O Místico e o Exotérico
Todas as religiões possuem suas formas “públicas” e suas formas místicas.
“O místico busca uma experiência direta, não mediada, do divino. Conhecimento místico é conhecimento direto, em contraste com o conhecimento da ciência, filosofia ou escrituras. O místico incorpora expressões externas de sua religião (devoção, ritual, ética, crenças), mas quer ir mais fundo. Quer não apenas obedecer, reconhecer e adorar Deus, quer também encontrar e experienciar Deus”
(Islã para leigos, por Malcolm Clark)
Atualmente formas místicas de religiões orientais são geralmente mais populares no Ocidente. Afinal, ocidentais que buscam uma religião diferente muitas vezes estão insatisfeitos com a forma pública da religião cristã. Então eles não querem seguir uma cópia ou algo parecido com o cristianismo público, mesmo que seja na forma de religião oriental.
Dando um exemplo, a yoga, que é uma forma mística do hinduísmo, ficou popular no Ocidente por propor um contato mais direto com Deus. Os ocidentais não queriam necessariamente reverenciar os Deuses hindus, mas buscar uma forma de chegar a Deus de maneira mais direta, através de posturas corporais, meditações, etc.
O problema é que essa “forma mais direta” atropelou a maior parte dos ensinamentos importantes do hinduísmo e yoga acabou virando sinônimo de academia de ginástica.
Isso também aconteceu com meditações budistas. Muitos começaram a meditar apenas para “relaxar do estresse” e não para buscar o nirvana. As pessoas estavam fartas de mandamentos, então queriam fazer a religião do seu jeito. O resultado foi que a prática da meditação também se transformou numa academia de ginástica e perdeu muitas das suas origens religiosas.
Não me entendam mal. Realizar exercícios respiratórios, corporais, relaxar, etc, tudo isso é importante. Mas cada coisa tem sua hora e lugar e pode ser problemático pegar algo fora de contexto.
Já falei disso em outros lugares, mas muitos ocidentais que buscam “religiões diferentes” e “experiências místicas” buscam liberdade e conhecimento, mas não desejam assumir responsabilidades.
A parte ética da religião praticamente é esquecida com muitos dos chamados exercícios místicos. É algo como: “quero tocar Deus, quero sentir êxtases místicos, porque estou apenas curioso, ou eu quero ter um barato sem usar drogas”.
No entanto, a maior parte das religiões ensina que nós nos aproximamos de Deus quando somos gentis com os outros, quando fazemos atos de caridade, quando ajudamos os outros.
Porém, muito do misticismo ocidental acabou se transformando em pegar aspectos de religiões fora de contexto e usá-los para atingir objetivos egoístas do tipo: “Eu quero relaxar porque estou estressado, eu quero sentir êxtases místicos para quebrar o tédio e a monotonia do dia a dia”. Repito: relaxar é bom, sentir êxtases místicos é bom, mas tudo isso deve ser combinado com os aspectos éticos da religião (os famosos mandamentos, que muita gente detesta porque não curte a ideia de um Deus pedindo que sejamos bonzinhos), com a leitura das escrituras e com os rituais de devoção a Deus que têm sido feitos por séculos.
O que acontece com muita gente é o seguinte. Muitos pensam: “Essas religiões populares são coisa pro povão, são coisa pra gente burra, pra gado, que só sabe obedecer e não sabe pensar sozinho. Mas eu sou especial! Eu sou mais inteligente que eles! Eu posso ter um contato direto com Deus, seguir o caminho dos místicos, que é o caminho dos que estão mais avançados no entendimento! Eu estou mais avançado porque eu questiono as religiões, penso por mim mesmo. Eu quero uma via rápida para Deus, uma via que não exija muitos sacrifícios, que seja leve e confortável”
Como os cristão dizem sobre Jesus: se houvesse um caminho mais fácil e melhor, Jesus teria mostrado. Mas ele escolheu morrer na cruz. Jesus não escolheu o caminho fácil. Então por que deveríamos escolher?
É verdade que Jesus falava em parábolas para a multidão e para seus apóstolos falava de forma mais difícil ou direta. E mesmo entre os apóstolos, Jesus tinha seus favoritos: Pedro, Tiago e João. Ele até mesmo se transfigurou diante desses três.
Para alguns, o pensamento de ser parecido com a “multidão” é insuportável. Talvez essas pessoas tenham uma visão negativa da humanidade ou só veem o pior das pessoas, mas veem a si mesmas como melhor que elas. Então, elas enxergam a si mesmas como um João, como o discípulo mais amado por Deus e merecedor de favores especiais.
Eu não estou criticando o misticismo, que é uma parte importante de todas as religiões. Eu aponto o fato de o misticismo religioso ser muitas vezes pego fora de contexto. Então alguns místicos se proclamam como os diferentes, os especiais, os que se destacam da multidão. São tão especiais que veem a si mesmos acima das regras religiosas comuns.
Ou seja, esses místicos acham que não precisam ler os livros sagrados, pois têm contato direto com Deus. Ou interpretam as escrituras como querem, porque se acham acima dos teólogos que estudaram largamente a tradição e interpretaram as escrituras à luz delas.
E mais: muitos autoproclamados místicos criam suas próprias ideias sobre certo e errado, sem se importar com o que dizem as religiões sobre bem e mal. Alguns podem até dizer que bem e mal são relativos e usar esse argumento para se livrar de algumas obrigações morais trabalhosas. Ou seja, não é conveniente para ele pagar o dízimo, o zakat ou fazer doações para os pobres, porque (dizem eles!) os religiosos são corruptos e vão roubar o dinheiro e os pobres são bêbados e vão gastar com bebida. Então ele decide que é melhor não fazer doações. Ele finge que tem motivos nobres para se livrar de doar, mas no fundo deixa de fazê-lo apenas porque é mais conveniente para ele. Pode ser que ele até diga que as coisas do mundo e da carne não importam, somente o espírito.
Enfim, esses são apenas alguns exemplos das desculpas que alguns dão para se livrar de obrigações religiosas, sem pensar que elas podem estar ali por alguma razão. Uma das razões é disciplina: uma regra religiosa que nos diz para fazer doações regularmente (e que até indicam a porcentagem) existe porque pode ser que muitas pessoas não irão, naturalmente, fazer doações voluntárias todo mês.
Mas alguns místicos dizem: “Tenho contato direto com Deus, ele me disse tal coisa, então eu não preciso de conselhos das escrituras”. Mas até mesmo o maior dos místicos ainda deveria reverenciar a sabedoria que veio antes dele. Talvez ainda mais, se sabe tanto quanto diz saber.
Eu conheci primeiro as partes místicas de religiões e práticas espirituais antes de chegar nas formas públicas das religiões.
Eu certamente me achava especial, pensava que me esforçava mais que a média e se meditasse o suficiente poderia chegar ao nirvana em poucos anos, como diz Buda e alguns monges do budismo Theravada.
Naquela época eu achava sem importância coisas como acender uma vela na frente de uma estátua do Buda. Achava que era superstição de pessoas sem muito estudo. Eu não poderia estar mais enganada.
Na verdade, aquelas pessoas eram humildes e eu era arrogante. Elas pediam humildemente ajuda e eu queria fazer tudo sozinha. E descobrir tudo sozinha também.
A forma pública ou exotérica das religiões me levou de volta ao aprendizado da humildade. Eu não me considero uma pessoa humilde, mas eu pelo menos consigo reconhecer que a humildade é algo louvável e digna de ser buscada.
Aprender sobre Deus foi uma das coisas mais surpreendentes da minha jornada. Eu nunca fui ateísta e nem mesmo agnóstica. Eu reconhecia a existência do espiritual como um profundo mistério que eu estava disposta a penetrar, embora no começo não fizesse muita ideia do que se tratava.
O meu erro foi acreditar que eu faria aquilo com minhas próprias forças, mas é o oposto: não é você que chega a Deus porque se esforçou muito. É Deus que se mostra para você, por muitas razões: porque você orou, se ajoelhou, chorou diante de Deus. Ou porque você fez o bem para outras pessoas. Ou porque simplesmente Deus quis.
Muitos místicos acham que se tiverem muita disciplina irão descobrir um estado místico perfeito na meditação que irá conectá-los com Deus. Ou eles acham que depois de muitos jejuns e penitências Deus irá recompensá-los.
O erro é termos a arrogância de achar que o esforço parte de nós. Não é assim. Nós temos nosso livre-arbítrio, mas ele deve ser usado em primeiro lugar para cultivar a humildade e para reconhecer que a diferença entre um ser humano e Deus é enorme. Deus é perfeito. O ser humano não é.
Eis aí uma diferença fundamental: o místico não gosta dessa história de que ele é muito diferente de Deus! Afinal, Deus está dentro de nós, é o Espírito Santo, como dizem os cristãos. Deus é Pai, é Filho, é alguém próximo.
É claro que isso depende de como você interpreta esse ensinamento. Deus está dentro de nós significa que nós não precisamos procurar muito longe. Não precisamos fazer uma peregrinação para Meca ou para Jerusalém para ter um contato com Deus. Deus está em toda parte, está em nosso coração. Jesus é o pobre, é o miserável, o renegado. Ajude-o e Deus estará com você.
Por outro lado, há místicos que clamam: “Eu sou Deus!” Tudo bem, você tem uma parte de Deus em você, uma parte sagrada, que é a alma. Mas você exige que as pessoas se ajoelhem diante de você porque sua experiência mística te fez ver a face do Deus vivo?
Não há nada de errado com as afirmações de muitos místicos. Mas há momentos em que frisar que Deus e nós somos muito diferentes é importante para nos fazer recordar da humildade e deixar a arrogância um pouco de lado.
O misticismo também tem seus perigos e armadilhas se seguido por alguém que não quer saber das experiências e ensinamentos dos sábios que vieram antes dele e quer fazer tudo sozinho e reinventar a roda.
Eu admiro muito o misticismo, tanto que sou apaixonada pela operação de Abramelin, por meditações, orações realizadas em jejum e muitos outros métodos populares de quem busca um contato direto com Deus. Mas o que essa busca de um contato mais direto com Deus me ensinou é que experiências místicas não são mais elevadas ou melhores do que outras experiências que temos em nossas vidas diárias, interagindo com pessoas.
O mundo foi criado por Deus, então ele é um lugar sagrado. Existem pessoas que se isolam do mundo para ter uma experiência mais direta com Deus em mosteiros, cavernas, etc, e esse é um chamado muito particular. Meu ponto é que isso não é necessariamente melhor (e nem pior) que outros caminhos.
Muitos estão sedentos de Deus porque não temos mais o costume de orar diariamente, ao acordar e ao dormir, antes de comer e em outras ocasiões, tornando cada pequena atividade de nosso dia sagrada. Muita coisa pode se tornar sagrada quando previamente consagrado com uma pequena oração.
Porém, como atualmente muitos só levam a vida realizando as “coisas do mundo” tendemos a torcer o nariz para elas e achar que o sagrado está em outro lugar, num local místico e especial ao qual só os escolhidos têm acesso.
Deus se esconde por um motivo: para que o encontremos nas outras pessoas. E não apenas jejuando, orando e meditando sem parar.
Deus se escondeu e quer ser encontrado por nós, mas ele nos deu um corpo para interagirmos com as outras pessoas e com o mundo. E não para dizer que esse corpo e esse mundo são impuros. Eles são obras de Deus.
Hoje em dia eu me interesso bastante pelas formas públicas/exotéricas das religiões pela razão oposta de antes: eu não quero ser diferente, especial, a escolhida. Eu quero me conectar com as pessoas e descobrir o sagrado no mundo, em atividades comuns da vida.
É normal quando somos adolescentes ou jovens achar romântico partir numa jornada mística para buscar Deus. Geralmente queremos que essa jornada represente uma quebra na nossa rotina, que parece monótona. Então erroneamente achamos que só iremos encontrar Deus se formos para um local isolado, se nos purificarmos, jejuarmos. Ou só iremos encontrar Deus se estivermos num estado de consciência diferente.
Fazemos todas essas mudanças externas numa tentativa desesperada de ter o controle: como se Deus fosse um cachorro e nós tivéssemos o poder de chamá-lo e ordená-lo de acordo com nossa vontade, mas não é assim.
Deus fez esse mundo. É nele que devemos atuar e sermos testados. Deus colocou as outras pessoas ao nosso redor para interagirmos e não para fugir delas. O palco já está aí e não precisamos procurar Deus em nenhum outro lugar.
A ideia de que o místico tem um contato mais direto com Deus do que a “pessoa comum” pode ser um pouco estranha ou até uma ideia elitista de separar o “povão iletrado” dos estudiosos, para melhor controlá-los. Eu particularmente gosto muito mais da ideia cristã de que Deus prefere os pobres, iletrados e miseráveis.
É claro que há famosos místicos que não sabem ler e escrever. Mas a própria ideia de separar a religião em exotérica e esotérica pode criar um tipo de sistema de castas que indica quem irá ganhar o jogo de dança das cadeiras e se sentar à direita de Deus.
Eu admiro muito o misticismo religioso. Mas é curioso quando os mesmos que criticam a ideia de que apenas pessoas de tal religião serão salvas também defendam a ideia de que os místicos chegarão mais perto de Deus do que o povo que trabalha duro para sustentar a família e não tem tempo sobrando para meditar por horas diárias até atingir o nirvana.
Não é por acaso que orgulho é o pecado capital mais grave no cristianismo e que tenha sido ele que derrubou Lúcifer. Lúcifer era um dos maiores anjos e caiu. Miguel, por outro lado, era um anjo menor e foi elevado, pela sua humildade.
E existe ato mais humilde do que se ajoelhar, orar e chorar diante de Deus? Se você fosse Deus, não iria amar muito mais uma pessoa que pede ajuda humildemente e admite que sozinho não consegue seguir em frente do que uma que faz todos os jejuns e meditações com disciplina e se orgulha muito disso, achando que são esses atos externos que o tornam mais próximo de Deus?
“Amparai-vos na perseverança e na oração. Sabei que a oração é deveras árdua, salvo para os humildes”
(Alcorão 2:45)
Eu certamente não sei o que Deus pensa. Mas eu duvido muito que ele escolha salvar apenas uma meia dúzia de pessoas que clamam ter acesso à frequência de rádio exclusiva de Deus e deixar de lado aqueles que expressam sua espiritualidade de outras formas igualmente sinceras e dignas, cada um na medida do seu entendimento.