Os críticos “de fora”
Gostaria de falar de um fenômeno que já vi acontecer tantas vezes a ponto de eu me tornar consciente dele para decidir escrever esse texto. Eu já o havia notado antes, mas percebi que se não o abordarmos de forma séria ele continuará a se propagar.
Todos têm direito a ter uma opinião e compartilhá-la, mesmo a respeito de assuntos que não entendem a fundo. Eu poderia citar vários exemplos.
Aqui vai um: eu escrevo histórias, escrevo livros de literatura, relatos, de muitos tipos. Faço isso desde criança. Já escrevi mais de cem livros. Não sou uma especialista em escrita criativa, mas tenho alguma caminhada. Faço isso há mais de vinte anos.
Há mais de dez anos eu recebo comentários sobre meus textos na internet, tanto elogios como críticas, e os dois me ajudam a melhorar. Eu acredito que mesmo uma pessoa que nunca escreveu um livro tem o direito de dizer que não gostou de algo que escrevi, explicar o motivo e dar sugestões.
A questão é que não é desse tipo de crítico que vou falar nesse texto. O “crítico de fora” a que me refiro é alguém que não necessariamente estabelece um padrão rigoroso para si mesmo em relação a algo específico, mas exige isso dos outros e não perde a oportunidade de apontar sempre que encontra a menor falha.
Tentarei ser mais clara sobre o que me refiro com alguns exemplos.
Eu fui vegetariana por 10 anos (e vegan por 2 anos), dos meus 18 aos meus 28 anos. Deixei de ser há alguns anos, principalmente por motivos de saúde (como ferro extremamente baixo). Além disso, algumas de minhas referências religiosas, como Jesus e Buda, não foram vegetarianos. É verdade que muitos religiosos o são. E o modo de criação dos animais mudou. Também há as diferentes influências ambientais. Não irei entrar a fundo nesse assunto, que é complexo. Basta dizer que eu não sou vegetariana no momento, mas respeito pessoas que são. E quando faço certos jejuns religiosos, vez ou outra tiro a carne devido a benefícios espirituais, éticos e de tradição.
Durante esses dez anos, não lembro de ter consumido carne diretamente uma única vez. Mas lembro de uma ocasião em que eu estava sem comer há longas horas, cansada, e a única refeição oferecida nesse evento de trabalho voluntário estava misturada com um pouco de carne. Sem escolha, ou eu ficaria sem comer o dia inteiro, peguei um pouco da comida, retirando a carne.
Um amigo que estava comigo ao ver o que eu fiz disse algo como: “Não acredito! Você não pode fazer isso. Você é vegetariana!”
Porque a carne havia tocado na comida ou podia haver minúsculos restos de carne misturados, na opinião dele era “trapacear”. Ele não falou por mal. Nós dois apenas rimos. Foi um ótimo dia e não guardo memórias ruins dessa ocasião específica.
Mas eu não pude deixar de pensar: “Do que ele está falando? Ele nem ao menos é vegetariano e nunca foi! Então por que ele está exigindo que eu seja perfeita no meu vegetarianismo?”
Se ele ao menos fosse, teria mais direito de dizer: “Eu optarei por ficar o dia todo sem comer hoje já que não tem opção de comida vegetariana nesse evento, para honrar minha escolha alimentar”. Mesmo assim, ele não poderia exigir isso de mim. Porém, ele seria uma testemunha, um exemplo vivo. Sua palavra teria mais força: “Por que não faz como eu?” e eu o levaria mais a sério, pois ele se tornaria um “crítico de dentro” e não “de fora”.
Já é difícil o bastante ser vegetariano ou fazer quaisquer restrições alimentares quando há opções. Imagine quando não há. Sei disso porque, além de já ter sido vegan, já fui frugívora por um mês, já fiz jejum total (tirar a água e a comida por 24 horas no Yom Kippur) e jejum parcial (apenas com água) por três dias e dois dias em diferentes ocasiões. Além do Ramadã no ano passado, que envolve várias restrições.
Vamos a um exemplo mais atual: cristianismo.
Por alguma razão, na época que eu era budista ninguém exigia que eu fosse uma budista perfeita, até porque os ocidentais têm opiniões diversas sobre o que isso significaria. Mesmo assim, lembro-me de já ter recebido algumas críticas leves, uns quinze anos atrás, a respeito de meditações.
Naquela época eu me achava a rainha das meditações e às vezes ficava o dia todo meditando. Frequentemente eu não me movia por horas seguidas, mas ficava, no mínimo, 1h ou 2h parada.
Como as pessoas sabiam que eu aguentava muito tempo, em ocasiões em que eu me levantava após, digamos, 40 minutos ou 50 minutos de meditação, às vezes eu ouvia coisas como: “Como assim? Só isso? Já terminou?”.
Se o Om Swami tivesse me dito isso, talvez eu tivesse respondido: “Perdão, mestre, sou apenas um verme!” (para quem não sabe quem é o Om Swami, por favor, leia isso). Mas uma pessoa que talvez nem tenha meditado mais de dez vezes ao longo da vida e que já quer levantar após vinte minutos de meditação me dizer isso pode ser particularmente frustrante. Dá vontade de dizer: “Fica três horas em lótus sem se mexer e depois a gente conversa”.
Mas voltemos ao cristianismo. Pessoas que não são cristãs frequentemente dizem coisas como: “Se você não vai para a missa todo domingo, então não é católico. Ah, você discorda disso que o papa falou? Então é protestante!”.
Alguns desses “vigilantes”, intrometidos, ou como queira chamar, também fazem isso com pessoas de outras religiões, particularmente com muçulmanos. Um não muçulmano frequentemente diz a um muçulmano: “Você não reza cinco vezes por dia? Não participa do Ramadã? Então não é muçulmano coisa nenhuma!”.
Eu conheço muitas pessoas que já foram católicas, mas que não são há muitos anos. Mas a maior parte das pessoas que eu conheço nunca foi muçulmana e talvez nunca tenha conhecido muçulmanos.
É verdade que, tecnicamente falando, é dever do católico ir na missa todo domingo. E rezar cinco vezes por dia e participar do Ramadã faz parte dos Cinco Pilares do Islã.
Vou falar da perspectiva de alguém que já participou do jejum do Ramadã e que já fez as cinco salás (orações muçulmanas) em árabe nos horários prescritos, por um mês. E também da perspectiva de alguém que já fez retiros católicos, já foi para missas, rezou rosários, etc.
Para quem não sabe, eu tenho notícias: ser católico ou muçulmano é MUITO difícil! E mais difícil ainda é tentar ser um católico ou muçulmano perfeito.
Meu desempenho no Ramadã no ano passado foi consideravelmente bom, mas isso porque eu sabia que era um esforço que duraria apenas um mês. Participar do Ramadã todo ano, incluindo no verão? É possível, mas sofrido! Orar cinco vezes por dia em horários determinados, com um ritual complexo de limpeza, pelo resto da vida? Tenho sérias dúvidas se eu seria capaz de fazer isso.
Por esses e outros motivos, tenho o maior respeito e admiração pelos muçulmanos. Já senti na pele o que eles fazem, incluindo as dores e os benefícios espirituais.
Nem todos os muçulmanos querem ou conseguem rezar cinco vezes por dia ou participar do Ramadã. Nem por isso eles deixam de ser muçulmanos. Nem por isso eu os respeito menos. Só o fato de ler o Alcorão frequentemente já é um ato admirável.
Há católicos que, mesmo respeitando os protestantes, não querem deixar de ser católicos, mesmo não sendo “católicos perfeitos”, pois isso não existe. Um muçulmano pode tentar rezar cinco vezes por dia, mas haverá ocasiões em que ele está desanimado ou deprimido ou com “secura espiritual”, como dizem os cristãos.
Um cristão ou muçulmano, assim como qualquer pessoa, pode passar por períodos de rebeldia ou tristeza. Nem por isso ele deixa de ser o que é.
É como dizer a um estudante que se ele faltar uma aula, ficar em recuperação ou reprovar numa disciplina, ele não é mais um estudante, porque ele não fez o que era esperado dele: ter um desempenho perfeito. Mas não é exatamente por isso que ele está estudando? Para aprender, porque ele não sabe de tudo. Um religioso pratica sua religião exatamente por não ser perfeito: porque ele quer se tornar uma pessoa melhor. Desqualificá-lo de ser de uma religião porque ele não cumpre seus preceitos com perfeição é como dizer que ele sequer precisa daquela religião em primeiro lugar. Uma pessoa perfeita não precisa de mais nada.
Se você é um católico que vai à missa todo domingo sem falha, doa 10% do seu salário para a Igreja todo mês sem falta, lê a Bíblia e reza o rosário todo dia, vamos ouvir o que você tem a dizer sobre “católicos não praticantes” ou católicos que não fazem algumas dessas coisas. Se você é um muçulmano que reza cinco vezes por dia, participa todo ano do Ramadã e lê o Alcorão todo dia, vamos ouvir o que você tem a dizer sobre muçulmanos que bebem água no Ramadã ou que rezam só uma ou duas vezes por dia. Somente assim você se qualificaria para atirar a primeira pedra, como disse Jesus.
Porém, você não é nem católico, nem cristão e nem muçulmano e costuma criticar cristãos que não leem a Bíblia todo dia? Sendo que você nem tem uma Bíblia? Eu sugeriria a essa pessoa que arranjasse um novo hobby. Talvez você deva passar a criticar pessoas que nunca leram o Finnegans Wake, porque eu tenho certeza que essa é sua leitura de cabeceira e que você o compreende plenamente e terá toda a autoridade para criticar.
Mas agora vamos para onde eu queria: Abramelin.
É verdade que por ser uma operação com uma duração determinada (seis meses ou um ano e meio) ainda é mais fácil fazer Abramelin do que ter uma religião, que é algo que pode durar longos anos ou uma vida inteira. Ou, como eu costumo dizer, para um muçulmano que reza cinco vezes por dia, fazer as três orações diárias exigidas da última etapa de Abramelin seria para ele quase uma brincadeira de criança.
Claro que Abramelin possui suas dificuldades particulares. Eu gosto de trocar ideias com pessoas que já fizeram, estão fazendo ou pretendem fazer a operação, porque elas têm uma vivência na pele do que isso significa. Mesmo pessoas que não começaram ainda mas pretendem fazer, já “entraram na correnteza”, como dizem os budistas. Nossa mente já está lá, então de certa forma já nos sentimos no caminho e iniciamos uma parte da caminhada. Você já é do grupo e estamos no mesmo barco.
Abramelin e Abraão o Judeu exigem uma série de coisas difíceis para a operação. Ninguém que a faz cumpriu 100% do que ele pediu, mas alguns já chegaram perto.
Há pessoas que fazem Abramelin que se preocupam mais em conseguir os materiais corretos e montar um altar fiel. Para outros é importante os jejuns. Outros focam nas leituras espirituais, quantidade de orações, horários das orações, etc.
Enquanto para uns o isolamento é fundamental, outros tentam conciliar com o dia a dia. É claro que quanto mais fiel ao grimório, melhor. Mesmo assim, cada operação tem elementos criativos únicos e acho isso legal.
Eu, assim como todos que já fizeram a operação, tenho meus pontos fortes e fracos. É claro que serei mais criticada nos meus pontos fracos. Mas uma coisa que eu acho genial sobre Abramelin, assim como fazer parte de uma religião, é ser parte de um grupo de pessoas que estão fazendo a mesma coisa. Mesmo que estejam longe uma da outra.
Isso não significa excluir pessoas que não estão fazendo. Também é ótimo receber comentários de quem não fez e talvez nunca pretenda fazer a operação. Quanto mais ideias e perspectivas diferentes, melhor.
Porém, se alguém completamente de fora do universo de Abramelin me diz coisas como: “Sua oração hoje foi muito curta” ou “Você está 1h atrasada hoje, o sol já nasceu”, eu tenho boas respostas.
Para começar, eu diria: “Você sabe o que é ficar um ano inteiro acordando todo dia às cinco da manhã para rezar, incluindo sábados e domingos? Sabe o quão cansada eu estou, com quanto sono eu estou, com vontade de dizer que já chega? Até nos mosteiros tem um dia por semana que dá pra acordar mais tarde! Se você não for um cartuxo”.
Jesus diz na Bíblia que devemos tirar primeiro o cisco do nosso olho antes de querer tirar o cisco do olho dos outros.
Eu não sou perfeita e não tenho nenhuma intenção de ser. Nem por isso vou deixar de fazer coisas na minha vida só porque vez ou outra há vigilantes que criticam sob o pretexto de “ajudar”, mas que às vezes querem apenas julgar.
“Agora que achei sua falha, descobri que você não é um Deus!”
Não me diga! Pensei que eu fosse.
Eu não tenho a ambição de fazer o melhor bolo do mundo. Eu só quero fazer um bolo, cara.