer conhecer o futuro com muita antecedência pode às vezes nos deixar confusos e nos gerar dor. Deus sabe o que está fazendo e sabe como te direcionar ao caminho correto de forma gentil, respeitando seu livre-arbítrio e com pouco sofrimento. Basta aceitar escutá-lo.

Porém, se uma pessoa diz a Deus que está preparada, ela tem o direito de dizer: “Deus, me mostre sua vontade para mim de forma clara, mesmo que isso me gere dor”. Então muitas vezes um santo passa por imensos sofrimentos, porque ama muito mais a Deus do que a si mesmo.

Sendo assim, se você quer entender claramente qual é a vontade de Deus para você, basta pedir. Mas não basta pedir de vez em quando, em momentos que se lembrar. Você deve se ajoelhar e chorar, deve implorar e humilhar-se diante de Deus, para que Ele te conceda essa graça. Deve fazer isso diariamente, pronto a morrer para si mesmo, abrir mão de seu ego e de sua própria vontade, para fazer apenas o que Ele quer e não o que você quer.

Esse processo não ocorrerá sem dor, pois morrer para si mesmo, para os próprios confortos e desejos, gera um grande sofrimento. Em compensação, somente isso te tornará realmente livre.

Nicodemus talking to Jesus, by Henry Ossawa Tanner

“Havia um homem entre os fariseus, chamado Nicodemos, príncipe dos judeus.
Este foi ter com Jesus, de noite, e disse-lhe: Rabi, sabemos que és um Mestre vindo de Deus. Ninguém pode fazer esses milagres que fazes, se Deus não estiver com ele.
Jesus replicou-lhe: Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus.
Nicodemos perguntou-lhe: Como pode um homem renascer, sendo velho? Porventura pode tornar a entrar no seio de sua mãe e nascer pela segunda vez?
Respondeu Jesus: Em verdade, em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus.
O que nasceu da carne é carne, e o que nasceu do Espírito é espírito.
Não te maravilhes de que eu te tenha dito: Necessário vos é nascer de novo.
O vento sopra onde quer; ouves-lhe o ruído, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai. Assim acontece com aquele que nasceu do Espírito”.

(João 3: 1–8)

João Batista dá o batismo da água, que é o batismo do arrependimento. Mas Jesus dá o batismo do fogo e com esse poderemos conhecer Deus.

A água é usada como símbolo do batismo para representar a morte por afogamento. Por isso antigamente o corpo inteiro era submerso. Chorar ou o batismo das lágrimas também é um símbolo da água e de nosso arrependimento sincero diante do Senhor.

Mas o fogo é um tipo de morte ainda mais sofrida e violenta. Para quem nega o amor, o fogo de Deus é o inferno. Para quem não deseja morrer para si mesmo e fazer somente a vontade de Deus, o fogo queima. Porém, para aquele que, por vontade própria, sacrifica tudo em nome do Senhor, o fogo é doce e não machuca. Ele é o próprio céu.

E o vento, nesse trecho da Bíblia, também representa o Espírito Santo. Ele aparece no Velho Testamento quando Deus passa diante do profeta Elias.

Guillaume Courtois (Il Borgognone), The Blood of Christ, late 17th century

Para o cristianismo, há um objetivo máximo na vida: tornar-se santo. Isso significa morrer para a própria vontade e renascer em Cristo. Carregar a sua cruz e sangrar com ele. Beber do cálice de sua Paixão.

Isso é o céu: sangue e fogo. Quem deseja ir para o céu?

Domenico Fetti, c 1622: Elijah Calls Down Fire from Heaven

--

--

Wanju Duli
Wanju Duli

No responses yet