O Inimigo

Wanju Duli
16 min readJan 17, 2021

--

A luta do bem contra o mal. Já ouvimos isso antes. Basta pensar em religiões. Zoroastrismo é uma das religiões que me vem à mente que representa a clássica luta do bem contra o mal: Ahura Mazda contra Ahriman. E, obviamente, as religiões abraâmicas: judaísmo, cristianismo e islamismo.

Conhecemos a história. No cristianismo é dito que Deus deu livre-arbítrio às suas criaturas: aos anjos e aos seres humanos. Se você tem a liberdade de fazer o mal, pode eventualmente fazê-lo. Mas havia mais na história: Deus queria testar suas criaturas.

Se Deus tivesse se mostrado completamente, os anjos não teriam se confundido. Mas é dito que Deus resolveu se esconder, como se por trás de um véu. Ele não se mostrou totalmente no começo. Dessa forma, os anjos não podiam vê-lo, mas tinham que confiar em Deus, como num teste de fé.

Um dos anjos mais poderosos e sábios criados por Deus, Lúcifer, foi o primeiro a cair na tentação e levou um terço dos anjos com ele. Essa quantia, um terço, é significativa: ela nos mostra o triunfo do bem contra o mal. Há mais anjos bons do que maus. Então, no final, o bem sempre vence. Esse é o ensinamento da maior parte das religiões.

A história da queda dos anjos é reflexo da história da queda dos seres humanos. Adão e Eva também caíram, pois falharam no teste de Deus, mas nem tudo estava terminado. No fim dos tempos, Deus tem planos de salvar a humanidade.

Por que estamos vivos? Segundo algumas religiões, como o cristianismo, recebemos essa vida para passar por um tipo de teste. Trata-se de um teste tanto individual quanto coletivo. Nós seremos julgados individualmente, mas ninguém vive sozinho. A humanidade, como um grupo, também será julgada.

Mas se esse é um teste, quem está nos testando? Quem são os ajudantes de Deus? Segundo a tradição cristã, teremos três julgadores no tribunal divino: Deus, nosso anjo guardião e nossa consciência. Isso faz sentido, pois Deus vê o todo. Nosso anjo guardião está conosco o tempo todo nos observando, mas ele não lê nossos pensamentos sem nossa autorização (embora ele seja capaz disso). E, por último, nossa consciência é quando decidimos fazer o bem ou o mal com base no nosso entendimento do que seja o bem ou o mal.

Cada um tem ideias gerais sobre o que seja o certo e o errado, mesmo que não o saiba com perfeição. Então, é claro, podemos alegar que cometemos o mal por ignorância. Porém, é nosso papel buscar o máximo possível de informações para poder diminuir essa ignorância o máximo que conseguirmos.

Mas se Deus, nosso anjo e nossa consciência estão nos ajudando, por que caímos tantas vezes? Contra quem estamos lutando? Quem é o inimigo?

O inimigo máximo, segundo a tradição cristã, é o diabo. Aparentemente essa entidade chamada Satã foi perdendo poder e influência com o tempo. No zoroastrismo há uma visão mais dualista, em que o mal parece ter mais poder que em outras religiões. No cristianismo o diabo é forte, mas muito mais fraco que Deus. Já no islamismo, Shaitan ou Iblis costuma ser retratado como um gênio de poder bem inferior.

Sendo assim, num mundo hipotético em que o diabo ou demônios não existiriam, ainda deveríamos nos preocupar com a possibilidade de fazer o mal?

Deus é descrito na teologia, de uma perspectiva filosófica, como um ser necessário, diferente de um ser contingente. Ou seja, sem Deus o mundo acabaria. Mas Satanás é uma criatura, um ser contingente, e sua existência não é essencial para a manutenção do mundo e a ordem das coisas.

Portanto, mesmo que não existissem demônios nos tentando, ainda assim seríamos capazes de fazer o mal. Simplesmente porque temos liberdade para fazê-lo e não fomos obrigados a fazer o bem, como fantoches. Além disso, o ser humano vivencia uma condição, com seu corpo e sua mente, que fazem parte do teste de Deus.

O ser humano é naturalmente tentado pela própria condição imperfeita de sua carne e de seus pensamentos. Deus não permite que enxerguemos completamente como fazer o bem é algo excelente, pois se percebêssemos isso com 100% de clareza desde o início, não haveria teste nenhum e seríamos potencialmente incapazes de fazer o mal.

Mas ser capaz de cair faz parte da condição para que o teste seja possível. Seria como haver um jogo de videogame em que você é incapaz de perder os corações que marcam seus pontos de vida. Ou cair num buraco e jamais morrer. Esse jogo não teria sentido, não teria propósito. Não haveria uma razão de ser para ele existir se não houvesse a possibilidade do desafio.

Então a existência da condição humana tem um sentido exatamente porque há o desafio, o sofrimento, a possibilidade de fazer o mal e de morrer.

Alguns alegam que esse suposto jogo que Deus criou é cruel e doloroso demais. É difícil demais. Como um Deus bom poderia optar por criar um jogo tão rigoroso? Um jogo que inclui a morte e a tortura de crianças inocentes.

Há várias possíveis respostas para isso, embora não sejam respostas fáceis. O ser humano é julgado de forma individual, mas também coletivamente. Um animal ou uma criança não existem sozinhos, mas estão conectados a todo o resto. Então não é porque um animal, um bebê ou uma criança viveram pouco que suas vidas não tiveram significado, porque elas estão conectadas à existência de toda a humanidade. O cristianismo explica isso no contexto do Corpo Místico de Cristo, que conecta todas as criaturas, vivas e mortas, e explica a intercessão dos santos no catolicismo. É a oração que realiza essa conexão definitiva, mas também nossos atos.

Significa que se outro ser humano ou outro ser (como um animal) sofrem, eu também sofro. Mesmo que aquela outra pessoa seja meu inimigo. Porque todos estamos conectados no mesmo Corpo Místico de Cristo e fazemos parte da mesma carne. Por essa razão, temos que amar até mesmo nossos inimigos e ajudá-los. Pois, de certa forma, eles também são meu “eu”. Pois toda criatura vem de Deus, embora se expresse em sua individualidade.

Então eu devo amar até mesmo o diabo? O ser humano deve ser capaz de perdoar, mas isso não significa que fará amizades com o diabo e andará com ele. Isso porque nós, como humanos, não vemos Deus claramente, nosso amor não é tão grande como Deus, então somos fracos. Por isso seria imprudente fazer amizade com o diabo. Não porque ele não mereça, mas porque o diabo poderia facilmente nos enganar e nos fazer cair.

Então eu devo amar alguém de uma religião diferente da minha? É claro. E devo amar alguém que faz o mal? Sim, até mesmo isso. Nosso papel é orar para Deus e pedir que sejamos capazes de perdoar e amar nossos inimigos. Isso não significa que seremos capazes disso de fato, porque o coração humano não ama como Deus. Mas cabe a nós ao menos realizar o esforço.

Eu devo amar um assassino, um torturador, um estuprador, um genocida, um ditador? Alguns consideram que perdoar certas pessoas pode ser até mesmo considerado ofensivo e um desrespeito com as vítimas.

E isso também não faz parte do teste de Deus? Jesus também não amou Judas?

Mesmo se não existissem assassinos e torturadores no mundo, o ser humano ainda seria capaz de fazer o mal. O cristianismo nos ensina que só viveremos num mundo perfeito após o Apocalipse e julgamento de toda a humanidade. Receberemos um novo corpo, pois esse corpo e mente que temos possui naturalmente inclinações para o mal, devido à própria natureza humana. Por mais bondosos que alguns sejam, é algo totalmente humano se aborrecer com coisas pequenas, como uma mordida de mosquito, um pequeno desconforto de frio ou de calor. Então como pode haver a perfeição atual, nessa vida?

No entanto, algumas pessoas acreditam que algo próximo da perfeição pode ser alcançado nesse mundo mesmo. E essas pessoas ficam frustradas e podem cair em desespero quando não são capazes de trazer ao mundo esse estado próximo à perfeição.

Segundo essas pessoas, não é a perfeição inerente ao próprio mundo, ou ao ser humano, ou o diabo que é o causador do mal. Segundo a visão secular, o mal não vem do diabo, não faz parte do teste de Deus e nem tem origem de dentro do meu coração. O mal vem do outro, do inimigo, alguém diferente de mim.

É evidente que de uma perspectiva religiosa, o diabo também é o outro. Mas os anjos e Deus também são o outro, embora exista no cristianismo o Espírito Santo, um presente que Jesus deixou para nós quando partiu. Mas de forma geral, a religião não nos ensina a culpar nosso inimigo pelo mal do mundo, mas a bater no peito e dizer “minha culpa”, perdoar e pedir perdão.

Na prática, é claro que não é assim que funciona. Existem brigas religiosas até hoje e gente julgando e apontando o dedo para os outros, mesmo quando sua religião o ensina a não julgar. Porém, se formos analisar no cerne da religião, veremos que o ensinamento é de fato esse: não julgues e não serás julgado. Somente ao perdoares, Deus vai te perdoar. O diabo pode até te tentar, mas ele não é capaz de te obrigar a fazer o mal. No final, optar pelo bem ou pelo mal depende de nós, com o auxílio de Deus.

Muita gente que não tem religião critica pessoas religiosas por dividirem o mundo numa batalha do bem contra o mal. Algumas até dizem que não há mal, que bem e mal são construções sociais, que tudo é relativo.

Porém, essas mesmas pessoas costumam adotar uma visão essencialmente religiosa e dualista quando se trata de outros assuntos, como política. O pensamento seria o seguinte: eu sou bonzinho, luto pelo bem, e meu inimigo com visão política oposta à minha é o diabo. O responsável pelo mal do mundo é o meu inimigo. Minha missão nesse mundo é converter todos os infiéis à minha visão de salvação. Pois se meu inimigo se converter à minha religião política, subitamente toda a humanidade será salva e não haverá mais mal no mundo. Será como a Segunda Vinda de Cristo!

Em primeiro lugar, mesmo se a sua visão política for melhor, mesmo se o mundo todo se converter ao seu partido, não deixará de haver mal no mundo. Pois o mal é uma condição inerente ao ser humano.

Talvez você sonhe com um mundo em que ninguém passe fome e que todos tenham acesso à saúde e educação de qualidade. Pode ser que no futuro cheguemos a algo próximo disso, mas acredito que nunca totalmente. E por quê?

Eu já ouvi muita gente falar no “fim das guerras” e até mesmo na irônica frase: “a guerra que terminará com todas as guerras”, como uma revolução violenta que irá exterminar “o inimigo”.

Talvez eu acreditasse em paz no mundo quando eu era criança. Mas após eu ler tantos livros sobre as milhares de guerras que ocorreram ao longo da história, eu não acredito mais nisso. Acho uma visão um pouco ingênua e fora da realidade.

É claro que às vezes podemos nos enganar. Talvez se eu tivesse vivido alguns séculos atrás, eu não acreditasse que o fim da escravidão fosse possível. Na prática, pessoas que acreditam que a escravidão acabou mesmo no mundo precisam de mais leitura, vivência ou imaginação. É óbvio que ainda existe escravidão em alguns lugares do mundo. Mas realmente, essa prática diminuiu no mundo todo com o fim formal da escravidão em muitos lugares e esse já foi um feito admirável.

Eu particularmente acho que a visão religiosa costuma nos dar um panorama mais realista do mundo e nos permite focar nossas energias nos lugares certos. Se apenas Deus pode tornar o mundo perfeito e não o ser humano, nós iremos tentar trabalhar em conjunto com uma meta realista: diminuir as coisas ruins e não eliminá-las.

Parece aquelas resoluções de ano novo: “nesse ano eu irei me tornar fluente em espanhol”, sem saber nada do idioma e sem nenhum plano em vista. Ou com um plano pouco realista de estudar 15 horas por dia.

Ao pensar pequeno no começo, podemos chegar longe por traçarmos planos possíveis. Nós devemos começar reconhecendo que eu sozinho ou a humanidade em conjunto não será capaz de eliminar o mal do mundo. O mal está dentro de mim e dentro de todos nós. Não é culpa “do inimigo” com visão política diferente da minha, com religião diferente ou cultura diferente.

Quando reconhecemos isso não entramos em desespero. Ficamos em paz e temos esperança. Pois sabemos que no final Deus irá cuidar de tudo e por enquanto devo apenas fazer a minha parte. Não preciso carregar sozinho o destino do mundo nas costas.

Ao entender que somos parte de um plano de Deus, que Deus tem um plano para mim e que até o sofrimento e a morte fazem parte desse plano (que eu não preciso conhecer totalmente para começar a agir), iremos apenas confiar e fazer o que estiver ao nosso alcance.

Então a nossa missão nessa vida será fazer o bem, ajudar as pessoas. Fazer o máximo que conseguirmos. Sim, iremos nos esforçar para fazer coisas grandes se possível, mas não a ponto de entrar em desespero. Pois o destino do mundo não está nas minhas mãos. É papel de cada um fazer um pouco, estamos nisso juntos. Até os “maus” desempenham um papel, pois Deus consegue extrair o bem até mesmo do mal. E o “mau” também sou eu. Todos podemos cair e fazer o mal em alguns momentos. Eu e o “inimigo” não somos tão diferentes.

‘Tamara and Demon’ 1889, Konstantin Makovsky

Eu acredito que política é muito importante e que é bastante relevante nos envolvermos politicamente para melhorar as coisas. Você pode até assumir um cargo político ou se engajar politicamente em movimentos, mas existe um momento de reconhecer que você sozinho não conseguirá mudar tudo de errado que existe no mundo.

Nossa reação natural a isso é frustração profunda e desespero. Se existe mal no mundo deve ser culpa de alguém e assumimos automaticamente que essa culpa não é minha, mas de outra pessoa que parece fazer mais mal para o mundo do que eu. Então apontamos o dedo e esquecemos dos outros atos além da política que podemos realizar para tornar o mundo melhor.

Eu não acho que apenas a política é a solução mágica que irá salvar o mundo. São várias coisas que podemos fazer para melhorar as coisas. Mas para mim o primeiro passo é entender que não existe essa panaceia, essa pílula mágica que irá subitamente resolver todos os nossos problemas.

De certa forma, essa nossa raiva em relação a pessoas ou símbolos específicos é uma frustração diante de nossa impotência em ajudar os outros. Então precisamos arranjar um bode expiatório em quem colocar a culpa (seria doloroso demais admitir que também tenho culpa). Porque somos perfeccionistas e exigimos que as coisas sejam perfeitas. Porque há sofrimento nós assumimos um estado de negação.

Sempre vai haver sofrimento, sempre vai haver o mal. Essa é a primeira lição para aceitarmos. A segunda lição é que, adivinhe, eu também faço coisas ruins, nem eu mesmo sou perfeito, então não posso exigir isso de todas as pessoas e do mundo. O entendimento de cada um é diferente. Nem todos receberam a mesma educação que eu recebi ou tiveram as mesmas oportunidades que eu tive para entender certas coisas.

Nós sabemos que algumas pessoas fazem coisas ruins por ignorância, porque não aprenderam a fazer melhor. Porque, por exemplo, quando eram crianças foram sequestradas e doutrinadas a pegar em armas e matar pessoas, como acontece com crianças-soldado em países em guerra.

Mas nós também sabemos que há pessoas que fazem coisas ruins por mera maldade, ou para obter vantagens com isso, como ganhos financeiros. Acho que todos nós já fizemos alguma coisa ruim porque estávamos com raiva, ou talvez deixamos de fazer certa coisa porque a outra coisa daria mais dinheiro. Então não é como se essas outras pessoas fossem tão diferentes assim de nós e estivessem fazendo algo totalmente fora de nossa compreensão.

Sim, essas pessoas estão erradas, é correto denunciar e corrigir o que está errado. Não falo isso para justificá-las de forma alguma. Mas apenas para tentar diminuir o abismo que nos separa. É muito negativo, inclusive para nós mesmos, termos essa visão de mundo de que o inimigo é responsável por todo o mal do mundo e que devo sentir uma raiva constante dele.

Algumas pessoas acham que é mais fácil acabar com as guerras do que com as doenças, mas eu penso o contrário. O argumento seria que guerras dependem apenas da vontade humana, enquanto doenças envolvem patógenos sob os quais nem sempre temos controle. Mas será que é mais fácil acabar com a ignorância humana do que avançar nossa ciência? Além do mais, guerras acontecem por questões muito complexas e não são uma mera luta de bem e mal, uma vontade de obter ganhos financeiros, territórios ou brigas religiosas. É muito, muito mais que isso. É uma ferida muito profunda no ser humano que não poderá ser curada facilmente.

Eu costumo repetir que guerras são piores que pandemias. Talvez uma das piores coisas que existam no mundo. E no momento, algumas das piores guerras que ocorrem no mundo são em países árabes, muitas motivadas por grupos radicais islâmicos.

Exatamente por isso eu tenho lido bastante sobre esses grupos, numa tentativa de entender mais sobre a origem desse mal. Essas pessoas que torturam e matam são seres humanos? Eles são tão diferentes de mim? É possível ter um diálogo com alguns deles?

Lendo livros e vendo documentários eu aprendi que, sim, é possível até conversar com pessoas assim. Muitos foram recrutados para grupos extremistas ainda na infância e adolescência e sofreram uma imensa lavagem cerebral. E temos relatos que alguns descobriram que a religião do Islã prega a paz e se recuperaram do seu passado de assassinatos, largando o grupo.

Isso significa que o inimigo nem sempre é o demônio que queremos acreditar. Não é a encarnação do mal. Nós costumamos dizer que ter um diálogo com quem pensa diferente de nós é importante em vez de apenas doutrinar os outros com nosso ponto de vista.

Tudo isso pode ser imensamente doloroso e difícil. Mas é um passo importante para diminuir a segregação em que o mundo se encontra.

Eu leio muitas biografias. Lembro que quando li Mein Kampf na adolescência eu me senti dividida. Em alguns trechos do livro eu vi um ser humano por quem eu devia sentir simpatia. E em outros trechos do livro senti raiva.

Senti algo parecido quando li a biografia de Osama bin Laden (“Growing Up bin Laden”, por Omar bin Laden, traduzido como “Sob a sombra do terror”). Houve momentos em que admirei alguns traços do caráter do terrorista, mas em outros também senti raiva.

Ao ler o livro Columbine, por Dave Cullen, houve passagens em que admirei algumas coisas boas em Eric e Dylan, mas em outros instantes a raiva subiu.

É natural sentirmos raiva dessas coisas. Achamos que o sentimento é justificável. Pelo contrário, nós nos sentimos confusos e culpados exatamente quando sentimos simpatia por algumas coisas boas que existem até mesmo em assassinos. Porque achamos que é nosso dever vê-los apenas como demônios, como a encarnação do mal. E sentimos culpa imediata toda vez que enxergamos um lado humano nessas pessoas.

Mas por que será que achamos que o certo é sentir raiva, que é nosso dever como humanos odiá-los? No cristianismo costuma-se dizer: devemos odiar o pecado e não o pecador. E quando pensamos em perdoá-los, sentimos imensa culpa. Mesmo depois de Jesus nos dizer para amar nossos inimigos e para perdoar as pessoas setenta vezes sete vezes.

Mas somos apenas humanos. Não somos Deus. Não é realista exigir que nós perdoemos todos, todas as vezes. Podemos apenas orar pedindo isso, mas nem sempre perdoaremos de todo coração. Isso é um milagre que só Deus pode fazer em nós, se pedirmos. Mas deve haver espaço para pedir, para reconhecer que isso é necessário.

Eu me sinto muito inspirada toda vez que leio biografias de santos ou de outras pessoas que admiro. Porém, eu sinto que também aprendo coisas diferentes lendo biografias de pessoas que teoricamente eu deveria odiar.

Quando leio uma biografia de um santo, eu tenho esperanças de que um dia posso fazer uma pequena porção do que o santo fez. Eu me admiro que um ser humano seja capaz disso. Então eu me sinto mais forte, porque vejo que algo parecido pode ser possível para mim. Terei mais confiança em mim.

Por outro lado, quando leio a biografia de alguém que fez coisas realmente terríveis, eu consigo enxergar que há traços humanos naquela pessoa, que ela não é apenas um demônio. Eu devo enxergar que até mesmo eu posso cair e fazer coisas ruins e devo me precaver em dobro quanto a isso. Porém, ver seres humanos ali faz com que eu passe a segregar menos o mundo. Talvez não sejamos tão diferentes.

Eu li uma vez que quando vemos o mal em outras pessoas, nós as condenamos mais. Não condenamos tanto o mal e os erros que vemos em nós ou em grupos e visões que apoiamos. Pelo contrário, nós sempre tentamos justificar as coisas ruins em nós e naquilo que gostamos.

Li isso no livro “Uma história da guerra” de John Keegan. Ele argumenta que quando vemos outras pessoas fazendo guerras achamos algo horrível e condenável. Quando vemos os outros fazendo crimes e torturas de guerra, consideramos abominável. Porém, se a guerra é de nosso povo ou de uma causa que defendemos, tendemos a tentar amenizar e justificar todas as coisas ruins que acontecem ou que fazemos, em nome de nossa “causa maior”.

Então é claro que do ponto de vista de muitas pessoas que realizaram coisas condenáveis, esses atos horríveis às vezes pareciam certos em nome das visões que defendiam. Pode parecer absurdo, mas o ser humano é frequentemente absurdo.

Isso não justifica o que nós e o que muitos fazem. Mas é uma boa lembrança, para questionarmos a nós mesmos: se víssemos outra pessoa fazendo isso, eu continuaria achando bom?

Então, quem é o inimigo? É o outro, mesmo quando ele faz coisas tão ruins quanto eu, apenas porque ele é o “outro”, o diferente? Será que não amenizamos demais as coisas ruins que fazemos, perdoamos nossos erros demais e condenamos outros excessivamente?

Algumas pessoas acham que fazer o mal é matar e torturar diretamente. Outras acham que mandar que outros matem em seu nome é pior, além de covarde. Também há quem ache que fazer o mal é apenas viver uma vida egoísta sem fazer nada para ajudar os que sofrem. Há também quem ache que é mal quem tem muito dinheiro. Ou outros acham que ter um pouquinho de conforto e se dedicar apenas à sua família já é fazer o mal, porque se está ignorando quem está passando fome. Há até mesmo quem ache que matar e fazer algo no mundo é melhor do que apenas viver para si mesmo num canto, ignorando o mundo.

Ou seja, é natural que existindo todas essas opiniões diversas sobre bem e mal, tenhamos tantos desentendimentos e sintamos raiva de quem pensa diferente. Porque tivemos diferentes experiências de vida e experiência dos efeitos do que causa uma escolha ou outra.

Eu não tenho nenhuma solução definitiva para isso. Mas eu acho que apenas sentir raiva de quem pensa diferente de nós e entrar em desespero porque não podemos mudar o mundo é um grande desperdício de energia. Em vez disso, devemos nos focar nas coisas que podemos mudar. Iremos nos surpreender ao nos darmos conta que aquilo que podemos fazer não é pouco.

No final, eu sou o meu pior inimigo. E enquanto eu não mudar meus pensamentos e minhas ações, continuarei a ser o maior adversário de mim mesmo.

--

--

Wanju Duli
Wanju Duli

Responses (1)