O Fantasma Sangrento: uma história de terror real

Wanju Duli
12 min readJul 11, 2020

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https://elephant.art/why-are-depictions-of-periods-still-taboo/

Essa história de terror não é sempre terrível. E nem precisa ser para todos. Por exemplo, religiões como a wicca consideram o sangue menstrual sagrado e faz com que as mulheres se orgulhem do seu sangue. É uma visão bem avançada em relação a religiões que consideram a mulher menstruada impura.

Porém, há um risco em romantizarmos demais essa situação. Pode dar a falsa impressão de que essa questão é muito mais fácil de vivenciar e suportar do que realmente é.

A maior parte das mulheres sofre de cólica menstrual. Ou praticamente todas. Para ser sincera, até hoje eu nunca conheci ou ouvi falar de uma que não tivesse. São raras. No máximo, algumas mulheres passam por umas poucas menstruações tendo cólica fraca ou sem ter. Mas, em geral, são poucas vezes.

Eu fiz as contas. Se uma mulher menstrua pela primeira vez por volta dos dez anos e entra na menopausa aos 50, são 40 anos de menstruação. É metade de uma vida. Uma mulher tem cólica menstrual todo mês, por um ou dois dias. Geralmente dois. Então vamos aos cálculos.

Dois dias de cólica por mês são 24 dias de cólica por ano (quase um mês inteiro com cólica por ano). Se multiplicarmos por 40 anos, são 960 dias de cólica durante a vida. Ou seja, dividido por 365 dá 2,6 anos. Um total de dois anos e meio de cólica (espero que eu tenha acertado a matemática, com o perdão dos arredondamentos).

Mulheres costumam viver uns poucos anos a mais que os homens. Eu costumo brincar dizendo que isso é para compensar os anos que as mulheres perdem sofrendo de cólica menstrual. Existem fatores sociais e biológicos para explicar a diferença nos anos de vida entre os sexos. Porém, é dito que os hormônios sexuais femininos (o estrógeno e a progesterona) têm um papel decisivo nisso (e um papel decisivo na menstruação também).

https://healthwire.co/no-more-stains-menstrual-cycle/

Vou começar falando das pessoas que mais sofrem com a menstruação: as mais pobres.

Em países muito pobres, muitas mulheres nem sabem o que é menstruação e se assustam quando menstruam pela primeira vez. Algumas acham que estão morrendo.

Nem preciso falar que muitos nesses países nem sabem o que é sexo e como se faz para engravidar. Inclusive, li num livro que uma vez foi feita uma pesquisa nos Estados Unidos no século XX sobre centenas de casais que procuraram um médico porque não conseguiam engravidar. Os médicos descobriram que, apesar de serem casados, eles nunca tinham feito sexo, não sabiam como se fazia e que era preciso fazer sexo para gerar um bebê.

Se nos Estados Unidos do século XX isso aconteceu com centenas de casais, imagine em países mais pobres e em outras épocas. Isso acontece até hoje.

A falta de dinheiro para comprar absorventes é outro problema sério. Mesmo uma mulher de classe média ou classe média alta sabe o quanto absorventes são caros e o quanto comprá-los consome uma porção significativa da renda. Principalmente para aquelas que usam absorventes diários, já que os genitais femininos sempre têm algum tipo de secreção, mesmo fora do período menstrual.

Por isso, muitas meninas em diferentes países quando menstruam pela primeira vez param de ir para a escola. Simplesmente porque não têm dinheiro para comprar absorventes.

Felizmente hoje existem organizações humanitárias dedicadas a ajudar essas pessoas.

https://www.globalcommunities.org/menstrual-hygiene-day-2019
https://www.globalcommunities.org/menstrual-hygiene-day-2019

Existem muitos projetos e alternativas para quem não tem dinheiro para usar absorventes, como essa proposta de calcinhas reutilizáveis para usar durante o período menstrual.

Mas o que significa estar menstruada uma semana por mês? A duração da menstruação varia. Algumas mulheres sangram por poucos dias, enquanto há casos de mulheres que sangram por dez dias ou até duas semanas. A quantidade de sangue também varia.

É claro que o sangramento por si só já é um desconforto. Acho que toda mulher tem pelo menos uma história de embaraço sobre uma vez em que se levantou de uma cadeira e a deixou cheia de sangue, que escorreu sangue pelas pernas, que a roupa ficou manchada ou que se encontrou numa situação sem absorvente.

Eu mesma já passei por isso várias vezes, inclusive quando esqueci de levar absorvente num dos meus retiros num mosteiro e a monja me trouxe o absorvente um pouco tarde demais.

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Aliás, como eu já mencionei no primeiro parágrafo, cada religião tem uma posição em relação a menstruação, mas é comum que ela não seja vista com bons olhos.

Uma vez eu fiz uma requisição para fazer retiro num mosteiro bastante tradicional e tive que preencher um questionário. Eu tive que responder perguntas como: “Você tem cólicas menstruais? O quão ruim são as suas cólicas?”. Afinal, essa é uma preocupação séria num mosteiro e que deve ser levada em consideração. Uma mulher pode ficar de cama e incapacitada de trabalhar nesse dia e a equipe do mosteiro precisa estar informada para arranjar alguém para fazer as tarefas em seu lugar.

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Agora irei falar especificamente sobre a questão das cólicas menstruais, pois essa é uma questão importante. Eu diria que é a pior parte de ficar menstruada e acho que muitas mulheres concordariam comigo.

É claro que apenas a questão do sangue já é uma dor de cabeça. Para trabalhadores da área da saúde que usam roupas brancas em hospitais, por exemplo, o que fazer se você está trabalhando e o sangue vaza na sua roupa branca, ficando bastante visível? Mas é uma situação que acontece. E para quem acha ruim ter que gastar com fraldas caras quando se tem um bebê, o consolo é que as fraldas só serão necessárias por poucos anos. O gasto com absorventes será por 40 anos. Não é incomum que fetos femininos sejam assassinados em países como a Índia, por exemplo, para que as famílias não tenham que pagar o dote do casamento. Mas eu diria que o gasto com absorventes no final vai dar muito mais caro que o dote.

As cólicas menstruais também geram gastos. Com remédios, por exemplo, como Buscopan. Mas o pior de tudo é a dor. Muitas vezes ela é incapacitante e deixa a mulher de cama. Algumas mulheres até desmaiam.

O que uma mulher sente nos dois primeiros dias de menstruação varia, mas pode incluir e não se limita a: cólicas, dores no corpo (nos seios, nos genitais, etc), dor de cabeça, diarreia, enjoo, etc. Desmaio não é incomum. Vomitar também é algo que pode acontecer, devido ao enjoo.

Gostaria de usar esse momento para explicar o título do meu post. Considero que a cólica menstrual mensal é como um fantasma que assombra toda mulher ao longo de metade de sua vida. Cada mês que a mulher fica menstruada, é como uma pequena história de terror. Há o medo, porque você não sabe o que esperar.

Será que a cólica desse mês será muito forte? Será que eu vou ter que ficar de cama o dia todo? Vou ficar enjoada? Vou desmaiar? Vou ter que faltar o colégio ou o trabalho?

Essas são preocupações reais que aterrorizam quase toda mulher. E eu não estou exagerando. Essa é uma situação séria.

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Imagine ter uma cólica menstrual incapacitante no dia de um vestibular. No dia de uma entrevista de emprego. Na sua primeira semana de trabalho, quando você está tentando mostrar serviço.

Mas isso não é imaginação. São situações reais que acontecem com todas as mulheres.

Eu mesma já fiquei com cólica em dias de provas importantes. Duas vezes eu já tive que sair de provas no colégio porque passei mal num dia de cólica menstrual e quase desmaiei.

Incontáveis vezes já deitei num banco na rua ou no chão, agonizando de dor e já tive que chamar alguém para me buscar às pressas. Porque eu não conseguia nem caminhar.

Isso não é a mesma coisa que ficar doente de vez em quando ou ter um resfriado. É um encontro marcado todo mês com uma situação que você sabe que vai acontecer. Como a maior parte das mulheres não menstrua exatamente no mesmo dia todo mês, nunca sabemos exatamente em qual dia vai cair o dia maldito.

E isso é algo que toda mulher deve se preocupar todo mês antes de marcar coisas. Mas nem sempre ela pode escolher.

Mulheres grávidas ou com filhos pequenos já sofrem preconceito numa entrevista de emprego, por exemplo. Mas da perspectiva de alguém que vai te contratar, o que você prefere: um homem ou uma mulher sem filhos e solteira, mas que talvez falte o trabalho eventualmente quando ficar com cólica?

Em geral, não existem folgas previstas por motivo de cólica menstrual em empregos. Por isso, a maior parte das mulheres precisa ir para o colégio, para a faculdade ou para o trabalho, mesmo sofrendo de fortes cólicas menstruais. Ela simplesmente tem que aguentar. Ou trabalhar até desmaiar.

Uma mulher que tem fortes cólicas pode até sofrer preconceito por parte de outras mulheres que não têm cólicas tão fortes e acham que essa mulher está “sendo fresca”. Mas mulheres com cólicas fracas são a exceção.

A maior parte das mulheres costuma ter algum tipo de problema relacionado ao aparelho reprodutivo ao longo da vida. Por exemplo, uma em cada quatro mulheres têm um ou ou mais miomas durante a vida. Ovário policístico, endometriose, existem muitas coisas que podem acontecer (e acontecem) com muitas mulheres que podem piorar ainda mais as cólicas e aumentar o fluxo menstrual. A maior parte das mulheres que eu conheço o bastante para saber desses detalhes têm alguma dessas coisas.

Eu, por exemplo, tenho mioma e um endométrio muito espesso, o que faz com que meus fluxos menstruais sejam ainda maiores. E minhas cólicas são muito fortes. Por exemplo, da última vez que tive cólica (alguns dias atrás), além de ficar o dia todo de cama com dores, fiquei quase 24 horas sem conseguir comer nada por causa de enjoo e quase vomitei. Tive fortes dores de cabeça também. Por pouco não desmaiei.

Eu já desmaiei várias vezes ao longo da minha vida e alguns desses desmaios foram por causa de cólica.

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Existem alguns métodos contraceptivos que podem diminuir ou impedir o fluxo menstrual e as cólicas. Porém, todo método contraceptivo tem seus efeitos colaterais para a saúde. O uso de pílula, por exemplo, está associado com trombose e doença de Crohn.

A gravidez, obviamente, interrompe a cólica e a menstruação. Em compensação, aumenta muitos os enjoos e uma série de outros efeitos que conhecemos muito bem. Se a sua intenção é não ter que gastar com absorventes, essa não parece ser a melhor escolha para economizar. :)

Muitos homens argumentam que as mulheres de classe média em países ocidentais democráticos têm mais ou menos as mesmas oportunidades que os homens. Mas eles estão enganados.

Isso é quase a mesma coisa que dizer que uma pessoa com uma doença crônica tem as mesmas oportunidades que alguém saudável. Pois nascer mulher significa exatamente isso: estar condenada a passar metade da vida tendo que aguentar, uma vez por mês, uma doença que te deixa com fortes dores, enjoada, de cama e que pode te fazer desmaiar.

Essa doença te causa constrangimentos, te faz perder oportunidades na vida, te faz gastar dinheiro. E, acima de tudo, te faz sentir muita dor.

Nenhuma mulher escolhe ter essa doença. Todas a adquirem na pré-adolescência, com raríssimas exceções.

Por algum motivo, as mulheres não costumam discutir muito a questão da menstruação. Provavelmente porque a questão da gravidez e de ter filhos, por exemplo, por acarretar para as mulheres diversos preconceitos, perda de oportunidade de emprego, interrupção da carreira, etc, ocupe mais os holofotes do que a menstruação.

Eu acho que as mulheres deviam falar mais sobre a menstruação e principalmente sobre as cólicas menstruais. Essa é uma questão central na argumentação para os direitos das mulheres. Se alguém ainda acredita que mulheres têm as mesmas oportunidades que homens, basta uma única frase: “cólica menstrual” para calar a todos.

A dor que eu sinto na cólica menstrual é a mesma que as outras mulheres sentem? Se é, por que tantas ainda estão caladas?

Depois da menopausa, as mulheres não precisam mais se preocupar com isso. Haverá outras questões para se preocupar, como outras doenças mais prevalentes nessa faixa etária (e frequentemente mais graves).

Eu já passei por 21 anos de cólicas menstruais. Pelo visto, ainda terei mais uns 17 anos pela frente. É um longo tempo.

É claro que isso não é tão ruim quanto muitas outras doenças mais graves, que afetam homens e mulheres em diferentes idades. Ainda assim, a menstruação é uma experiência que afeta metade da população mundial. Então precisa ser discutida.

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Há outra questão que eu devo abordar sobre esse assunto e que não pode ser esquecida: a deficiência de ferro, vitamina B12 e ácido fólico.

Falarei mais especificamente sobre o ferro para usar como exemplo.

A hemoglobina é uma proteína encontrada nas hemácias do sangue. Sua função é transportar oxigênio para os tecidos. Ela é composta por quatro cadeias de globina e um grupo heme. O grupo heme contém um átomo de ferro. É o ferro que capta oxigênio.

Todo mês as mulheres perdem sangue na menstruação. Por isso, mulheres não podem doar sangue com a mesma frequência que os homens.

É comum que mulheres com grande fluxo menstrual, mulheres grávidas e puérperas (mulher que teve filho há pouco tempo, que perde sangue no parto) tenham deficiência de ferro e deficiência de algumas vitaminas do complexo B.

O ferro encontrado nas carnes e outros alimentos de origem animal é em sua maior parte do tipo heme, que é mais facilmente absorvido pelo organismo. O ferro encontrado nos vegetais é em sua totalidade do tipo não-heme, que não é tão bem absorvido.

O corpo de cada mulher é diferente, então o que pode funcionar para uma pode não funcionar para outra. Mas é verdade que existem muitas mulheres com grave deficiência de ferro ou anemia e que não conseguem recuperar o ferro consumindo apenas alimentos de origem vegetal.

Isso aconteceu comigo, depois que eu fui vegetariana por dez anos. Meu fluxo menstrual sempre foi grande (porque meu endométrio é muito espesso) e mesmo eu comendo muitos ovos não conseguia repor meu ferro (que estava perigosamente baixo) e tive que voltar a comer carne.

Desde então, eu sofro um pouco de preconceito por parte de alguns homens vegetarianos que não sabem que o corpo das mulheres funciona de forma diferente. Para um homem é muito mais fácil ser vegetariano do que para uma mulher.

A Índia, por exemplo, é um país fortemente dominado por homens que por milênios teve uma forte tradição de alimentação vegetariana. Infelizmente, apenas nas últimas décadas as pesquisas científicas têm mostrado que muitas mulheres indianas têm deficiência de ferro, assim como crianças muito pequenas. Você pode ler mais sobre isso, por exemplo, nesse artigo científico da revista “The Lancet”. Também há esse artigo no site da OMS. Vou colocar um trecho desse último:

“As mulheres na Índia obtém grande parte do ferro de fontes inorgânicas não-heme, incluindo grãos, plantas, cereais, lentilhas e vegetais; e, em pequena medida, de suplementos de ferro, como comprimidos de ferro e ácido fólico para mulheres grávidas, e alimentos fortificados com ferro, em comparação com fontes de ferro-heme, como carne e peixe, que apresentam maior taxa de absorção de ferro. Portanto, não surpreende que a Índia tenha o maior número de mulheres com anemia no mundo, o que aumenta a probabilidade de mortalidade materna e infantil e tem implicações econômicas significativas para o desenvolvimento da nação”

Homens e mulheres são biologicamente diferentes e isso gera preconceito que afeta principalmente as mulheres. Os homens podem ser vegetarianos mais facilmente e podem doar sangue com mais frequência, porque eles não menstruam. Então muitos homens ficam com a reputação de santos, enquanto as mulheres ficam doentes e sofrem tentando imitar a tradição dos homens e tentam atingir um padrão de santidade às vezes inatingível para muitas delas.

Escrevi esse texto para chamar atenção para todas essas coisas. A menstruação é uma realidade que interfere em todos os níveis da vida de uma mulher: biológico, social, psicológico e inclusive espiritual.

Então, por favor, vamos ter mais consciência e empatia sobre essa realidade. Tanto homens quanto mulheres devem ser respeitados e cada um tem suas particularidades. O caminho de cada um é diferente.

Mesmo se você se define como homem trans, se nasceu biologicamente como mulher e ainda menstrua, estamos todos no mesmo barco. Todos nós precisamos de compreensão e respeito.

A menstruação pode ser uma história de terror para muitas. Mas pode ser mais leve quando vivemos entre pessoas que nos entendem e apoiam.

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Wanju Duli
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