O mundo continua o mesmo?
Recentemente li uma frase curiosa. Foi algo assim: a pandemia da COVID-19 foi a coisa mais marcante que ocorreu com a humanidade desde a Segunda Guerra Mundial.
Mas quem decide isso? Foi mais marcante por quê? E para quem?
Nós sabemos que guerras e pandemias acontecem por tempos imemoriais. É claro que falamos mais sobre a Peste Negra e a Gripe Espanhola, mas apenas porque elas ocorreram na Europa ou em outros países considerados “desenvolvidos” no ocidente. Não foi mais importante nem mesmo porque mataram mais, embora às vezes seja esse o caso.
Nós raramente ouvimos falar sobre epidemias e pandemias que mataram milhões em alguns países da África, do Oriente Médio e da Ásia. Nós só ouvimos falar delas quando ultrapassam as fronteiras dos países atingidos e ameaçam atingir a Europa ou a América do Norte, como foi o caso do ebola. Se não fosse o caso, certamente a maior parte de nós jamais teria ouvido falar em ebola.
Se é uma doença “exótica” ocorrendo num país distante nós não nos importamos. Mas começamos a sentir um medo paralisante quando a tal doença ameaça se aproximar.
Houve guerras que mataram muito antes da Primeira e da Segunda Guerra Mundial e que duraram muito mais tempo. Mas raramente se fala delas.
Muita gente menciona nazismo e Hitler, como se os campos de concentração fossem o pior exemplo do que ocorreu com a humanidade e Hitler tivesse sido o pior ditador. Mas basta ler um pouco sobre a história de outros países e outros genocídios para concluir que esse não é necessariamente o caso.
Quanto se ouve falar sobre o massacre de Srebrenica nos dias de hoje? Ele é assustadoramente recente e ocorreu em 1995. Porém, por ter ocorrido na Europa Oriental, na Bósnia e Herzegovina, muita gente nem ouviu falar. Eu mesma só soube a respeito quando li um livro sobre o assunto esse ano. Ele é considerado o pior genocídio que ocorreu na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.
E quem já ouviu falar sobre o genocídio no Camboja? Estou lendo um livro a respeito disso atualmente. E não faz muito tempo que vi o famoso filme “The Killing Fields” (Os Gritos do Silêncio) que conta uma história real ocorrida na época desse genocídio. Esse filme ganhou alguns prêmios no Oscar de 1985 e por causa desse filme esse genocídio se tornou mais conhecido no mundo.
Algo parecido ocorreu com o genocídio em Ruanda, ocorrido em 1994. Ele ficou mais célebre no mundo devido ao filme “Hotel Ruanda”. Isso me faz lembrar também do filme “O Último Rei da Escócia”, uma história fictícia baseada num livro, que por sua vez é baseado em fatos reais que ocorreram na Uganda. Eu mesma só soube mais a respeito disso tudo após ver esses dois filmes. Porém, eu aprendi mais sobre o genocídio em Ruanda após ler alguns livros da autora Scholastique Mukasonga. Sem dúvida, filmes, documentários e livros podem ser excelentes fontes de informações, seja quando mostram fatos reais ou ficções baseadas em fatos reais.
No início de 2020 muitos estavam preocupados com a tensão entre Estados Unidos e Irã e a perspectiva de uma Terceira Guerra Mundial. E por que diabos estamos preocupados com a ocorrência de uma suposta Terceira Guerra se já há algumas guerras terríveis acontecendo agora, como as guerras na Síria (que já dura dez anos), no Iêmen, no Sudão e em muitos outros países? Segundo a Cruz Vermelha, há mais de cem guerras acontecendo no mundo atualmente.
Cem guerras! No início de 2020 nós já vivíamos num mundo em que aconteciam cem guerras e certamente centenas de epidemias em dezenas de países.
Então por que não estamos preocupados com essas cem guerras e com essas centenas de epidemias de cólera, febre amarela, ebola e muitas outras doenças acontecendo agora? Em vez disso, nós no ocidente temos medo de começar uma Terceira Guerra Mundial e da COVID-19 (sem dúvida há muitas doenças com cura atualmente conhecida que ceifam muito mais vidas que a COVID-19).
E o resto? Bem, o resto não tem a ver com a gente, é claro! Que pena que essas pessoas estão no meio de uma guerra, passando fome e morrendo, isso é terrível, mas isso não me diz respeito e não tenho medo. Eu só tenho medo e só faço algo a respeito das guerras e epidemias que ocorrem na Europa e nos Estados Unidos. É assim, não é?
No Iêmen, país que está em guerra civil há mais de cinco anos, mais da metade da população passa fome e a COVID-19 tem uma mortalidade de 25%, enquanto em alguns países a mortalidade gira em torno de 2%.
Eu confio nas pessoas e tenho uma visão bem otimista do mundo. Eu acredito que a maior parte das pessoas se preocupa sim com o que está acontecendo do outro lado do mundo e gostaria de fazer alguma coisa. No entanto, há muitos obstáculos no nosso caminho. Um deles é o problema da informação. Muitas das informações sobre guerras, genocídios e epidemias atuais não chega a nós.
De 1983 a 1985 ocorreu uma fome devastadora na Etiópia. Quando eu era criança, lembro que quando alguém queria se referir a um país pobre costumava citar a Etiópia e a razão disso foi esse episódio particular de fome que assolou o país. Aliás, em 2020 ocorreu uma guerra entre Etiópia e Eritreia que, assim como a guerra ocorrida entre Azerbaijão e Armênia no ano passado, duraram apenas algumas semanas. Mas essas poucas semanas já provocaram terríveis consequências.
Hoje em dia as guerras costumam durar menos tempo do que no passado. E quando ocorrem há mais auxílio humanitário e denúncias de violação aos direitos humanos. Creio que um fator importante para que essas coisas aconteçam seja informação de qualidade. Uma das profissões que eu particularmente mais admiro é o jornalismo, como jornalistas corajosos que arriscam a vida em países esquecidos pelo mundo para fazer denúncias das situações que ocorrem lá.
E sobre as epidemias e pandemias? Antes da COVID-19 eu já tinha lido livros sobre o assunto, mas curiosamente eu não achava que aquelas coisas tinham a ver comigo. Repetidamente eu lia em livros que era apenas “uma questão de tempo” até que a próxima pandemia ocorresse. Tivemos algumas amostras no século XXI, como a SARS, H1N1 e a MERS. Mas sempre quando eu lia em livros sobre ameaças de uma pandemia nas mesmas proporções de uma peste negra medieval ou de uma gripe espanhola, eu achava que ou era algo que só ocorreria em algumas décadas ou algo que a medicina atual seria capaz de conter, diferente do que ocorreu no passado.
E assim como as guerras hoje duram menos, a medicina atual realmente está mais preparada para lidar com as atuais pandemias e epidemias.
Mas não adianta. Pandemia é pandemia. Guerra é guerra. Essas coisas continuam assustadoras.
Eu, como quase todos, fui pega completamente de surpresa com a COVID-19. Assim como eu teria sido pega de surpresa se esse ano tivesse começado a Terceira Guerra Mundial. Apesar de eu ler sobre epidemias e guerras em outros países (tanto os episódios atuais quanto os históricos), é claro que é diferente quando aquilo acontece em seu próprio país ou o envolve.
Lembro que eu pensei algo do tipo: OK, eu leio o tempo todo sobre guerras e epidemias em livros. Já tinha sido alertada que era só uma questão de tempo até acontecer comigo, mas ainda não era a hora! Por que 2020? Por que não 2030 ou 2040? Eu precisava de um pouco mais de tempo para me preparar!
Mas é como a morte. Ela não espera. Ela só chega, “como um ladrão” como diz a Bíblia.
Como muitos, eu me senti como a protagonista de um filme: “Sim, isso realmente está acontecendo, aqui e agora”. E as minhas leituras a respeito não foram o bastante para me preparar. Então em março e abril eu li mais algumas dezenas de livros sobre epidemias e guerras. Mas parece que nunca é o bastante.
Por que eu e a maior parte das pessoas ficou e ainda está com tanto medo da COVID-19? Como se fosse realmente “o acontecimento mais marcante desde a Segunda Guerra”?
Não estou falando sobre a questão de usar máscara e fazer distanciamento social, pois isso é algo que todos devem fazer. Estou falando sobre como nos sentimos psicologicamente em relação à pandemia.
Nós não nos sentimos assim a respeito do ebola, porque, apesar de ser uma doença com mais de 50% de mortalidade em alguns casos, essa doença estava no Congo. E já há vacina. Mas mesmo quando não havia não ficamos com tanto medo. Porque não se espalhava tanto e estava longe.
Essa é a grande questão: está longe. Seja fisicamente longe ou culturalmente longe.
Existe essa diferença entre o eu e o outro. Eu concordo em ajudar o outro contanto que eu não me torne o outro.
É como em livros de literatura. Não é raro que um personagem negro seja incluído. É o outro. Porém, é muito raro que exista um protagonista negro, porque ele é o “eu”. E parece que fazemos questão de fazer uma segregação definitiva entre o eu e o outro.
O “outro” é o pobre morrendo de fome do outro lado do mundo (ou da esquina) para quem eu faço doações mensais. Está tudo bem contanto que o outro continue diferente de mim e continue longe.
Mas o que acontece quando eu me torno o outro? Claro que vamos nos sentir muito bondosos ajudando o outro lá longe. Ou ajudando o outro aqui mesmo, em sua frente, contanto que a praga do outro não me atinja.
Mas de repente com a COVID-19 houve um rompimento dessa barreira entre o eu e o outro. A praga chegou até nós. Não era mais coisa de pobres distantes com cultura e religião diferente da minha.
Sobre a resposta para a questão “o mundo continua o mesmo?” (a história se repete?) eu diria que, de certa forma, não. Eu acredito que as guerras e epidemias atuais estão diferentes. A ciência avança, há mais informações circulando. E isso é bom. Então, dessa perspectiva eu diria que o mundo está melhor sim.
Há mais fake news circulando, mas também há mais informações de qualidade. Sempre houve fake news e elas se espalhavam de forma muito mais terrível quando havia menos opções de fontes de informações para oferecer uma alternativa à história.
Mas há muita gente falando no novo normal e em como o mundo mudou desde o início da pandemia. Bem, adivinhe só: o mundo não mudou da forma que queremos acreditar. Já havia mais de cem guerras e centenas de epidemias matando milhões no mundo.
A única coisa que realmente mudou no ano de 2020 foi que uma pandemia chegou nos países chamados desenvolvidos. E isso é uma novidade para eles desde a gripe espanhola.
Eu costumo acompanhar as notícias da Cruz Vermelha. E adivinhe: para alguns países como Síria e Iêmen, o início da pandemia não foi esse drama que o mundo ocidental rico fez. Na verdade, a pandemia foi apenas mais um problema para se somar aos outros. Mas definitivamente não foi um problema maior do que a guerra, a fome e outros. A pandemia piorou essa situação, aumentou a fome e mortalidade, definitivamente. Mas a situação já estava muito ruim. Ela ficou pior. Então não foi exatamente uma surpresa.
Nós só fomos pegos de surpresa com essa pandemia (e seremos pegos de surpresa quando alguma grande guerra devastar o ocidente, o que talvez também seja apenas questão de tempo) porque para nós o normal é a paz relativa (perturbada apenas por eventuais assaltos, assassinatos, acidentes) e a saúde relativa (perturbada pelas doenças de “idade avançada” como infarto, AVC, câncer, diabetes, etc).
Então parece que antes estávamos vivendo numa caricatura do mundo real, numa casa de bonecas, num teatro, estávamos apenas fingindo que o mundo estava saudável e em paz, mas nunca estava. Nunca esteve. Uma pandemia chegou, assim como no futuro chegará outra. Assim como uma guerra eventualmente nos atingirá.
Não estou falando tudo isso para diminuir a importância da COVID-19, que é uma pandemia que deve ser tratada de forma séria e todas as medidas apropriadas de segurança devem ser adotadas. Estou falando disso apenas para lembrar que, embora haja menos guerras e epidemias do que no passado (e elas não sejam tão devastadoras quanto antes), isso tudo já estava acontecendo.
Não é que o mundo mudou com a COVID-19. A pandemia assustou uma parcela da população que não estava acostumada a se assustar com essas coisas.
É claro que eu preferia que essa tragédia não tivesse acontecido, mas nós sabemos que guerras e pandemias são coisas que, até onde sabemos, sempre vão acontecer. Ao menos enquanto vivermos. Não vejo nenhuma perspectiva de guerras e pandemias terminarem até o dia de nossa morte e até a morte das gerações seguintes.
Acho que muita gente em 2020 estava com projetos de melhorar seus conhecimentos, habilidades e finanças para poder ajudar não somente a si mesmo, mas também outras pessoas. Afinal, investimento em si mesmo pode se transformar numa forma de melhor servir a sociedade. Mas houve essa interrupção com a pandemia, que colocou nossos projetos e planos futuros “em espera”, nos chamando a fazer algo agora, mesmo com nossos conhecimentos e habilidades imperfeitos, e mesmo sem termos tanto tempo e dinheiro para isso. Ou seja, o mundo não esperou primeiro atingirmos a iluminação, nos tornarmos santos, ricos ou mais habilidosos. Foi como um balde de água fria: faz o que dá com o que você tem. Agora.
É não somente uma lembrança de que estamos vivos agora e podemos agir agora sem nos tornarmos perfeitos antes. É uma lembrança de que não há exatamente essa linha que separa o eu que ajuda e o outro que vai ser ajudado, como imaginávamos.
Nós não estamos sendo chamados a fazer caridade com o pobre e ficarmos seguros. Ao contrário, somos chamados a correr riscos para ajudar outros e a nos tornarmos o pobre e o doente. De fato, na morte todos nos tornamos iguais. Essa parece ser uma justiça no mundo.
É claro que a pandemia mostrou que não morremos de forma igual. Mas pelo menos o medo da pandemia pareceu ser uma experiência quase universal, embora cada um reaja de forma diferente (medo extremo, negação, aceitação, etc).
Eu leio muito sobre guerras também porque uma das únicas coisas que parece ser realmente pior do que uma pandemia é uma guerra. Eu sei que assim como a COVID-19 me pegou de surpresa, uma guerra do futuro (próximo ou distante) também vai me pegar de surpresa e eu nunca vou estar completamente preparada. Mas assim é a vida: nunca estaremos completamente preparados para a morte. Mas o quanto antes aceitarmos que algo assim faz parte da vida, podemos evitar cairmos em desespero, apesar do medo.
Ou, como se costuma dizer, coragem não é ausência de medo, mas é aceitar prosseguir apesar do medo. E dessa perspectiva, o mundo não mudou tanto assim com a COVID-19: morte e impostos, costuma-se dizer, é a constante da vida. Bem, guerras e pandemias também. Em vez de fugir dessas coisas e da morte para sempre, vale a pena tentar entender o mundo e aceitar que essas coisas não são questões distantes que acontecem com os outros. Elas fazem parte de nós agora e sempre vão fazer.
Nós não vivemos saudáveis e em paz. Nós e o mundo vivemos numa alternância, numa dança entre paz e guerra, entre saúde e doença. Entre prazer e dor. Não é questão de se vai acontecer, mas de quando. Por isso, nos momentos de paz, saúde e alegria devemos nos preparar.
Muita gente sonha em mudar o mundo, sonha com a paz. Os mais otimistas sonham com o fim das doenças e os mais otimistas ainda com o fim da morte. Eu sou particularmente pessimista quando digo que guerras não vão acabar, principalmente não no futuro próximo. Mas eu sou otimista quando aceito que a guerra faz parte do mundo e da experiência humana e mesmo com guerras e doenças podemos achar significado na vida, sermos felizes, sofrer e ajudar os outros.
A experiência de ajudar outra pessoa não somente de forma distante, com essa diferença entre o eu e o outro, mas tornando-se o outro, é um efeito colateral da guerra e da peste: você também sofre e também é mortal. Não há escapatória e salvação da dor e da morte. Mas há momentos preciosos quando você se torna o outro, se une ao outro e não há mais diferenças nem na vida e nem na morte. Claro que há diferenças circunstanciais, mas há esses instantes de conexão. E eu acredito que isso é o mais próximo de uma alegria genuína que podemos encontrar nesse mundo: no meio da dor.
Isso pode até parecer uma romantização da situação, mas o que nos resta? Dizem que os grandes poetas e artistas encontram mais inspiração na dor. C.S. Lewis diz que o sofrimento é o megafone que Deus usa para falar com um mundo surdo. Espero que dessa vez tenhamos escutado. Senão, não precisamos nos preocupar. Haverá outras oportunidades e elas não vão demorar.
O mundo opera nesses ciclos, alternância de guerra e paz relativa, de doença e saúde relativa. Mas, novamente, afirmo que, apesar de tudo, eu sou otimista e vejo esperança e significado na vida humana no meio desse aparente caos. E isso para mim faz toda a diferença.