O Herói Circunstancial
Quando pensamos num herói, uma imagem que podemos ter é a de um herói de quadrinhos que virou herói após obter algum poder especial de forma acidental, como o Homem-Aranha, embora alguns já nasçam com poderes, como o Super-Homem.
Então parece que muitas vezes existe um evento particular que desencadeia o heroísmo nas pessoas. Por exemplo, os campos de concentração na Segunda Guerra Mundial. Se essa guerra não tivesse acontecido ou tivesse ocorrido em outras circunstâncias, talvez muitos daqueles que optaram por arriscar a própria vida e a vida da família para esconder judeus em suas casas, apenas tivessem continuado a viver de forma normal.
Mas o que é normal? É claro que é possível atuar de forma heroica no cotidiano. Mas normalmente usamos o termo “heroico” para ações particulares que frequentemente envolvem colocar a vida em risco. Mas e profissões que trabalham em circunstâncias insalubres, como raio-x? Profissionais da área da aviação, da saúde, bombeiros e muitos outros.
Então o profissional da aviação só é um herói quando coloca sua vida em risco para salvar os passageiros e não simplesmente por diariamente danificar sua saúde. No fundo, é um herói aquele que as pessoas querem que seja. Aquele que é aclamado pela população como herói ou santo, devido a acontecimentos específicos.
Um bombeiro pode salvar gatinhos em árvores em várias ocasiões, mas raramente alguém o chamará de herói por isso. Mas salvar pessoas de um prédio em chamas ou do rompimento de uma barragem colocando sua vida em risco? Essa é considerada popularmente uma ação heroica.
Eu considero o exemplo da Segunda Guerra bastante emblemático, pois temos muitos livros famosos narrando a vida de pessoas que perderam a vida para salvar outros. Embora essa guerra não seja necessariamente mais importante que outras guerras, ela foi popularmente aclamada como tal por muitos, então virou um símbolo.
Existem muitas epidemias ocorrendo pelo mundo agora e muitas pessoas colocando a vida em risco para salvar outras de doenças que a maioria nunca ouviu falar. Porém, porque a atual epidemia de COVID-19 recebeu mais destaque por ser mundial, como a Segunda Guerra Mundial, às vezes temos a falsa impressão de que arriscar a vida durante a atual pandemia é mais significativo do que arriscar a vida em outra epidemia qualquer ou outra circunstância qualquer da vida.
Eu considero tudo isso fascinante: o quanto atribuímos diferentes valores às coisas, dependendo do país em que acontece, da época em que vivemos e muitos outros fatores. Uma pessoa pode ser aclamada como herói por gerações e outra pode ser simplesmente esquecida, mesmo que ambos tenham feito exatamente a mesma coisa.
No cristianismo poucos são canonizados formalmente como santos. O número real de santos é muito maior. É dito pelos cristãos que a maior parte dos santos morre de forma anônima. Mas Deus vê o ato de santidade, mesmo que ninguém mais veja.
Deus está vendo. Por isso não importa a fama ou o que o mundo pensa de você e das suas escolhas. Isso é poderoso. Você tem que prestar contas para Deus e não para o mundo que vai te julgar sem saber o que você passou.
Por exemplo, na atual pandemia muitas pessoas queriam ajudar outros de forma mais direta mas não podiam, por medo de contaminar familiares com quem conviviam. Então tiveram que ajudar de formas indiretas, mas ainda assim ajudar.
Mas às vezes as formas indiretas de ajuda não são contadas ou cantadas. Muita gente na Segunda Guerra queria poder esconder judeus nas suas casas e teria de bom grado entregue sua própria vida para isso. Mas e quando ajudar desconhecidos envolve colocar em risco a vida de familiares e amigos próximos?
Esse é um dilema que muitos tiveram nas guerras e têm agora na pandemia. Uma pessoa responsável por matar os próprios familiares porque escondeu judeus na sua casa e foi pego pelos nazistas é um herói ou assassino? É altruísta ou egoísta? É herói ou vilão?
Na atual pandemia, uma pessoa pode ser considerada um herói para o mundo, mas um vilão por seus familiares. É assim agora e foi assim antes. Mas quem está certo? É difícil dizer. Seres humanos não são necessariamente heróis ou vilões, mas apenas humanos, eternamente divididos entre cumprir diferentes deveres igualmente importantes.
Existem muitos amores e deveres fundamentais na nossa vida, mas nem todos são cantados em canções. Cabe a nós decidir nosso caminho e escolher. Claro, às vezes não cabe totalmente a nós, mas dentre as opções podemos fazer algumas escolhas.
O herói geralmente é um herói dividido. Não existe uma única opção certa a ser feita.
Mas ele também pode ser um herói de acordo com as circunstâncias. Ele não nasceu para ser herói e nunca quis ser. Mas uma guerra, uma pandemia ou qualquer outro acontecimento pode ter mudado algo.
De repente alguém foi obrigado a ser um herói, empurrado para isso. Ele estava apenas fazendo seu trabalho e não queria perder o emprego. Alguém pode ter sido obrigado a servir seu país numa guerra. Ele voltou com uma medalha, mas não se sente herói, sente apenas raiva e frustração por ter sido colocado naquela situação.
Enquanto isso, outro quis fazer um ato heroico, mas não conseguiu, pois foi segurado, derrubado, impedido. Talvez ele tenha sido recusado pelo serviço militar, porque sua perna não funcionava bem. Esse foi exatamente o caso de John Keegan, que escreveu o famoso livro “Uma história da guerra”. Ele queria ser militar, mas não conseguiu, então se tornou um dos mais importantes historiadores de guerra.
Nós vemos a ação do lado de fora, um acontecimento único, mas o que o motiva? O medo? Amor? Isso importa? Nossas ações importam, nossas motivações, um pouco de cada?
O cristianismo ensina que todo ser humano pode ser santo, é chamado por Deus para ser santo. Não é um destino para privilegiados. Mas essa santidade pode assumir diferentes formas, não apenas as cenas clássicas, românticas e clichês de santidade.
Não chamaríamos São Pedro de alguém que já nasceu pronto para ser santo. Ele negou Jesus três vezes. E São Paulo matava cristãos antes de sua conversão. Santo Agostinho levava uma vida desregrada antes de se converter.
Até mesmo Jesus (o próprio Deus para os cristãos) estava aguardando seu grande momento, ou seja, o grande dia. Ele não estava sendo heroico em todos os segundos de sua vida. Não num sentido tradicional da palavra.
Então parece que todo herói, em algum momento, é um herói circunstancial. Às vezes um acontecimento é jogado nele para que seja “obrigado” a ser herói, como uma pandemia. Outras vezes ele busca esse acontecimento, com calma, hesitação ou paixão. Ele pode encontrar ou não.
Seja como for, nenhum caminho é simples e óbvio. E, finalmente, o que é considerado um ato heroico para uma pessoa pode ser visto como um ato egoísta para outra. Sim, os judeus que você escondeu na sua casa podem fazer com que seus filhos sejam mortos, caso eles sejam pegos. Mas os judeus escondidos durante a Segunda Guerra não têm tanto direito de viver quanto você? Então fazer aquilo seria um dever?
Mas aquilo só é um dever por ter acontecido na minha vizinhança ou na minha cidade? É um dever meu quando acontece a quantos metros ou quilômetros de mim? Se acontece no meu país? Se ocorre em outros países já não é problema meu?
Nunca há respostas simples para todas essas perguntas. Cabe a cada um buscar a resposta que mais condiz com o que acredita ser o certo. E não trair a própria consciência, independente do julgamento do mundo, que flutua conforme os acontecimentos e gerações.