O mistério do corpo, da nutrição e da saúde
O corpo humano é um mistério. Há muito mais coisas sobre ele que não sabemos do que aquilo que sabemos. Por incrível que pareça, até na anatomia de vez em quando se descobre novas partes do corpo que se desconhecia uns anos atrás.
Aqui eu fiz uma lista de livros de nutrição e aqui uma lista de livros de biologia, que podem ajudar como introdução a esses tópicos complexos.
Muitos dizem que antes de estudar a fundo um tópico, é necessário saber pelo menos o básico da área imediatamente anterior a ele. Portanto, se você quer estudar biologia é bom saber um pouco de química. Se quer estudar química é bom saber algo de física. Se deseja saber física, é desejável ter alguma base em matemática. E se seu desejo é matemática, boa coisa é conhecer filosofia, sobretudo a lógica. E por aí vai (há quem diga que para conhecer filosofia é preciso ter uma base em teologia). Mas as coisas não funcionam como uma escada. Está mais para uma rede, já que há diferentes áreas conectadas.
Se você quer estudar o corpo humano, conhecimentos de anatomia, fisiologia, nutrição e epidemiologia são a base, mas não é só isso. Bioquímica, farmacologia, microbiologia, imunologia, genética, patologia, histologia e muitas outras áreas são importantes, mas depende no que você quer se focar.
Desde a Antiguidade é dito que o principal para a saúde são os alimentos que comemos, o quanto dormimos e os exercícios físicos que realizamos. O ideal é se focar nisso. Os medicamentos devem ser evitados e usados somente quando necessário. Ainda mais raros devem ser os procedimentos cirúrgicos, pois há ainda mais riscos. Sendo assim, quanto menos invasiva a intervenção, melhor.
Em diferentes épocas e civilizações não era permitida a prática da dissecação em humanos, de forma que alguns grandes anatomistas, como Galeno, tiveram que recorrer às dissecações de animais. Dessa forma, o conhecimento da anatomia ficou um pouco atrasado. E a fisiologia experimental teve seu início com William Harvey, no século XVI, que descreveu a circulação sanguínea, mas se desenvolveu com muito mais detalhes com a biologia molecular, no século XX.
A epidemiologia estuda os fatores que causam as doenças nas populações, como a genética e os hábitos de vida. A nutrição é a área que estuda o efeito dos alimentos e nutrientes nas funções dos organismos.
Sabemos que a doença resulta de uma complexa interação entre diversos fatores, como genéticos, sociais, ambientais e psicológicos. Porém, já se sabe que, em geral, os fatores ambientais influenciam muito mais do que os genéticos. Alguns autores falam de até 90% de influência ambiental para diversas doenças.
Para quem gosta de números, li num livro de nutrição que, dentre os fatores ambientais responsáveis pela saúde, o mais importante é os alimentos que comemos. Eles seriam responsáveis por quase 80% da nossa saúde. O segundo fator mais importante seria o número de horas que dormimos, sendo necessário, no mínimo, 8 horas diárias. Exercícios físicos estariam em terceiro lugar.
Não é necessário levar essas porcentagens de forma totalmente literal, já que elas foram obtidas por algumas pesquisas científicas em um número não muito grande. Muito mais estudos são necessários. É só para termos uma ideia.
Então, o que devemos comer? É possível que esse seja um dos tópicos mais polêmicos do mundo. Simplesmente porque é difícil dizer ao certo.
Eu escrevi um texto sobre isso aqui, mas desde 2015 eu já li muitos outros livros a respeito, incluindo livros de evolução, o que mudou ligeiramente meu ponto de vista.
Nós podemos generalizar sobre o que seria uma dieta adequada para a maior parte das pessoas. Porém, é óbvio que cada um possui sua individualidade. Cada pessoa possui uma genética e hábitos de vida diferentes e a alimentação escolhida deve levar isso em consideração.
Se você fizer um exame de sangue e outros testes, como medir sua glicose, seu grau de intolerância ao glúten e à lactose, por exemplo, saberá se deve ser seu foco evitar o açúcar, o pão, o leite e outros alimentos. Se você desconhece essas informações, o melhor é evitar esses alimentos e alguns outros, por precaução.
Há algumas regiões do mundo em que é mais comum a intolerância à lactose porque os antepassados daquele povo não costumavam criar animais para beber o leite. Então há alimentos que prejudicam mais algumas pessoas do que outras.
Isso também é verdadeiro para uma dieta onívora ou vegetariana. No Paleolítico, havia alguns povos que eram predominantemente coletores e tinham uma dieta constituída quase que completamente por alimentos de origem vegetal. Porém, outros eram caçadores e comiam principalmente produtos de origem animal. Em geral eles consumiam um pouco de cada, mas isso também variava de acordo com o local do globo em que viviam e a época do ano.
O ser humano passou cerca de 99% de seu tempo no período Paleolítico, então nosso organismo está mais adaptado ao que comíamos naquela época do que em qualquer outra. Por isso até hoje nós não aceitamos bem os grãos que vieram com a agricultura no período Neolítico. E muito menos os alimentos industrializados dos últimos séculos. Enquanto já se consumia sal milênios antes de Cristo, com os frutos do mar, o açúcar começou a ser cultivado há poucos séculos, então é fácil saber qual faz mais mal para a saúde.
Eu não sei o que os ancestrais dos indianos consumiam no Paleolítico, mas sabemos que eles já seguem uma dieta predominantemente vegetariana há uns bons milênios. Por isso, pode ser que seja mais saudável para muitos indianos ser vegetariano. Atualmente, com a globalização e a mistura genética entre pessoas de tantos países diferentes, pode ser que alguns indianos que vivem em cidades grandes e possuem pais, avós ou bisavós de outras terras, precisem equilibrar em sua dieta alguns alimentos de origem animal.
Quando eu estive na Índia, escutei de um indiano que um dos motivos de a vaca ser sagrada lá é por causa do leite, que salvou e ainda salva muitas crianças da desnutrição. O leite já faz parte da dieta na Índia por um bom tempo, o que talvez indique o benefício dos laticínios para eles. Inclusive eu li recentemente no livro “The Greatest Benefit to Mankind” de Roy Porter que os médicos indianos, desde a Antiguidade, já recomendavam, além de vegetais, manteiga e ghee para a boa saúde. Até hoje o ghee é muito famoso na Índia. Inclusive, a palavra “ghee” vem do sânscrito e significa “manteiga clarificada”.
Também já li que era comum na Idade Média europeia, quando os monges ficavam doentes, dar-se carne para eles, para que recuperassem mais prontamente a saúde.
Se você é um descendente de esquimós, por exemplo (que possuíam uma dieta com base 99% animal), e tenta seguir uma dieta vegetariana, pode ser que enfrente alguns problemas de saúde. E o contrário também é verdadeiro: se você descende de uma tribo africana que consumia principalmente vegetais por incontáveis gerações, quem sabe a carne não faça tão bem para você.
É claro que o corpo também pode eventualmente se adaptar a certas dietas e é necessário aguardar esse período de adaptação. É comum que uma pessoa que comeu carne a vida toda e subitamente tira a carne, ou talvez todos os produtos de origem animal da dieta, tenha uma diarreia ou até vá para o hospital um mês após a mudança alimentar e conclua, erroneamente, que não está adaptado a esse tipo de alimentação. O contrário também é verdadeiro: uma pessoa que foi vegetariana ou vegan por anos e de repente volta a comer carne ou queijo pode ter diarreia ou passar muito mal, concluindo que “esses alimentos fazem mal para a saúde”. Não é bem assim.
De acordo com o que comemos, as bactérias do nosso intestino mudam. Se você altera subitamente toda sua alimentação, as suas bactérias vão mudar radicalmente. Por isso em qualquer mudança alimentar brusca pode haver diarreias ou episódios de infecção alimentar. Então é importante que as mudanças sejam feitas de forma gradual e se aguarde pelo menos alguns meses para tirar conclusões. Os exames de sangue feitos antes e após as mudanças serão indicativos mais confiáveis, embora em alguns casos seja necessário aguardar talvez seis meses ou um ano, já que algumas células do corpo vivem bastante tempo.
Há muito mais que pode ser dito sobre nutrição. Por exemplo, além do tipo de comida, o quanto devemos comer e com que frequência? Isso também pode variar de pessoa para pessoa.
No Paleolítico nossos antepassados às vezes passavam muitos dias em jejum quando não havia alimento disponível. Se uma caça era bem sucedida, comia-se muito e de uma vez só. Por essa lógica, é mais saudável fazer alguns jejuns de tempos em tempos (como de 12 horas, de 24 horas ou dois dias, apenas com água) e talvez seja suficiente para nós comer apenas uma ou duas vezes por dia.
Mas também havia tribos de coletores com mais alimento disponível, pois como eles viviam em grupos pequenos não havia tanta competição em muitas regiões. Esses talvez passassem boa parte do dia comendo, principalmente porque muitos dos alimentos eram difíceis de mastigar e era necessário comer muitos deles para obter os nutrientes necessários.
Seguindo esse raciocínio, se você come carne, que é um alimento mais denso e que dá mais saciedade, quem sabe o ideal seja fazer menos refeições. E se come vegetais, mais refeições. Mas isso é apenas especulação. Na prática, o nosso número de refeições costuma seguir mais convenções sociais.
Se formos considerar o aspecto psicológico da nutrição, algumas pessoas simplesmente preferem comer menos refeições, mas uma quantidade maior de alimentos em cada uma. Outras preferem fazer mais refeições e comer menos em cada uma delas. E é claro que se a pessoa tiver alguma condição específica de saúde, pode ser que comer apenas uma vez ao dia não lhe faça bem, principalmente se ela realiza trabalhos pesados.
E sobre a água, o quanto devemos beber? Os profissionais de saúde costumam falar em 2 litros de água por dia. Mas isso varia conforme o peso e a altura: quem é mais magro e mais baixo precisa consumir menos água. O sangue leva os nutrientes e o oxigênio para as células, então é natural que em uma pessoa menor ele tenha um caminho menor a percorrer e tanta água (ou alimentos) não seja necessária.
Além disso, os alimentos também têm água. Se uma pessoa consome muitas frutas e vegetais frescos (que não sejam secos/desidratados) não precisará beber tanta água. Sucos não substituem o consumo de água, pois eles contêm açúcar, seus constituintes vão para o sangue mais rápido, podem elevar a insulina e reter água no organismo. O melhor é consumir as frutas, pois contêm fibras.
Uma observação sobre alimentos processados: sabemos que os ultraprocessados, que são os alimentos industrializados, fazem muito mal para a saúde, principalmente por causa do açúcar e dos conservantes e outros aditivos químicos. Mas se você alterou apenas ligeiramente um alimento, pode-se dizer que, de certa forma, você o “processou”.
Um ovo frito, por exemplo, é mais alterado do que a composição de um ovo cozido. Portanto, um ovo cozido é melhor para a saúde, até porque ele contém mais água e sabe-se lá que óleo você usou para fritar. Os óleos vegetais, com a exceção do óleo de coco, são muito mais processados.
É um raciocínio fácil: se você come uma cenoura inteira, ela está menos processada. Se você rala uma cenoura, você já a processou um pouco. Portanto, devemos optar sempre por alimentos in natura, exatamente como eles vieram da natureza.
É claro que comer carne e ovos crus, embora mais saudáveis da perspectiva dos nutrientes oferecidos (os animais carnívoros na natureza não cozinham os alimentos) pode ser perigoso pelo risco de conterem microrganismos que farão muito mais mal para nossa saúde do que a perda nutricional de cozinhar os alimentos.
Mas basta pensar que para fazer um bolo, mesmo que você utilize os ingredientes mais saudáveis possíveis, você picou os ingredientes, tornou-os líquidos, etc, enfim, você os processou, o que tornaria o bolo vegan sem açúcar com variadas vitaminas e minerais sempre menos saudável do que comer os alimentos in natura (pois eles estão hidratados, com suas vitaminas e microrganismos mais biodisponíveis).
Nós temos medo dos microrganismos que fazem mal à nossa saúde, mas muitas bactérias dos alimentos na verdade trazem incontáveis benefícios para nós. Ao processar mesmo que minimamente alguns dos alimentos, perdemos muitos desses benefícios.
Eu teria muito mais a falar sobre alimentação, mas passemos ao próximo tópico: o que podemos dizer sobre o sono?
Num livro sobre evolução que li recentemente, aprendi que nossos antepassados no Paleolítico dormiam mais de 9h por noite e ainda tiravam um cochilo ao meio-dia, após o almoço. Ao que tudo indica, essa pode ser uma maneira saudável de viver para nós.
Claro que cada pessoa tem seus hábitos particulares de sono e é preciso ver o que funciona melhor para cada um. É importante dormir quando está escuro, devido à produção de melatonina. Nosso ciclo circadiano, desde antigamente, está preparado para nos fazer dormir por volta de nove ou dez da noite e acordar ao nascer do sol. Quando alteramos esse relógio, podemos ter problemas para pegar no sono.
Evidentemente, o corpo humano pode se adaptar. Se você o acostuma a dormir e acordar todo dia rigorosamente num novo horário, após o período de adaptação ele poderá se acostumar.
Assim como a alimentação, cada um tem seus hábitos de sono e irá defendê-los, alegando que “eles funcionam para mim”, mas não é porque funcionam para você que significa que serão o melhor para todo mundo. Ora, pode ser que você descenda de uma tribo do Paleolítico que dormia e acordava em horários inusitados! Já pensou nisso? Até hoje você guarda esse jet lag ancestral.
Quanto aos exercícios físicos, mesma coisa: pense na evolução. Será que os seus antepassados do Paleolítico eram caçadores que tinham que correr bastante? Ou eles tinham muitos alimentos disponíveis ao seu redor e não precisavam andar muito para comer?
Seja como for, seus antepassados certamente caminhavam e corriam, o que torna essa uma das atividades mais saudáveis e estamos evolutivamente adaptados a ela, desde que começamos a caminhar com as duas pernas (não irei entrar na discussão dos motivos de termos começado a andar sobre as duas pernas, pois esse é um longo debate nos livros de evolução que já li).
E quanto ao sol? O quanto de vitamina D você precisa? Seus antepassados vivam em zonas tropicais ou em regiões em que o sol era raro?
Essa é apenas uma introdução a esse tópico tão fascinante e complexo. A ciência ainda não avançou o bastante para compreendermos a questão da saúde em profundidade, mas já sabemos de muitas coisas importantes.
Na prática, devido a questões sociais, psicológicas e de outras naturezas, optar por hábitos saudáveis nem sempre é nossa prioridade e nem deve ser em todos os momentos. Afinal, não vivemos somente para comer ou para ter uma vida longa. Ter saúde é um meio e não um fim.
Mesmo pessoas que já não têm muita saúde ou estão em estado terminal, poderão descobrir que ainda há vida na doença e a questão do que é saúde e doença muda de tempos em tempos.