Por que enfermagem?
Eu tinha 17 anos e morava em Brasília há um ano. Eu estava completamente apaixonada pelo catolicismo e pela Bíblia. Eu lia a Bíblia todos os dias e o amor só aumentava. Então eu decidi perguntar numa igreja se havia um convento ali perto. Para minha sorte, me informaram que havia um convento na rua seguinte. Fui lá e conversei com uma freira que me recebeu.
— Eu quero ser freira — falei — como eu faço? Posso vir morar aqui?
— Qual a sua idade?
— 17.
— Nós só aceitamos maiores de 18.
— Ahhhh…
Fiquei desanimada. Ainda faltavam seis meses para eu completar 18 anos. O que, na época, me parecia uma eternidade.
Mesmo assim, conversei bastante com ela. Até provei o vestidinho lindo que as noviças usavam e fiquei toda contente me olhando e sorrindo num espelho de corpo inteiro. Na época meu cabelo era abaixo da cintura.
— Você vai ter que cortar o cabelo nos ombros — ela me disse.
— Ahhh…
— E acordar todo dia às seis da manhã — ela acrescentou.
— Ah…
Eu fui lá toda animada e ela só me dava más notícias! Pelo menos a roupinha era bonita.
— Se você se tornar freira, nossa ordem paga para você estudar enfermagem numa universidade particular — ela me informou.
— Por que enfermagem? — perguntei — atualmente estou estudando para o vestibular para fazer filosofia na UnB.
— Enfermagem tem mais relação com o catolicismo do que filosofia — ela respondeu.
Pensei em argumentar que aquilo não era verdade. Afinal, para ser padre é preciso fazer faculdade de filosofia e depois teologia. Eu sabia disso, mas eu não disse nada. Fiquei pensando a respeito.
Eu não voltei para esse convento seis meses depois. E isso aconteceu devido a um acontecimento aparentemente trivial, mas que mudou as coisas.
Um mês depois, eu pretendia visitar um mosteiro católico em que os irmãos cantavam canto gregoriano todo domingo. Eu queria assisti-los cantando. Mas descobri que havia um templo budista em que o culto começava 1h mais tarde: 8h da manhã em vez de 7h. Como eu nunca tinha ido num templo budista, resolvi ir nesse.
Eu fiquei encantada ao ver o ofício no templo budista. Imediatamente eu me apaixonei pelo budismo e passei a frequentar esse templo quatro vezes por semana, por mais de um ano. Eu ajudava até a varrer o chão, nas vendas da lojinha e em preparar os arranjos florais. Eu não ganhava dinheiro para isso, ajudava voluntariamente, porque para mim era uma alegria estar lá.
Um ano depois, procurando religiões parecidas com o budismo na internet, eu descobri o jainismo. Nessa religião eles dão mais ênfase em ajudar os outros com trabalhos de caridade do que atingir a iluminação.
Os monges do jainismo são tão radicais que cobrem a boca com um lenço para não engolir insetos acidentalmente. Eles também levam uma vassourinha e varrem o chão por onde passam para não pisar em insetos acidentalmente. Claro que tudo isso é simbólico, pois é impossível viver sem matar. Para eles ser apenas vegetariano é pouco. Eles queriam mais (eu também me tornei vegetariana aos 18 anos e continuei a ser por dez anos, até meus 28 anos. Porque eu parei de ser é uma história para outro post).
Na época eu achava que o budismo era muito “leve”. Eu achava que alguns monges hindus e os monges do jainismo levavam uma vida mais rigorosa e eu gostava disso.
Encontrei uma comunidade de jainismo no orkut (só havia indianos nela, já que jainismo praticamente só existe na Índia e em países da Europa e América do Norte para os quais alguns indianos imigraram e fundaram templos). Eu conversava com muitos indianos sobre jainismo (com quem mais eu poderia conversar?) e por causa disso na época meu inglês melhorou muito. Até porque eu li dezenas de livros de jainismo e como só havia livros em inglês e hindi, eu tinha que ler em inglês mesmo.
Eu gostava muito do jainismo digambara, porque eles são mais rigorosos que os svetambara (essas são seitas do jainismo, assim como existem as duas grandes divisões do budismo, Mahayana e Theravada. Eu também sempre gostei mais do Theravada, e vocês já imaginam o motivo). Porém, no jainismo digambara é dito que as mulheres precisam renascer como homens para alcançar a iluminação. E os monges podem andar pelados pela rua, mas as monjas não podem. Eu dizia para um dos meus amigos indianos que eu também queria ser monja e poder andar pelada na rua para não me apegar às minhas posses, mas ele dizia: “Não, mulheres não podem andar peladas na rua porque isso iria atiçar o desejo dos homens, mas os homens podem andar pelados porque as mulheres têm mais autocontrole” hahaha. Se elas têm mesmo mais autocontrole, deviam ser elas a atingir a iluminação, não?
No budismo Theravada também há muitas restrições e regras chatas para mulheres que desejam ser monjas. Elas precisam sempre andar atrás dos monges e sempre receber comida na fila depois dos homens (eu vi isso num mosteiro budista Theravada que passei um mês na Inglaterra).
Mesmo assim, o jainismo me empolgava muito devido à ênfase em ajudar os outros. Eu descobri uma ONG de jainismo no sul da Índia que dava comida para os pobres, aulas para as crianças e tinha até um hospital. Vários monges e monjas trabalhavam nesse hospital. Eu tinha contato com eles por e-mail e uma monja até conseguiu para mim uma passagem para a Índia de graça para eu passar um período lá fazendo trabalho voluntário (eu acabei não indo porque meus pais achavam que eu era muito nova).
Nesse momento eu lembrei da conversa que eu tive com a freira um ano atrás. Por isso, fiz um cursinho para o vestibular e seis meses depois passei no curso de enfermagem da UnB.
Comecei a cursar, toda empolgada, com planos de ser enfermeira e depois me tornar uma monja e trabalhar nesse hospital na Índia. Nessa época eu tinha 19 anos e eu também fazia trabalho voluntário em creches e hospitais numa organização de trabalho voluntário para adolescentes (chamada “Sonhar Acordado”).
Eu ainda conversava com meus amigos indianos sobre jainismo na internet. Um deles, com quem eu conversava mais, fazia parte de uma seita do jainismo digambara mais parecida com o budismo: ela se focava mais em atingir a iluminação do que ajudar os outros.
Resumindo: ele me convenceu que atingir a iluminação era mais importante que ajudar os outros. Afinal, primeiro você tem que se iluminar e sendo iluminado você tem mais sabedoria para ajudar.
Pensando agora, esse não deixa de ser um raciocínio perfeccionista: primeiro se torne perfeito e só depois ajude os outros, para ser um exemplo para os outros e também para ajudar de forma mais sábia.
Hoje em dia eu não concordo com isso. Eu não estou dizendo que é impossível atingir a iluminação, pois eu acredito que Buda, Mahavira e muitos monges inclusive dos dias de hoje conseguiram atingir a iluminação. Esse é um objetivo nobre. Assim como é nobre que muitos santos católicos e não católicos alcancem a santidade.
No entanto, hoje em dia “atingir a iluminação” não é minha meta de vida (aparentemente, quando eu era adolescente, eu tinha essa meta em vista!). Atingir a santidade já é um conceito um pouco diferente, que embora não seja minha meta (pode soar meio arrogante dizer “quero ser santo”, mas eu não acho isso quando ouço alguns dizerem com sinceridade e humildade), também é algo que respeito. De certa forma, todos os católicos são convidados a “atingir a santidade”, mas há diferentes vocações para isso.
Não vou tratar desse assunto a fundo aqui, pois isso seria tema para um texto separado. Vamos voltar às minhas conversas que tive com esse amigo.
Eu fiquei triste quando ele me convenceu que “simplesmente ajudar os outros” de forma imperfeita não fazia sentido. Afinal, nós continuávamos rodando na roda do karma. O objetivo da vida era quebrar o ciclo de renascimentos e mortes e não “jogar o jogo”, seja o jogo do bem ou do mal.
Então que diabos eu estava fazendo no curso de enfermagem se o objetivo da vida não era ajudar os outros? Saí do curso, desiludida. As religiões estavam confundindo minha cabeça, então eu voltei para a filosofia. Li dezenas de livros de filosofia. Porque eu precisava de uma resposta sobre o sentido da vida!
Resultado: aos 20 ou 21 anos entrei no curso de filosofia da UnB. Eu fiz uma pequena confusão lá, porque no diretório acadêmico eu tentei iniciar um grupo de meditação e eu dizia que a filosofia não era somente teórica, mas que devia ser vivida na prática, como faziam os antigos filósofos gregos! Eu acabei falando meio mal do pessoal da filosofia num blog da internet, mas eu não sabia que meus colegas iam ler. Acabei adquirindo má fama, meus colegas ficaram sabendo (e até meu professor) e foram ler meu blog. Depois um aluno veterano da filosofia que soube da história quis conversar comigo durante uma festa do diretório. Tivemos uma conversa complicada de longas horas.
Enfim, talvez um dia eu conte essa história em mais detalhes. Vou parar aqui para não fugirmos do assunto.
Aos 22 anos saí do curso de filosofia. Voltei para Porto Alegre e lá comecei a fazer o curso de teologia da PUCRS com bolsa integral, porque eu tirei primeiro lugar (o motivo para isso é que quase todos os alunos do curso de teologia são seminaristas e o curso é pago pelo seminário, portanto ninguém precisa se esforçar muito para tirar uma boa nota para tentar uma bolsa).
Eu tenho muitas histórias interessantes da curta época que cursei teologia e filosofia, mas deixarei essas histórias para outra hora.
A verdade é que meu atrito cristianismo versus budismo (ajudar os outros versus atingir a iluminação) não havia sido totalmente resolvido. Então eu também abandonei o curso de teologia.
No caso do curso de filosofia, eu ficava indignada com aquelas aulas em que se debatia coisas como “por que a bola é vermelha?” (de um ponto de vista filosófico e não científico). Qual era exatamente o objetivo de saber isso? Era uma mera diversão intelectual? Eu queria algo que tivesse relação com o sentido da vida, mas por que parecia que a filosofia estava tão longe do sentido, mesmo parecendo estar mais perto?
Novamente, lembrei do eco das palavras daquela freira: “Enfermagem tem mais relação com o catolicismo do que filosofia”. Afinal, mesmo o curso de teologia, que era para ser algo mais espiritual que filosofia, às vezes também caía na velha discussão de São Tomás de Aquino: “quantos anjos podem dançar na cabeça de um alfinete?”. O que exatamente isso tinha a ver com o SENTIDO?
A intenção desse post não é ser uma biografia da minha vida, por isso estou deixando de fora outros acontecimentos importantes, como outros cursos que comecei e parei (filosofia e teologia não foram os únicos. Falei desses dois porque tinha alguma relação com a enfermagem).
Quando eu tinha por volta de 24 anos, pensei sobre todos os cursos que eu já havia começado na faculdade. Cheguei à conclusão que o curso de enfermagem foi o que mais gostei de todos. Como ele era um curso mais prático, eu não me irritava com aquelas aulas que falavam sobre a bola vermelha ou o sexo dos anjos e que não pareciam servir para nada.
Eu ainda amo filosofia e teologia. Eu só não sou o tipo de pessoa que tem a paciência ou personalidade de ir tão a fundo nesses temas. Admiro quem tem. Não é para mim. Acho que no fundo eu sempre fui uma pessoa mais prática, embora eu goste de teoria também.
Em 2013, eu e meu namorado fomos para a Austrália. A razão foi muito simples. O curso de enfermagem no Brasil dura 5 anos. Como eu já tinha começado e largado vários cursos na faculdade, eu estava com um pouco de pressa. Como na Austrália o curso de enfermagem dura apenas 3 anos, achei que era um bom plano para eu conseguir me formar antes dos 30. O Luiggi já tinha se formado na faculdade, então achamos que era uma boa época para tentar isso.
Dois anos antes, eu havia viajado para a Inglaterra (para um retiro) e ele para a Coreia do Sul (para a faculdade), então estávamos animados para viajar. Na verdade, nessa época do retiro minha primeira opção era a Tailândia (onde havia muitos mosteiros bons para retiros budistas). No entanto, um dos únicos mosteiros budistas Theravada da Tradição das Florestas da Tailândia que aceitava mulheres estrangeiras era na Inglaterra.
Antes de viajar, nós analisamos algumas opções de países de língua inglesa. Na Inglaterra o curso de enfermagem também dura apenas 3 anos, mas é mais caro. Na Austrália eu tinha a opção de fazer um curso técnico de enfermagem por seis meses, que equivale ao primeiro ano da faculdade de enfermagem. Portanto, após seis meses lá eu já poderia trabalhar como técnica de enfermagem para ajudar a pagar o custo de dois anos de curso. E pronto: em dois anos e meio eu já teria meu diploma. Os planos eram esses.
No Canadá e na África do Sul o curso de enfermagem dura 4 anos, o que também é menos que no Brasil. Na verdade, minha opção inicial era a África do Sul, pois além de eu ser apaixonada pela África, lá as coisas são bem mais baratas. Mas acabamos optando pela Austrália, até porque eu tinha uma amiga australiana na internet que me convenceu a ir para lá (eu a conheci pessoalmente quando viajei. Nós saímos num encontro duplo com nossos namorados).
Estivemos na Austrália bem na época que o Nelson Mandela morreu. Lembro que pensei: “Se eu tivesse escolhido a África do Sul, eu estaria lá nesse momento!”, mas é claro que não tinha como eu saber disso. A África do Sul tem um dos programas mais interessantes de combate à aids e Mandela apoiou muito a campanha.
Nós permanecemos apenas 4 meses na Austrália e nesse período fiz um curso de inglês próprio para quem está se preparando para ingressar numa universidade de língua inglesa. Foi muito divertido, pois metade dos meus colegas eram chineses e metade tailandeses, além de duas polonesas, dois colombianos e uma da Indonésia. Fazíamos muitas apresentações de Power Point. Também lembro de um trabalho que eu fiz para esse curso em que fiz pesquisas sobre os aborígenes australianos numa biblioteca de lá.
Enquanto estive em Sydney comprei muitos livros numa livraria chamada Kynokuniya (também fomos lá para um evento de Halloween), incluindo livros de enfermagem.
A maior parte dos livros de enfermagem que li eram relatos de enfermeiras que trabalhavam em emergência ou na UTI. Esses relatos ao mesmo tempo me fascinaram e me assustaram. Os primeiros semestres do curso de enfermagem são principalmente teóricos. O mais próximo de prática que cheguei no meu curto período do curso de enfermagem da UnB tinha sido as maravilhosas aulas de anatomia, nas quais mexíamos nos cadáveres para estudar.
Então aqueles relatos dos livros me fizeram recuar e eu comecei a ficar em dúvida se era realmente enfermagem que eu queria fazer.
Mas eu não podia ter dúvida. Eu estava num país caro, prestes a pagar muito por um curso, que embora só fosse durar dois anos, era bem caro. Eu já tinha sido aceita em umas três universidades e só precisava escolher. Minha amiga australiana estava me dando dicas, pois ela mesma estudava arquitetura numa universidade de Sydney (UNSW).
Eu e o Luiggi trabalhamos um pouco no nosso período em Sydney (viajamos com um visto que permitia trabalhar). Depois que eu terminasse meu curso técnico, meu salário seria ainda maior. Se eu tivesse certeza que eu queria fazer enfermagem, eu teria continuado lá.
Mas como eu estava em dúvida, achamos mais seguro retornar para o Brasil. No ano seguinte, eu entrei para o curso de enfermagem da UFRGS e o Luiggi entrou para o curso de design visual da UFRGS (o segundo curso universitário dele).
Mas eu queria trabalhar logo na área, por isso em 2014 eu pensei em iniciar um curso técnico de enfermagem, para poder trabalhar como técnica enquanto eu cursava a faculdade.
Em 2014 fui no “Programa UFRGS Portas Abertas”. Nesse dia, você escolhe o curso no qual tem interesse e vai para a faculdade assistir em torno de 1h ou 2h de apresentação de professores sobre o curso.
Nesse dia conheci a Escola de Enfermagem da UFRGS (para onde eu iria diariamente nos seis anos seguintes). Duas professoras fizeram uma apresentação muito legal sobre o curso e eu fiquei empolgada (haveria depois alguns mini cursos práticos).
No final da apresentação fui conversar com uma das professoras em particular para tirar uma dúvida.
— Estou pensando em começar agora um curso técnico de enfermagem para já adquirir experiência — eu disse a ela — então quando eu começar o curso da UFRGS no ano que vem, pretendo conciliar trabalho e estudos.
— Nós não recomendamos fazer isso — a professora me disse — o curso de enfermagem é muito puxado, tanto na parte teórica quanto prática. Inclusive alguns alunos escolhem voluntariamente dividir os créditos em mais semestres, finalizando o curso em seis anos em vez de cinco.
— Mas a experiência que eu vou adquirir no curso técnico não vai me ajudar na parte prática do curso da faculdade? — perguntei.
— Eles ensinam algumas coisas erradas nesses cursos técnicos — ela disse — por exemplo, você aprende a realizar um procedimento com a técnica errada e depois adquire vícios difíceis de abandonar. A gente prefere pegar os alunos do zero e ensinar desde o início a maneira certa de fazer.
Essa conversa me deixou desanimada. Eu queria começar logo a parte prática. Eu não podia acreditar que eu teria que passar por três semestres inteiros só de teoria para só começar a prática no quarto semestre.
Eu gosto da teoria também. Gosto de biologia em geral, anatomia, fisiologia. Mas eu queria atender pacientes, lidar com as pessoas. Quando eu teria a chance de fazer isso? Claro, eu podia fazer trabalhos voluntários em ONGs ou na Cruz Vermelha mesmo sem ser enfermeira, mas eu estava ansiosa para atender pacientes, fazer procedimentos e ver como eu me sentia.
Hoje em dia eu me arrependo um pouquinho de não ter feito o curso técnico de enfermagem, mesmo com o alerta da professora. Meus colegas da faculdade que já eram técnicos tinham muita experiência e conhecimento.
Além do mais, a resposta dessa professora também tinha um viés perfeccionista, semelhante ao perfeccionismo do meu amigo indiano que alegava que primeiro temos que atingir a iluminação e só depois ajudar os outros. Na visão dessa professora, primeiro temos que estudar quase dois anos de teoria a fundo para começar a dar os primeiros passos na parte prática. Para fazer tudo perfeitinho.
Mas na prática não funciona assim. Ao estudar a teoria sem ter nenhuma prática, eu via muita coisa que eu estudava apenas no papel sem ser capaz de associar qual seria a aplicação prática daquilo. O resultado foi que eu só entendi o significado de várias coisas que aprendi na teoria anos depois, quando comecei a aplicar na prática. Se eu tivesse estudado aquela teoria já tendo atendido pacientes antes, eu teria absorvido o conteúdo muito mais.
Agora eu sei que algumas universidades, como Harvard, já mudaram o currículo dos cursos de medicina e enfermagem. No novo currículo, os alunos já vão para o hospital desde o primeiro semestre, exatamente para poder associar teoria e prática desde cedo.
Outra coisa que me aborreceu no curso é que eu estava muito ansiosa para fazer estágios nas área de UTI e emergência (pois na maior parte dos livros de enfermagem que li as enfermeiras trabalhavam nessas áreas e eu também queria sentir o que elas sentiram), mas os professores praticamente só permitiam que atuássemos nessas áreas no último ano do curso, já que eram mais complexas.
E adivinha o que aconteceu no meu último ano de curso? A pandemia! Uma ocasião em que precisavam muito de enfermeiros nessas duas áreas. Porém, por causa da pandemia todos os estágios opcionais foram cancelados. Por causa do raciocínio perfeccionista do curso, eu perdi um aprendizado precioso. Afinal, eu tinha planejado para as férias de julho de 2020 meu estágio em UTI ou emergência. Como ele foi cancelado, eu fui prejudicada.
Eu vou falar mais disso num texto futuro que eu escrever, mas por causa desses cursos de enfermagem que duram cinco anos e esses cursos de medicina que duram nove anos (na França, por exemplo. Basta assistir o filme francês “Primeiro Ano” de 2018 para sentir o drama), que são difíceis de entrar e excessivamente teóricos, todos os países enfrentam falta de enfermeiros e médicos. Principalmente em cidades do interior. Principalmente em épocas de guerra ou pandemia. Inclusive estou lendo um livro sobre isso agora, de um autor francês (escrito durante essa pandemia).
Existem dezenas de universidades no mundo que funcionam num sistema de trimestres em vez de semestres. Eu acho muito melhor, pois isso otimiza muito mais o tempo. Se não fossem os técnicos de enfermagem, auxiliares e paramédicos, o mundo estaria num caos muito maior, se fosse depender somente do minúsculo número de enfermeiros e médicos formados anualmente (minúsculo em comparação ao que a população realmente precisa). Aliás, assisti numa palestra que os cursos de enfermagem da Austrália duram 3 anos exatamente porque a maior parte dos estudantes já sai do curso direto para uma pós-graduação, principalmente especialização. Faz mais sentido assim.
O raciocínio dessa professora não é somente perfeccionista, mas elitista. Esse raciocínio sugere que só pode cursar a faculdade de enfermagem ou medicina alguém que tenha dinheiro suficiente para não precisar trabalhar e que os pais banquem as despesas durante a longa duração do curso.
O resultado desse desejo de formar médicos e enfermeiros “perfeitos” na faculdade é criar um sistema imperfeito. Na prática, quando um país entra em guerra a maior parte dos médicos ricos saem do país e sobram os médicos recém-formados, estudantes de medicina, enfermeiros e estudantes de enfermagem. Na vida real, são enfermeiros que podem acabar tendo que realizar amputações e fazer cesáreas. Isso está acontecendo agora em vários países em guerra (ou mesmo países pobres em paz).
Agora durante a pandemia os hospitais preferem se recusar a receber pacientes devido à falta de médicos e enfermeiros especialistas na área de UTI, por medo de serem processados por imperícia. Ou seja, eles preferem dizer: “morram em casa” e optam por não dar nenhum atendimento em vez de correr o risco de atender de forma imperfeita.
Se você ver fotos da época da gripe espanhola (ano passado eu li o livro “A Grande Gripe” de John M. Barry e recomendo) verá corredores atolados de camas e macas improvisadas, ou até pacientes no chão em hospitais de campanha. No começo da pandemia da gripe espanhola, eles convocavam médicos e enfermeiros voluntários. Com a falta desses, começaram a convocar qualquer pessoa com qualquer experiência em enfermagem. Na falta desses, eles começaram a convocar qualquer um.
Honestamente, eu prefiro essa postura do que a postura atual, que simplesmente diz: “Não temos médicos e enfermeiros suficientemente treinados para atendê-los e nem equipamentos. Não podemos estender um pano no chão e colocar um técnico de enfermagem para te dar um mínimo de atendimento da forma que conseguimos improvisar, então morram em casa sem atendimento nenhum”.
Em 2017 fiz trabalho voluntário com as Missionárias da Caridade em Calcutá, na Índia. Fiz trabalho voluntário num lugar chamado “Casa dos Moribundos”, que dá o mínimo de atendimento e conforto para pessoas que estão morrendo. Não é um hospital, mas um lugar em que se fornece cama, comida, palavras de conforto, analgésicos e outros atos simples, mas que fazem toda a diferença.
Hoje em dia geralmente não há mais “casas da morte”. Ou existem hospitais com profissionais treinados ou nada. Não há meio termo. Ou há profissionais graduados ou civis sem o mínimo de conhecimento em primeiros socorros. Já vi professores meus dizendo que em geral se opta por não dar cursos de primeiros socorros para civis por medo de eles não realizarem um bom atendimento e que é mais seguro aguardar que os profissionais cheguem. Mas e se eles não chegarem a tempo ou nem chegarem?
Enfim, um dia eu escrevo um texto exclusivamente sobre isso para falar com mais detalhes. Mas o fato é que exatamente essa questão foi um grande divisor de águas para eu optar pela enfermagem em vez de optar, por exemplo, por ser uma freira.
Você pode me dizer que uma pessoa pode ser ao mesmo tempo freira e enfermeira, mas não é bem assim. Aquela ordem que visitei era uma exceção. Hoje em dia ordens desse tipo são cada vez mais raras.
Eu gosto da Igreja Católica e costumo defender as Missionárias da Caridade. Mas é fato que a Igreja costuma pagar o curso de filosofia e teologia somente para homens que querem ser padres. Para mulheres que querem ser freiras, a Igreja raramente paga uma graduação e muito menos uma pós-graduação. Padres não precisam fazer voto de pobreza. Eles podem ser professores universitários, por exemplo, e receber um salário. No entanto, se você é uma freira, caso tenha tido a rara sorte de a Igreja te pagar um curso de pós-graduação para você dar aulas numa universidade (geralmente freiras só dão aulas para crianças), você é obrigada a fazer um voto de pobreza. O dinheiro que receber vai todo para a Igreja.
Sabemos que esse preconceito contra as mulheres não existe somente no catolicismo, mas em outras vertentes do cristianismo, hinduísmo, jainismo, budismo e outras religiões que descobri ao ler sobre ou testemunhar em primeira mão. É realmente difícil ser mulher e se aventurar a ter uma religião (uma mulher muçulmana só pode casar com um homem muçulmano, mas um homem muçulmano pode se casar com uma mulher cristã). E muito mais difícil se você busca a vida consagrada (ser monja ou freira, por exemplo).
Pegue o exemplo das Missionárias da Caridade. Embora elas façam diariamente o trabalho de enfermeiras, elas só recebem um curso de poucos meses de enfermagem, que não é suficiente nem para se qualificar como técnica em enfermagem. No máximo, são assistentes.
Mas na prática elas fazem o trabalho de enfermeiras. Há pouco tempo eu critiquei o perfeccionismo do mundo atual, que busca qualificar demais seus profissionais a ponto de faltar gente para atuar. Pois o catolicismo sofre do mal oposto: a falta de qualificação de religiosos que atuam como enfermeiros e médicos. Parece que é difícil achar um meio termo.
É claro que a Igreja Católica tem dinheiro para qualificar as freiras que atuam como enfermeiras. Porém, devido ao preconceito contra mulheres, a Igreja geralmente se recusa a pagar cursos técnicos ou graduações de enfermagem para elas. E eu não estou inventando isso, pois eu já li várias biografias de mulheres que foram membros de ordens católicas como as Missionárias da Caridade por longos anos.
O livro “Hope Endures” de Colette Livermore foi o livro que me fez esquecer a ideia de ser freira. Ela é uma australiana que entrou para as Missionárias da Caridade com 18 anos e permaneceu lá por 11 anos. Ela lamentava que o atendimento prestado pelas MCs não fosse melhor, se ao menos elas tivessem mais treinamento em enfermagem. Elas eram mandadas para atuar em países sem se vacinar e pegavam doenças graves que podiam ser facilmente evitadas com vacinas. Quando saiu das MCs, ela iniciou o curso de medicina com mais de 30 anos. Aos 40 e poucos anos passou a trabalhar em ONGs.
Albert Schweitzer (Prêmio Nobel da Paz) tem uma história parecida: era um teólogo, filósofo e músico famoso, que aos 30 e poucos anos decidiu fazer medicina e foi atender doentes na África.
Outro livro interessante sobre o assunto que eu li foi “An Unquenchable Thirst” de Mary Johnson. Foi escrito por uma americana que entrou para as MCs com 17 anos e permaneceu lá por 20 anos. Ela fala sobre a questão de a Igreja não permitir que as MCs façam um curso de graduação e como isso a indignou. Outra coisa que a indignou: ela entrou para as Missionárias da Caridade porque queria atender pacientes diretamente, lidar com pessoas, dar banho nos doentes, fazer curativos. Porém, como devia obediência à ordem, ela foi obrigada a realizar um monte de trabalhos administrativos e lidar dia e noite com papéis. Isso era algo que ela não queria fazer, mas foi sua única opção.
Eu fiquei aterrorizada lendo esses dois livros, mas também muito grata pelas informações valiosas. Imagine só se eu tivesse decidido ser uma freira numa ordem que atende pessoas doentes e me proibissem de ver os doentes, mas me obrigassem a trabalhar apenas assinando papéis. Seria um pesadelo. Sinceramente, eu prefiro mil vezes dar banho, limpar fezes, vômito e tirar piolhos de pacientes do que isso.
A questão é que as pessoas são diferentes. Ainda bem que existem pessoas que gostam da parte administrativa, pois ela também é importante e essencial em qualquer tipo de atendimento da área da saúde.
O problema é você não ter a liberdade de fazer algo que quer fazer. Isso é mostrado de forma perfeita no famoso filme ‘A história de uma freira” de 1959. Na história, o sonho da personagem principal, que é freira, é fazer trabalho missionário com doentes na África. Porém, a Igreja faz de tudo para não deixá-la realizar esse sonho. Ela é colocada em diversas funções administrativas ou outras coisas que não quer fazer. E quando finalmente consegue ir para onde quer, sofre uma série de restrições.
Seria apenas uma história levemente triste e curiosa se o filme não refletisse tão fielmente a realidade. É verdade que no passado, quando a única opção para as mulheres era morrer parindo seu décimo filho, ser freira ou monja representava, pela primeira vez, o mais próximo que uma mulher já sonhou em ser livre. As monjas da Idade Média podiam até mesmo possuir terras e foram algumas das primeiras professoras mulheres universitárias e cientistas (embora fossem exceções).
Eu tive sorte de nascer mulher no século XXI. Se eu tivesse nascido mulher alguns séculos atrás, a opção de ser freira seria muito tentadora. Seria uma das únicas formas de poder estudar.
Atualmente, diferente de cem anos atrás, ser ao mesmo tempo freira e enfermeira é algo raro. Os hospitais que antes eram administrados por freiras, agora são administrados por médicos e enfermeiros. Isso, em parte, tem relação com a postura da Igreja Católica de se recusar em gastar dinheiro com suas freiras para qualificá-las. Afinal, como as freiras são obrigadas a fazer votos de pobreza, não têm a opção de pagar um curso universitário do próprio bolso. Diferente dos padres e frades que, se quiserem, podem pagar do próprio bolso um curso caso a Igreja se recusasse a pagar (sendo que a Igreja se recusa com menos frequência no caso de homens. Afinal, homens podem ser padres e administrar igrejas. Eles recebem doações dos fiéis que mantém a Igreja funcionando, então vale a pena investir neles, mas não nas freiras. Em muitas ordens, freiras são empregadas domésticas dos padres).
Tudo isso tem raiz em duas regras rígidas: mulheres não podem ser padres e são obrigadas a fazer voto de pobreza. Se isso não muda, não tem como a situação das freiras na Igreja mudar.
Eu sou imensamente grata pela Igreja Católica, pois foi por causa dela que comecei a me interessar por enfermagem, aos 17 anos. Aos 24 anos, quando meu interesse no catolicismo retornou, não foi surpresa que meu interesse pela enfermagem tenha retornado junto.
Mas nada é perfeito. Eu não concordo com a postura da Igreja Católica em relação às freiras que cuidam dos doentes. Como eu não sou perfeccionista, eu aceito ser católica mesmo sem concordar com tudo que a Igreja Católica diz. Porém, para ser freira ou monja católica, é preciso uma fé ainda maior, que eu não tenho. Uma freira católica precisa abrir mão de muito mais coisas que um frade ou padre.
Eu prefiro ser uma enfermeira leiga (ou seja, sem ser religiosa consagrada), tendo a certeza que poderei cuidar diretamente de pacientes e prosseguir os meus estudos, do que ser freira e enfermeira, sabendo que não terei permissão de prosseguir meus estudos e que certamente serei obrigada a me envolver com mil e uma tarefas administrativas. E eu não estou falando aqui só de tarefas administrativas diretamente relacionados à enfermagem (pois essas existem em qualquer área), mas também de coisas sem a menor relação com isso que freiras são obrigadas a fazer, o que diminui o tempo delas com os pacientes.
Eu ainda admiro freiras e monjas e sempre vou admirar! Conheço monjas que são pessoas muito mais bondosas e gentis do que eu jamais serei capaz de sonhar em ser um dia. Resta-me admirá-las, mas seguir meu caminho.
E agora que cheguei nesse ponto, permitam-me contar a vocês sobre os Médicos Sem Fronteiras (MSF) e a Cruz Vermelha (ICRC). Para quem não sabe, essas são as duas maiores ONGs que prestam atendimento na área da saúde. O MSF é o irmão mais novo e a Cruz Vermelha é a irmã mais velha. Em outro texto falarei deles com mais detalhes, pois já li vários livros a respeito.
Desde antes de entrar para o curso de enfermagem, eu já sonhava em um dia fazer missões no MSF e na Cruz Vermelha. Mas esse sonho só se intensificou de verdade quando eu estava no sexto ou sétimo semestre do curso (não me recordo ao certo qual) e assisti a uma palestra do MSF em Porto Alegre.
Essa palestra literalmente mudou minha vida. Os planos que eu tinha para a minha vida subitamente mudaram. Eu não irei contar agora em detalhes de que forma meus planos mudaram, pois foi muita coisa (um dia contarei isso de forma bem dramática num texto separado hahaha). Direi apenas o básico.
O palestrante contou como era atuar em países em guerra. Foi paixão imediata. Naquele dia eu soube que meu sonho era exatamente esse: prestar cuidados de saúde em países em guerra. Fazer triagem de guerra, estar lá na hora que o paciente chegasse, participar das amputações e cirurgias.
Foi por isso que em fevereiro de 2020 eu fiz estágio opcional no Centro Cirúrgico Ambulatorial. Foi por isso que meu último estágio que terminei há poucos meses foi no Bloco Cirúrgico. É por isso que eu estou estudando francês e árabe (os dois idiomas mais importantes para saber em organizações humanitárias depois do inglês, já que são falados em muitos países da África e do Oriente Médio. Mas é verdade que eu também gosto de árabe por causa do islamismo).
Uma pandemia é terrível. Mas uma guerra é muito pior. E eu quero poder atuar no pior cenário possível. Quero ir para o lugar na Terra mais perto do inferno, como prova de amor para Deus que um dia posso me tornar digna de merecer o céu. E se eu não for digna do céu não importará mais, pois não temerei mais o inferno se eu passar tanto tempo nele aqui na Terra a ponto de ele se tornar tão familiar.
Então agora você já conhece meus planos para o futuro: ir para o inferno. Desculpe, mesmo depois de tantas leituras e vivências, não consegui pensar num plano melhor. Até hoje, não sou capaz de conceber algo melhor que isso para a minha vida.
Se você se perguntava nesses últimos anos porque eu lia tantos livros com relatos de guerra e tantos livros sobre a Síria, aí está sua resposta. Segundo os boatos, a guerra na Síria é a pior guerra atual (embora a guerra no Iêmen, no Afeganistão e no Sudão sejam rivais de peso).
De qualquer forma, eu, como recém-formada em enfermagem, não posso ir para uma guerra sem experiência nenhuma. Se o Brasil entrasse em guerra agora seria diferente. Se é no seu próprio país, atuam todos, até estudantes. Mas se é uma guerra em outro país, faz sentido que seja exigido mais tempo de preparo.
Esse é o raciocínio dos grupos humanitários, pelo menos. Se for pensar, não deixa de ser meio estranho: se é guerra no meu país eu atuo e se é no país dos outros dá pra esperar? Como assim? Eles também não são seres humanos?
Mas tudo bem, se eu fosse para uma guerra agora, mesmo com os estágios que eu fiz na área cirúrgica e mesmo com as dezenas de livros que eu li sobre o assunto, eu suspeito que eu iria mais atrapalhar do que ajudar, ao menos inicialmente. Quanto mais passa o tempo, mais eu vejo as lacunas no meu conhecimento e prática. Preciso aprender mais sobre cirurgia, emergência, triagem, primeiros socorros, obstetrícia, etc.
O MSF e a Cruz Vermelha Internacional só contratam profissionais com no mínimo três anos de experiência. Você pode trabalhar na Cruz Vermelha local ou com sorte até conseguir um trabalho no MSF com menos experiência em tempos de pandemia. Até pensei em ir para Manaus após me formar, mas depois que a situação ficou ruim em Porto Alegre, percebi que eu não preciso sair daqui por enquanto.
Mas mesmo que eu consiga fazer algumas missões em ONGS daqui alguns anos, eu também tenho outros planos de longo prazo para a minha vida que eu não irei contar agora. E eu tenho o plano B, caso o plano A não dê certo.
Embora o objetivo desse post tenha sido contar porque eu escolhi a enfermagem, acabei falando de muitos outros assuntos relacionados. E em posts futuros contarei ainda mais.
Claro, eu sou um ser humano. Sim, eu posso mudar de ideia sobre muitas coisas, assim como eu já mudei antes. Não quero ter medo das minhas mudanças, mas confiar em mim mesma.
A pandemia de covid-19 mudou alguma coisa em relação aos planos que eu tinha antes? Sim e não. No quadro geral das coisas, continuo com os mesmos planos: atuar em guerras no futuro e, até chegar lá, complementar minhas práticas e estudos. Porém, a pandemia atrasou a minha formatura. E é possível e provável que eu me foque na questão da pandemia, que é o que está acontecendo agora no meu país e no mundo, e não apenas ficar pensando em guerras que estão acontecendo em outros países.
Vocês sabem que eu sempre gostei dos mártires católicos. Nos últimos anos eu pensava que, se um dia eu me tornasse algo parecido com um mártir, seria morrendo numa guerra em alguma ONG que eu fosse atuar no futuro, sendo explodida por uma bomba ou mina terrestre, ou sendo sequestrada por terroristas do Estado Islâmico e sendo torturada. Ou eu teria os membros amputados numa mina terrestre e seria obrigada a voltar para casa.
Mas as coisas mudaram um pouco. O Estado Islâmico já não tem tanta força na Síria e no ano passado começou a pandemia. Antes eu pensava que eu fosse morrer numa guerra ou de malária. Mas então veio a covid-19. E parece que uma vacina para a malária está em andamento.
A guerra do Azerbaijão e da Armênia começou e terminou em poucas semanas no fim do ano passado. E começou a guerra na Etiópia. Eu sempre fico de olho nas guerras atuais, para saber quais idiomas preciso aprender.
Eu ainda estou viva e por um momento pensei que eu poderia nem sobreviver para me formar. É verdade que esse ano eu tomei as duas doses da vacina, mas nós não sabemos quando surgirão novas variantes.
Pode parecer meio bobo querer sobreviver à covid para poder ir para a guerra um dia. Ou para poder atender pacientes com ebola no Congo. Mas eu conheço gente com sonhos mais estranhos que os meus. De qualquer forma, quem decide quando eu morrerei é Deus.
A pandemia nos mostrou que pode ser precipitado fazer planos de longo prazo. A pandemia me mostrou que eu devo apenas me sentir grata pela minha vida e pelas pessoas maravilhosas que eu tenho ao meu redor. E a vida é assim mesmo: vamos construindo novos sonhos conforme as coisas acontecem.
PS: Ao longo desse post coloquei várias imagens antigas da Cruz Vermelha. Acho legal esse estilo de figuras que não se usa mais hoje em dia. Fico pensando como deve ter sido impactante para as pessoas daquela época.