Orar é chato?

Wanju Duli
6 min readNov 23, 2020

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Há um bom tempo pensei: como será que os muçulmanos conseguem orar cinco vezes ao dia? Jejuar no Ramadã tudo bem, porque é só um mês por ano. Mas orar cinco vezes por dia até o fim da vida, sem folgas? Até nos mosteiros católicos de vez em quando tem dias de descanso em que eles diminuem o ritmo das orações. E nos mosteiros também é possível substituir a oração da Liturgia das Horas pela leitura dos salmos.

É verdade que se você está doente, viajando, em guerra (você pode orar em cima do cavalo, não precisa descer!) e outras ocasiões, dá para adiar a oração e compensar depois. Mas mesmo assim, é muito rígido! Como será que os muçulmanos conseguiam, desde antigamente?

Eu obtive minha resposta hoje.

Estou assistindo ao filme “The Message” de 1977, único filme que conta a história da vida de Maomé. Como o filme é longo (3h) estou vendo alguns minutos por dia e hoje estou na metade.

Acabei de assistir a uma cena em que os muçulmanos estão fazendo um trabalho braçal e escutam o chamado para uma das cinco orações do dia. Eles interrompem o trabalho por um momento e vão orar.

Foi só então que eu me dei conta: é claro! Não é óbvio?

Para aqueles de nós que atualmente trabalham oito horas por dia, o pensamento de parar para orar cinco vezes parece algo bem difícil. Afinal, é bem provável que em algumas orações você interrompa um momento de descanso ou de lazer. Então você estaria interrompendo algo agradável para orar, o que pode nos dar a impressão de que a oração é um compromisso chato.

Porém, pense no século VI, quando muitos trabalhadores tinham que fazer tarefas braçais pesadas no campo ou na cidade, praticamente o dia todo. O horário da oração era uma libertação! Significava interromper um trabalho sofrido e poder respirar um pouco. Nessa época, parar para orar era sinônimo de algo agradável, uma pausa.

Eu também passei por essa experiência em mosteiros, embora de forma mais leve, já que não trabalhávamos por tanto tempo. Mesmo assim, houve várias ocasiões em que fiz trabalhos braçais em mosteiros, como varrer, lavar, trabalhar na horta ou no jardim debaixo do sol, do frio ou da chuva (o trabalho lá fora era sempre o mais sofrido). E em vários momentos soou o sino e interrompemos o trabalho para orar a Liturgia das Horas por alguns minutos.

Esses eram meus momentos favoritos de oração. Claro, a primeira oração do dia e a oração após um longo dia de trabalho também eram muito agradáveis. Primeiro, porque a primeira oração te dava forças para enfrentar a jornada do dia. E a oração depois do trabalho te fazia sentir orgulhoso do que você tinha feito, então era como uma recompensa.

Orar em mosteiros é bem diferente de orar em casa. Quando estou em casa fazendo algo como ler um livro agradável, assistindo um filme ou jogando um jogo, muitas vezes é chato o pensamento de parar o que eu estava fazendo para orar. Porém, num mosteiro é muito bom orar na maior parte das vezes, pois é um ambiente em que fazemos muitas atividades difíceis. Não digo que sempre sejam atividades chatas, mas normalmente demandam mais força física. Também há alegria em fazer esses trabalhos, mas é um sentimento diferente. A oração parece se encaixar bem nessa rotina.

Já na rotina em que a maior parte de nós está acostumado, encaixar orações é mais difícil. Primeiro porque não vivemos num país muçulmano e não haveria o costume aqui de realmente interromper o trabalho para orar. De qualquer forma, para a maior parte de nós o momento de rezar é visto como algo não tão agradável quanto se considerava antigamente.

É a mesma coisa para meditações. No dia a dia é difícil encaixar até mesmo 15 minutos de meditação por dia. Num mosteiro, pelo contrário, mesmo que façamos vários trabalhos durante o dia, ajudando a cozinhar e a limpar, sempre há tempo para meditar, no mínimo, 1h no início do dia e 1h no final do dia. E aquilo parece se encaixar perfeitamente na rotina.

O que eu quero dizer é que orar não é chato. Ou orar não precisa ser chato. Era mais natural para as pessoas orar antigamente porque elas viviam num ambiente diferente, numa outra rotina. Então era muito mais fácil associar o ato de orar com algo muito agradável e passar a gostar disso.

Hoje em dia precisamos resgatar essa tradição e voltar a olhar a oração não como algo monótono. A mesma coisa com o trabalho. Antigamente muita gente tinha o pensamento de que estavam trabalhando como uma oferenda para Deus. Eles doavam seu corpo e ofereciam o serviço para Deus, então trabalhar também era uma forma de entrega e oração, o que tornava a atividade algo bem mais agradável.

Antes a maior parte do dia era alternada entre trabalho e oração. Os momentos de lazer eram menores. E mesmo esses podiam ser eventualmente uma oferenda para Deus, como ir numa igreja, templo ou mesquita nos dias santos, que também eram os fins de semana ou feriados.

Ou seja, antigamente feriados não eram para descansar e sim para orar. Hoje em dia ainda temos feriados nos dias religiosos, embora pouca gente os use para oração.

Mas como pode ser isso? Antigamente as pessoas trabalhavam mais que hoje, oravam mais, tinham menos lazer e ainda assim dedicavam os poucos dias de folga para orar ainda mais.

Por que será? Aí está! Porque orar não era um compromisso chato para essas pessoas. Eles viam oração como algo agradável. Porque era a interrupção do trabalho, que era normalmente uma atividade braçal mais difícil que orar.

Mas por que até mesmo o trabalho era mais agradável naquela época, mesmo sendo mais longo e mais difícil? Surpresa: exatamente porque eles alternavam o trabalho e a oração. Era a oração que dava forças para trabalhar. Eles recordavam que estavam trabalhando em nome de Deus e para ajudar os outros. Eles tinham um propósito maior para aquilo. Não era um trabalho em que se aguarda desesperadamente que termine ou que chegue logo o intervalo ou lazer. Ao contrário, eles usavam esses momentos para rezar mais!

É maravilhoso que hoje em dia muita gente possa trabalhar menos, ter mais momentos de lazer e condições mais dignas. Devemos lutar por isso. Porém, devemos lembrar que não é apenas trabalhar menos ou ter trabalhos mais fáceis que nos traz mais alegria.

Sabemos disso porque temos registro das rotinas dos nossos antepassados de muitas religiões. Trabalho e oração, um fortalecia o outro. E mesmo num dia cheio de trabalho braçal longo e difícil, ainda é possível tirar alegria daí, por um motivo: eu não trabalho para mim mesmo e sim para servir Deus. Minha vida não é minha. Deus me deu a vida, Deus vai tirar. E tudo o que faço é para servi-lo. Quando pensamos assim, cada pequeno aspecto da nossa vida se torna sagrado e repleto de significado.

Temos que lembrar disso e usar esse pensamento como força, para que tanto nosso trabalho como nossa oração sejam presentes para Deus. Assim iremos amar muito mais esses momentos.

É como o sofrimento: quando percebemos que há um propósito na dor, pois existe Deus e ele a permite para fortalecer nossa alma, a dor não é mais algo desagradável para ser eliminada. Ela continua sendo dor, mas quando ela tem um propósito na criação, faz parte de algo maior, será possível aprender a tirar forças até de momentos de dificuldade.

Esse é um aprendizado bem difícil. Não é algo que se aprende de uma vez. É como orar: a fé nem sempre vem de uma vez, como veio para São Paulo. Normalmente ela é construída aos poucos, da disciplina diária. Aprender a trabalhar e orar com amor não é fácil. Primeiro fazemos isso para servir Deus. É ele que faz surgir o amor no nosso coração depois, como um presente por nossa fidelidade.

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