Ocultismo, Religião e Salvação

Wanju Duli
11 min readApr 20, 2020

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Minha família não é particularmente religiosa, então até a adolescência não tive contato com nenhuma religião específica, com exceção de um ou outro colégio com influência cristã moderada nos quais estudei.

Isso me levou a uma situação peculiar: eu conheci o ocultismo antes de conhecer a religião. Normalmente, as pessoas rompem com o cristianismo da infância e buscam o ocultismo. Comigo ocorreu o contrário: “rompi” com meu passado ocultista para buscar o cristianismo.

Eu comecei na wicca, aos 13 anos. Na verdade, a wicca é uma religião. Mas é uma religião muito especial, com forte influência do ocultismo. Tenho um imenso carinho pela wicca, pois ela me introduziu na adolescência de forma elegante e mágica. Naquela época eu havia tido minha primeira menstruação há pouquíssimo tempo e a wicca me ensinou a valorizar o feminino e a amar meu sangue, sempre observando as fases da lua em que eu menstruava, e comemorando os esbaths.

Eu fazia muitas das minhas celebrações e rituais na natureza, o que me levou ao xamanismo. Até tenho saudades dessa época em que a espiritualidade era algo simples e espontâneo, sem o envolvimento de complicadas teorias de filosofia e teologia. Mas o Eliphas Levi me apresentou ao cristianismo e logo após conheci a operação de Abramelin. De repente, a simplicidade dos rituais na natureza, o fascínio primal com a chama de uma vela, deu lugar a elaborados rituais e pensamentos pomposos e grandiosos.

Antes eu era apenas uma pessoa pequena tentando me conectar à natureza, numa busca de harmonia e humildade. Depois de ler Eliphas Levi e Abraão o Judeu, eu me senti a protagonista de uma batalha épica, no meio de uma luta de anjos e demônios, e somente eu poderia salvar o mundo! Reze, reze, reze, dizia o cristianismo. Medite, medite, medite, dizia o budismo. E lá estava eu, perdidamente fanática, fazendo tudo isso.

Droga, eu só queria acender uma velinha e celebrar a chegada da nova fase da lua. Por que essa gente chata quis acender um fogo em mim e me colocar no meio de uma briga para salvar o mundo?!

Acho que eu tive ganhos e perdas com essa mudança de paradigma. Por um lado, eu tive que sofrer a inevitável quebra de inocência da infância. Aos 13 anos eu ainda acreditava que o papel do ocultismo e da religião na minha vida seriam meramente me trazer um pouco de conforto, paz e conexão com a natureza nas horas vagas do colégio.

Porém, aos 17 anos, com a operação de Abramelin e com meus primeiros jhanas nas meditações, a minha ilusão de “religião como distração” ou “religião como pão e circo” estava completamente rompida.

De certa forma, foi uma quebra meio traumática, mas necessária. Quando comecei a praticar o ocultismo, eu ainda tinha aquele tipo de questionamento curioso de iniciantes: “Será que magia funciona mesmo? Será que é real?”. Bem, depois dessas minhas experiências não tive mais nenhuma dúvida.

Algumas pessoas começam no ocultismo interessadas em feitiços. Eu tinha alguma curiosidade sobre isso quando comecei também. Mas logo meu foco mudaria de direção. Eu encarei o ocultismo muito mais como uma busca de desenvolvimento espiritual e conexão com o divino. Ou uma celebração da vida, como diria Julian Vayne (algo que lembra os rituais de sabaths e esbaths da wicca. Você celebra a natureza, se conecta com os outros, e não necessariamente pede algo).

Essa é a explicação para eu ter passado do ocultismo para a religião: eu estava mais interessada em conhecer minha missão no mundo, em me conectar com Deus, saber como eu devia agir do ponto de vista ético. Eu não estava tão interessada em fazer feitiços ou magia em geral.

É claro que o ocultismo também é um caminho de autoconhecimento. O ocultismo frequentemente envolve objetivos religiosos. Porém, para mim a religião ia mais diretamente ao ponto do que eu buscava.

Até hoje, eu considero o ocultismo extremamente interessante e inteligente, em vários sentidos. Se meus autores favoritos lançarem novos livros, eu terei curiosidade de ler. Talvez eu até mesmo escreva mais um livro sobre ocultismo no futuro.

Ainda assim, a vida está me lançando para novas direções e descobertas.

Mas até hoje eu costumo dizer que o que eu penso sobre ocultismo se resume a uma passagem que gosto muito do livro “O Jogo das Contas de Vidro” de Hermann Hesse. Eu leio esse trecho nesse vídeo.

Resumindo, Hermann Hesse fala nessa passagem que ocultismo é coisa para pessoas “jovens, ricas e saudáveis”. Quando você fica mais velho e se aproxima da morte, quando é muito pobre a ponto de passar fome e quase morrer, ou quando é muito doente a ponto de quase morrer, você não quer ler teorias bonitas, elaboradas e filosóficas que o ocultismo apresenta. Você precisa de um conforto espiritual imediato. Você precisa de Deus. Precisa de religião.

Tudo se resume a uma única palavra: morte.

Quando somos jovens, nosso interesse no ocultismo e na religião costuma ser principalmente intelectual. Queremos respostas sobre o que é o mundo e o que é a vida, por mera curiosidade.

Quando estamos perto da morte, não estamos mais curiosos. Estamos desesperados. Nós precisamos de uma solução agora. Nada de filosofia, nada de teologia. Eu quero uma mão segurando a minha. Eu quero uma oração. Eu quero o céu. Eu quero Deus.

Eu entendi isso principalmente quando li os livros de Tolstói (a propósito, Gandhi era um admirador de Tolstói e lia os livros dele). Ele tinha tudo: fama, riqueza, uma esposa e filhos amorosos. Tinha uma vida intelectual fascinante em seu círculo literário. Mas quando os amigos dele ficavam doentes ou quase morriam, não sabiam lidar com isso.

Quando viajou para o interior, Tolstói ficou fascinado ao ver como os camponeses, os mujiques, encaravam a morte com tanta serenidade. Afinal, a doença e a pobreza sempre estiveram próximos a eles. Diferente dos amigos ricos de Tolstói, os camponeses já estavam acostumados com a realidade da morte. Mas, principalmente, eles encontravam consolo em Deus: na religião cristã.

Esse foi o principal motivo da conversão de Tolstói ao cristianismo. Não foram argumentos filosóficos ou teológicos: foi ver a força e a coragem que os cristãos pobres tinham diante da morte.

Uma das críticas ao ocultismo é que ele costuma ser muito elitista. Muitos sistemas de ocultismo ou mesmo religiões foram criados por pessoas de classe média ou classe média alta. Raios, até mesmo Sidarta Gautama era xátria, uma das castas mais altas no hinduísmo.

Uma das razões de o budismo ser uma religião tão complicada de entender é porque ela foi criada por um cara com muito estudo, que conhecia a fundo os sistemas filosóficos de sua época. Buda tinha uma erudição impressionante e qualquer um que já tinha lido os sutras do cânone Pali pode atestar isso. Eu frequentemente me sinto estúpida quando leio, diante da complexidade e sutileza de várias passagens (mais uma razão para o budismo ser tão atraente para os ocidentais: é intelectualmente estimulante).

Por outro lado, Jesus nasceu pobre. Ele falava numa linguagem que os outros pobres entendiam. Então foi uma religião criada por um pobre, direcionada para pobres.

É verdade que alguns discípulos e apóstolos de Jesus tinham mais estudo, como Lucas, o Evangelista, que era médico. Mas outros eram pescadores. O cristianismo desenvolveu diferentes linguagens, para ser entendido tanto por pessoas instruídas como por pessoas muito simples. Acredito que esse seja um dos maiores brilhos do cristianismo.

Inclusive, nos primórdios do cristianismo todos dividiam suas posses ou largavam tudo e doavam para os pobres (a caridade dos primeiros cristãos impressionou os romanos). Essa prática se reflete até hoje nos mosteiros, em que tudo é dividido em comum. Mosteiros de outras religiões em que se divide tudo também existem no Oriente. Os próprios ashrams na Índia e os kibutz em Israel também costumam ter influência religiosa.

O hinduísmo, por exemplo, possui algumas escolas com características mais devocionais. A Bhakti Yoga é um exemplo de um caminho espiritual do hinduísmo focado na devoção a um Deus pessoal.

É uma arrogância típica do ocidental de classe média criticar a “devoção dos pobres” como inferior. Muita gente acha que acreditar num Deus pessoal é uma superstição, e preferem crer num Deus panteísta, “Deus é o todo”, como um tipo de crença mais “evoluída” e mais “intelectualmente coerente”.

O problema é que esse tipo de raciocínio realmente torna a religião algo elitista. Somente pessoas com estudo, que sabem ler e escrever, que entendem de filosofia e possam chegar a um tipo de raciocínio sofisticado podem conhecer a verdade e ser salvas?

Isso é o mesmo que dizer que somente os ricos serão salvos. Só serão salvos os ricos que chegaram à “brilhante” conclusão de que Deus não existe (os pobres ainda não leram Nietzsche e ainda não souberam da notícia velha de que Deus está morto?). Ou só serão salvos os que descobriram que Deus é o Todo (porque é mais “inclusivo”), ou que Deus na verdade são Deuses, numa visão politeísta (porque é mais “tolerante”).

Se uma religião não pode ser compreendida e adotada por pessoas pobres e sem estudo, para que ela serve? Para ser privilégio de uma elite de iniciados, que estudaram muitos anos até descobrir os segredos do ocultismo? Segredos exclusivos somente a pessoas que passaram anos a fio meditando ou anos a fio lendo?

O budismo da terra pura é uma escola de budismo que eu admiro. O seu fundador descobriu que as pessoas pobres, sem estudo e com família para alimentar não tinham tempo de meditar e atingir a iluminação. Então ele encontrou nos sutras o “Namu amida butsu”. Basta pronunciar essa recitação e seremos salvos.

Eu admiro o budismo Theravada e sistemas de ocultismo complexos. Eu amo filosofia e teologia. Eu gosto de ser intelectualmente estimulada e desafiada. Não é errado pensar! É extremamente importante.

Mas não adianta ler e pensar exclusivamente por mero prazer intelectual, como mera masturbação mental. O prazer é importante, mas a vida não é apenas sobre prazer. Nem a religião e nem o ocultismo. Eles nos proporcionam momentos de prazer, mas não apenas isso. É mais.

E o quão gratificante é descobrir esse algo a mais!

Por que a religião é fundamental para mim hoje em dia?

Eu me descobri como um ser humano que sofre e que tem medo da morte. Assim como os amigos de Tolstói, não importa o quanto eu leia, vou continuar tendo medo da morte.

Acreditar em Deus, numa vida após essa e numa comunhão espiritual entre vivos e mortos me dá forças. Eu continuo tendo medo da morte, mas é um medo diferente. Não é apenas medo. Também há esperança e amor. Eu sinto que não estou sozinha. Eu sinto que não é o fim.

Não é apenas mera enganação ou ilusão. É uma crença forte de nossos antepassados. É uma intuição natural do ser humano, esse algo a mais. É acreditar na sabedoria e esperança daqueles que vieram antes de nós. Por amor.

A religião para mim também é fundamental para eu me conectar com outras pessoas que têm medo da morte. Não importa se você é rico ou pobre, todos temos medo. E a morte não é momento de discutir filosofia. É o momento de ter uma presença humana que se importa, de amar e ser amado, de orar, de ouvir palavras simples e gentis, de ouvir o nome de Deus. Um ser sábio, poderoso e bondoso que deu um sentido ao sofrimento e à morte. Nós não sabemos, mas ele sabe. Basta confiar, assim como nós confiamos em nossos amigos, por amizade, por lealdade.

Os pobres entendem sobre sofrimento e morte de uma forma que muitos ricos não entendem (a não ser que alguns ricos estejam velhos, doentes ou tenham passado por alguma grande perda). Por isso acho o cristianismo poderoso. É verdade que o cristianismo desenvolveu a filosofia escolástica (São Tomás de Aquino, sou fã!!) para ser intelectualmente estimulante para ricos e estudiosos. É verdade que o cristianismo se institucionalizou, foram criadas hierarquias, e hoje essa religião é usada para defender interesses de classes altas e preconceitos.

Mesmo assim, o cristianismo continua a ser uma religião que atrai muitos pobres e miseráveis, não somente como distração de seus problemas, mas como uma esperança real. E continua a crescer em muitas regiões mais pobres, como países da África e da América Latina.

É comum que pessoas ricas ou de classe média considerem os pobres tão burros a ponto de serem incapazes de pensar. Essas pessoas acham que os pobres estão sendo “usados e manipulados” por essas religiões. Obviamente, os pobres só se tornarão inteligentes quando concordarem com o modo de pensar das classes altas e adotarem as religiões deles…

Eu penso exatamente o contrário: se uma pessoa miserável, que conhece extremo sofrimento e morte, escolheu uma religião, aí está uma religião poderosa, a ponto de ser escolhida por quem atravessou as maiores dores desse mundo. Eis uma religião que vale a pena ter. Se ela consolou o mais sofredor, ela também me consolará!

O islamismo é outra religião que atrai classes baixas. Maomé, seu fundador, apesar de ter se tornado homem de certos recursos, não sabia ler e escrever. Ele vivia num ambiente inóspito e tinha que lidar com guerras no deserto.

Ou seja, nem Jesus e nem Maomé eram “religiosos de poltrona”, preocupados em escrever textos intelectualmente estimulantes. A preocupação deles era dar esperança e libertação para o povo.

Não foi o acaso que tornou o cristianismo e o islamismo tão difundidos no mundo. São religiões que lidam de forma certeira com a questão do sofrimento e da morte. Se você despreza essas duas religiões, talvez (e somente talvez) não seja pobre o bastante ou não tenha sofrido o bastante. Muitas vezes nós desprezamos essas religiões inconscientemente como “religião de pobre, das massas, de gente ignorante e supersticiosa”. Em muitos contextos dizer: “não gosto dessas religiões” não é muito diferente de dizer “eu não gosto de pobre. Não gosto de pobre cantando desafinado na igreja. Se for para ver missa, só se for em latim”. Falo mais disso aqui.

Nós consideramos a nós mesmos como grandes intelectuais, pessoas inteligentes que buscam religiões sofisticadas, elegantes e complicadas. Mas essa religião te traz um conforto real no momento de dor e de morte? Essas são as perguntas realmente importantes.

É compreensível que muita gente se sinta repelida pelo cristianismo e pelo islamismo devido a certos preconceitos de formas mais tradicionais da religião. Elas são religiões antigas, então seria surpreendente se elas coincidissem em todos os pontos com os pensamentos e a moralidade do século XXI.

Muita gente busca o ocultismo como forma de se libertar desses preconceitos. Isso também é totalmente compreensível. E, de fato, o ocultismo e muitas religiões podem ser poderosas em nos dar esse senso fundamental de liberdade e aceitação.

Eu não escrevo esse texto para tentar converter ninguém ao cristianismo ou ao islamismo. Conto apenas minha jornada pessoal, meu raciocínio que me levou a preferir uma ou outra religião. Mesmo assim, continuo a admirar todas e a aprender com todas.

As pessoas são diferentes. Eu não posso dizer onde você irá encontrar sua liberdade e o seu consolo.

Digo apenas que acho importante que, seja qual for o sistema espiritual que você adote, que ele seja bom o bastante para te trazer consolo na morte e na dor. Além disso, acho relevante haver nele uma linguagem clara o bastante para você se comunicar com os outros (falar de Deus, por exemplo, costuma ser uma linguagem quase universal).

Eu ainda estou aprendendo. Ainda estou no meio da minha jornada. Eu não tenho todas as respostas. Aos poucos, vou desenvolvendo meu caminho pessoal. E espero que ele não seja uma barreira para excluir pessoas. Quero poder me conectar com pessoas de diferentes crenças e opiniões. Todos somos diferentes e isso não é ruim. Mas muitas vezes optamos por um caminho não pela razão que imaginamos. Por isso o autoconhecimento é fundamental.

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Wanju Duli
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