Pensamentos automáticos sobre Deus antes do desmaio
Schopenhauer escreveu uma vez: “Se o sono é a irmã da morte, o desmaio é sua irmã gêmea”.
Na madrugada dessa sexta para sábado, eu acordei com um tipo de síndrome do pânico. Talvez eu tenha dormido em cima do meu braço esquerdo e acordei com o braço dormente. Fiz cinco refeições na sexta-feira, incluindo uma mais ou menos próxima da hora que deitei, então o problema não foi falta de comida ou água. Imagino que o problema principal tenha sido ter dormido poucas horas na última semana.
Cheguei a mencionar que no meio da semana eu virei a noite lendo “O Exorcista” de William Peter Blatty. Não dormi nada naquela noite e na noite depois dessa também fiquei acordada lendo outro livro.
Estou com mais ou menos 20 livros em cima da minha estante e sempre tento ler pelo menos duas páginas por dia de cada um e um pouco mais dos livros que quero terminar o quanto antes. O problema é que eu raramente aceito me deitar para dormir enquanto eu não cumprir minha rotina de leitura, mesmo que eu esteja caindo de sono.
A síndrome do pânico pode ter várias causas, como estresse, mas ultimamente ando bem tranquila. Só que eu fui dormir bem tarde na sexta-feira porque eu estava, adivinhe, lendo.
Eu acordei bem confusa, sem saber onde eu estava ou o que estava acontecendo. Notei que eu não sentia meu braço esquerdo e meu coração acelerou. Então eu pensei algo como: “Geralmente dor no braço esquerdo é mais perigoso do que no direito porque o coração está voltado para a esquerda”.
Eu identifiquei imediatamente que se tratava de uma síndrome do pânico, pois não é a primeira vez que tenho isso (muitas noites dormindo mal ao longo da minha vida). Raramente isso é perigoso. Porém, sempre tem um lado que pensa: “Mas e se…?”
O problema era que eu tinha acabado de acordar e não estava pensando direito. Eu ainda estava meio que dormindo. Então eu pensei: “Sim, a chance de eu morrer agora não é zero. Pode ser que eu esteja morrendo. Vamos supor que estou. O que eu faria?”
Essa é uma situação perfeita para simular uma sensação de morte e saber o que eu faria. Assim como nos sonhos, com a diferença que eu sabia que estava acordada e que podia morrer ali.
A primeira coisa que pensei foi: “É um pouco triste morrer sozinha. Estou sozinha, que pena”.
Meu segundo pensamento automático foi: “Espere, nunca estamos sozinhos! Deus existe! Então não faz tanta diferença assim estar fisicamente sozinho”.
Meu terceiro pensamento foi: “Não tenho rezado tanto desde que acabei Abramelin. Se eu estivesse orando várias vezes por dia como antes, meu pensamento automático no momento da morte seria orar para Deus e isso seria maravilhoso!”
Meu quarto pensamento foi: “Se eu sobreviver agora, tenho que dar um jeito de retomar minha rotina de orações para que orar para Deus seja SEMPRE um pensamento automático em qualquer circunstância, principalmente situações de quase morte. Isso dá coragem”.
Por algum motivo, eu me levantei da cama. Mas eu ainda estava meio dormindo. Acho que levantei rápido demais e minha pressão baixou. Algo chamado “hipotensão ortostática”.
Alguns segundos depois, notei que meu joelho direito estava muito dolorido. Fui olhar e vi que ele estava bem vermelho.
Ainda levei longos segundos para entender o que tinha acontecido. Foi então que me dei conta: “Ah, eu desmaiei! Antes de cair, devo ter apoiado o joelho direito no chão e por isso ele está dolorido e vermelho”.
Ele ainda estava dolorido e vermelho no dia seguinte. Hoje ele não está mais vermelho, mas está apenas levemente dolorido. Ontem eu nem conseguia dobrá-lo direito, mas agora, aos poucos, ele está voltando ao normal.
Olhando em retrospecto, achei tudo isso divertidíssimo! Ou melhor, é claro que na hora que acontece a gente se apavora e pensa: “Nossa, estou morrendo!”, mas eu já tive essas palpitações e desmaios tantas vezes ao longo da minha vida que concluo que meu cérebro seja meio burro para ainda acreditar que estou em perigo. Sim, estou em perigo, de cair e bater a cabeça.
Mas eu não escrevi esse post só para contar isso. Eu escrevi porque achei fascinante meus pensamentos automáticos logo antes do desmaio e quis compartilhar.
E o que há de interessante nesses pensamentos? Bem, foi uma simulação real do que eu teria pensado se estivesse quase morrendo de verdade. Acho que todos nós já passamos por situações de riscos de morrer, algumas mais graves que outras, e temos uma vaga ideia de nossos pensamentos nessas ocasiões.
Mas é sempre bom atualizar meu repertório. Sempre há aquele tipo de pessoa que vem nos dar um discurso: “Você tem que cuidar de sua saúde!”. Certamente, mas o interessante sobre a maior parte das religiões é que existe a lembrança de que há um Deus e/ou outra vida. A morte não é o fim.
Acredito que parte do nosso culto ao corpo (tanto numa obsessão pela saúde quanto numa obsessão pela beleza, etc) seja a crença de que não há uma vida depois dessa. Portanto, tudo o que nos resta é tentar achar esperança em coisas finitas?
O amor é algo infinito, porque sua fonte é Deus. E cada ser humano possui dignidade por si mesmo (independente de sua profissão, ações no mundo, pensamentos, etc), porque possui uma alma imortal, que tem sua fonte em Deus.
Por que ter saúde e vida longa? Somente para ter prazer e diversão? Não. Mesmo doentes e com uma vida curta podemos aprender a amar Deus e uns aos outros, pois Jesus resumiu os dez mandamentos nesses dois.
O objetivo de orar não é ter coragem para morrer e enfrentar a dor. O objetivo de orar é porque Deus existe e é a fonte do amor.
É claro que amar Deus ou até mesmo acreditar nele é mais difícil do que amar as pessoas. Afinal, nós vemos as pessoas, mas não Deus.
João expressa isso na Bíblia:
“Ninguém jamais viu a Deus; se nos amarmos uns aos outros, Deus permanece em nós, e o seu amor está aperfeiçoado em nós” (1 João 4:12)
Ou seja, mesmo que não acreditemos em Deus, há uma forma de ele permanecer em nós e nós nele: amando uns aos outros.
“Assim conhecemos o amor que Deus tem por nós e confiamos nesse amor. Deus é amor. Todo aquele que permanece no amor permanece em Deus, e Deus nele.
Dessa forma o amor está aperfeiçoado entre nós, para que no dia do juízo tenhamos confiança, porque neste mundo somos como ele” (1 João 4:16,17)
Essas palavras são ao mesmo tempo simples e muito complicadas de entender. Por isso se costuma dizer que para entender a Bíblia ou você é uma pessoa muito simples e humilde, ou é uma pessoa que teve que estudar muito para começar a desvendar o que todas essas palavras querem dizer.
“No amor não há medo; pelo contrário o perfeito amor expulsa o medo, porque o medo supõe castigo. Aquele que tem medo não está aperfeiçoado no amor.
Nós amamos porque ele nos amou primeiro” (1 João 4:18,19)
Esse é um trecho muito belo: “No amor não há medo”. Nem mesmo o medo da morte, porque Deus é o Senhor da morte e da vida. Para quem tem fé, por que temer a morte, se a morte não é o fim?
Podemos fazer um paralelo com a dor. Sabemos que, em geral, a dor tem um fim. Mesmo sabendo que a dor vai terminar em algum momento, nós tememos a dor. Então mesmo uma pessoa com convicção de que a morte não é o fim e com grande fé ainda pode temer a morte, simplesmente porque isso é parte da natureza humana.
Mas quando há amor é diferente. Não se trata apenas de uma compreensão racional e sim de um amor por Deus e pelas pessoas que nasce e cresce da fé.
“Se alguém afirmar: “Eu amo a Deus”, mas odiar seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê.
Ele nos deu este mandamento: Quem ama a Deus, ame também seu irmão” (1 João 4:20,21)
Era nessa parte que eu queria chegar.
A fé em Deus é uma das coisas mais difíceis do mundo. Afinal, é natural para o ser humano não acreditar em Deus, pois não é algo que se pode escutar e tocar. A não ser que a pessoa naturalmente acredite em Deus pelo amor à natureza e pelas pessoas, e veja Deus nelas. Ou que alguém a ensine quando criança a fé de seus antepassados.
Mesmo assim, é através do mundo, das pessoas, que normalmente chegamos a Deus. Não é necessariamente algo automático. A fé em Deus é algo que deve ser desenvolvido e aprendido, assim como o amor.
Nesses breves instantes em que eu achei que pudesse morrer na madrugada de sexta, quais foram as duas coisas que me vieram à mente? A presença de uma pessoa e a presença de Deus. Por quê? Porque Deus é a fonte de todo o amor. Ele está sempre presente. Mas como nós temos a fé fraca, a presença de uma pessoa (que possui uma alma, que vem de Deus) é o mais próximo que podemos estar de Deus nesse mundo. É com as pessoas que aprendemos sobre o amor. Também com os animais, com a natureza, com outros seres vivos.
Então meu pensamento automático fez muito sentido. A primeira coisa que pensei foi: “Não queria estar sozinha. Queria ter outro ser humano, independente de quem seja. Apenas uma presença humana!”
Não é natural para o ser humano buscar Deus em primeiro lugar antes das pessoas. Porque, como nos lembra João, Deus nós não vemos, mas as pessoas nós vemos. Então é com elas que aprendemos sobre o amor.
Porém, meu segundo pensamento automático foi recordar que Deus existe. Que há um amor infinito que não depende da presença humana (na filosofia se diria que o ser humano é contingente e Deus é necessário).
Qual foi minha conclusão nessa minha breve experiência? A importância da oração.
Muita gente pensa que a oração não passa de uma forma de autossugestão e devemos fazê-la não porque Deus existe, mas para que nossa mente fique tranquila.
Mas não é bem assim. A oração é poderosa e não deve ser feita apenas em momentos de perigo, como morte iminente. É preciso treinar diariamente, para que a lembrança de Deus seja algo automático e natural, que surja espontaneamente, mesmo que nossa mente racional não esteja ativa.
Veja meu exemplo. Eu tinha acabado de acordar e estava num estado de confusão. Era necessário que eu tivesse orado mais nos dias e semanas (e meses!) anteriores, para que numa situação em que minha mente racional não estivesse em ordem, meu coração se direcionasse naturalmente e diretamente para Deus.
No último mosteiro em que fiz um retiro, uma monja me contou uma história muito bonita de outra monja que começou a sofrer de demência e que passou seus últimos meses se esquecendo de muitas coisas.
Porém, ela passou toda sua vida orando muito, todos os dias. Então, em seus últimos meses de vida, mesmo que sua memória já não funcionasse direito, suas palavras e pensamentos eram sempre voltados para Deus e para o amor e era disso que ela falava. E continuou falando disso até sua morte.
Essa monja inspirou muito as outras monjas e me inspirou também. Tive a oportunidade de visitar seu túmulo e me emocionei muito. Em geral, muita gente tem medo de perder a memória, mas a história dessa monja mostrou que até mesmo isso pode nos trazer fé e amor, e nos unir.
Eu quis compartilhar essa minha experiência hoje porque com ela eu recordei algo que Jesus diz na Bíblia com muita simplicidade: amar Deus e uns aos outros. É isso que importa.
Geralmente nós não entendemos direito a parte de amar Deus, pois nos parece meio confusa. Por que temos que amar Deus? Não basta amar uns aos outros?
Sim, se não acreditamos em Deus, basta amar uns aos outros, em pensamentos, palavras e ações. Afinal, a Bíblia nos ensina a amarmos Deus com todo nosso entendimento.
“Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças” (Deuteronômio 6:5)
“E que amá-lo de todo o coração, e de todo o entendimento, e de toda a alma, e de todas as forças, e amar o próximo como a si mesmo, é mais do que todos os holocaustos e sacrifícios” (Marcos 12:33)
Se depois de analisarmos com todo o esforço de nossa razão e amor e chegarmos à conclusão de que Deus não existe, mas ainda assim nos esforçarmos em vida para amar as pessoas, Deus não irá nos acusar dessa falta no momento do nosso julgamento após a morte. Afinal, nós realizamos todo esforço de amar em vida dentro do nosso entendimento.
Por que eu acredito que Deus existe e que isso faz diferença para amar? Em primeiro lugar, porque temos o testemunho de muitas pessoas, de muitas épocas e lugares e muitos livros sagrados, muitas pessoas santas, testemunhando a existência de Deus não somente em palavras, mas através de suas vidas e de suas mortes.
Há pessoas que não acreditam em Deus e que deram poderosos testemunhos do amor na vida e na morte. Mas suas vidas não serviram de testemunho para não acreditarmos em Deus, mas para acreditarmos no amor, o que é algo bem diferente.
Acredito que orar e acreditar em Deus não é perda de tempo e distração, mas pode servir para reforçar nosso amor. Não significa que quem não acredite em Deus tenha menos amor, mas o entendimento do amor vem de outras maneiras, pois ninguém é onisciente, apenas Deus, e cada um tem seu limite de entender e praticar o amor.
Eu já me perguntei em alguns momentos da minha vida se não seria melhor amarmos apenas as outras pessoas, pois o tempo que estamos direcionando para amar Deus não poderia ser empregado de forma melhor ajudando os outros?
Mas os dois mandamentos são a mesma coisa. Isso é algo difícil de entender, mas um ajuda o outro, um fortalece o outro em vez de diminuir o outro ou ser um impedimento.
Cada pessoa, dentro de seu entendimento, deve concluir o que realmente importa e a que deve direcionar seu tempo e energia. Mas cada um está numa situação de vida diferente, teve uma educação diferente. Por isso cada um é julgado conforme o que viveu.
Como estou me sentindo agora? Há épocas da minha vida em que sou muito prática e quero me voltar para o mundo material, para as pessoas. Mas não posso me esquecer que por trás de tudo isso existe uma fonte e que se voltar para essa fonte nos enche de energia e coragem em momentos em que antes nos sentíamos esgotados e com falta de esperança.