O complexo do salvador branco

Wanju Duli
10 min readMay 10, 2022

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Eu já tinha escutado a expressão “complexo do salvador branco” muitos anos atrás, mas nunca tinha parado realmente para analisar a fundo. Quero dizer, embora eu já soubesse o significado geral, que é meio óbvio, eu não tinha pensado nas implicações mais detalhadas.

Por exemplo, alguns anos atrás eu nunca tinha lido um livro exclusivamente sobre antirracismo. Há muitas razões para alguém não ter lido um livro sobre um assunto tão importante:

1- Está ocupado lendo outros livros (o tempo é sempre um problema para todos, é claro).

2- Eu sou branco e racismo é uma questão dos negros, não tem nada a ver comigo.

3- Está lendo sobre assuntos que julga “mais importantes” que o racismo, como a pobreza, a saúde e a educação (como se essas questões não tivessem relação alguma com racismo).

4- A pessoa pensa que já sabe o que é racismo em geral e ler um livro sobre isso não vai adicionar muita coisa.

Eu responderia a essas objeções da seguinte forma:

1- Uma pessoa branca tem o privilégio de “não ter tempo” de se informar sobre o racismo. Uma pessoa negra não pode “não ter tempo” para o racismo, pois o vivencia dia após dia. Então esse argumento é mais uma forma de privilégio branco.

2- O racismo é uma questão muito mais dos brancos que dos negros, pois o branco é o opressor. Como já foi dito: “Não existe um problema negro e sim um problema branco”. Pessoas negras já sabem o que é racismo, elas são PhD nesse tema. Quem mais precisa ler livros sobre antirracismo são os brancos! São eles que precisam ser educados a respeito.

3- Pessoas que acham que o problema da pobreza é mais importante que o problema do racismo provavelmente são brancas. Essas duas questões estão intimamente relacionadas. A tendência é achar que se focar no problema da pobreza é melhor porque atinge todos os pobres, enquanto se focar nos negros ainda deixaria de lado uma parcela pobre e branca da população. Mas esse pensamento é enganoso. Uma coisa não exclui a outra. Acho muito arrogante e até meio ignorante alguém dizer que não se preocupa com a questão do racismo porque está ocupado com “a questão mais importante da pobreza e desigualdade social”. Isso é só uma desculpa. São essas pessoas que depois cometem gafes e dizem bobagens como “Todas as vidas importam” em resposta ao “Vidas negras importam”.

4- Em geral, os brancos acham que já sabem o bastante sobre racismo e acham que aquilo não tem a menor relação com eles. Racistas são os “outros”. Porém, o silêncio branco também é uma forma de violência. Aliás, você não está na categoria dos “brancos bons” mesmo que leia livros sobre racismo. Não espere receber tapinhas na cabeça e elogios. É seu dever como pessoa branca se informar sobre racismo e não para receber ainda mais massagens no seu ego, que já foi massageado o bastante.

Claro, se você que está me lendo é negro, provavelmente não vou dizer nenhuma novidade para você nesse texto. No entanto, é comum que brancos ou “pardos que passam por brancos” não considerem essas questões tão a fundo.

E eu não estou falando dos “outros brancos” aqui, como se eu me considerasse numa categoria especial. Estou escrevendo esse texto exatamente porque estou chocada comigo mesma por não ter começado antes a ler livros sobre antirracismo. Logo eu que gosto tanto de ler e que vejo todo tipo de livro chegar às minhas mãos. Isso porque os livros mais populares geralmente são escritos por brancos, principalmente homens de países ocidentais.

Eu também demorei bastante para começar a ler livros sobre feminismo e LGBT. E ainda li poucos livros sobre esses temas. Pretendo ler mais. No entanto, nesse texto irei me focar mais na questão do racismo.

Esses dias eu percebi como o complexo do salvador branco é parecido com o conceito de “donzela em apuros”, ou “damsel in distress”.

Histórias em que o herói salva a donzela em apuros passando por grandes perigos, ou até morre para salvá-la, eram comuns desde a Idade Média, nos romances de cavalaria. Esse conceito foi adaptado para as ficções modernas.

Muitas mulheres começaram a reclamar, e com razão, que não queriam e nem precisavam ser “salvas”. Elas eram perfeitamente capazes de se virar sozinhas, obrigada. O conceito de que era preciso um homem para salvar uma mulher vista como fraca e incapaz foi considerado machista.

Mesmo assim, até hoje vemos vários exemplos da donzela em apuros em livros, filmes e jogos feitos no século XXI. Para alguns homens pode até passar despercebido, mas é comum que mulheres revirem os olhos toda vez que veem a donzela em apuros na ficção. É irritante, no mínimo. E está longe de representar a realidade.

De modo análogo, uma pessoa LGBTQIA+ não precisa ser “salva” ou “curada” por uma pessoa cis, hetero ou o que seja. Pessoas querem salvar outras, às vezes achando que têm boas intenções, mas acabam fazendo mais danos do que ajudando.

Missionários cristãos “salvando” os infiéis em outros países. Soa familiar? É comum que missionários católicos ou protestantes sonhem em fazer missões na “África”. Mesmo que não seja para falar de Deus, eles querem “ajudar os pobres em países pobres”. Não importa quantos pobres e “infiéis” tenham no seu país, a ideia de sair numa aventura num país exótico para “salvar o mundo” é muito romântica e tentadora.

É aí que o complexo do salvador branco entra em ação. Começa como uma fantasia. Você quer ser que nem os heróis da ficção. Quer ser visto como bom e ser elogiado.

Na visão de alguns homens, a mulher era vista como um ser decorativo que precisava ser protegida. A função dela no mundo é estar ali aguardando quietinha, bela e sorridente, para ser salva pelo homem. E então o homem recebe todas as honrarias e elogios por se tornar herói. Mas a mulher não podia ser heroína, mas apenas a vítima que agradecia por ser salva. E era bom que se sentisse mesmo muito grata, senão só podia haver algo errado com ela.

No entanto, o sonho de algumas mulheres brancas não era quebrar esse ciclo de herói salvador e o pobre fraco que era salvo. O sonho da mulher branca era se tornar a opressora (parafraseando Paulo Freire). Então, de vítima, ela passou a fazer parte, junto com o homem branco, da opressão de homens e mulheres negros.

Se a mulher achava ruim ser salva pelo homem e queria provar que era forte, por que então ela quis se tornar a heroína que objetificava e fetichizava negros pobres africanos? É algo que, se formos analisar com calma, é difícil de entender. Por que o negro gostaria de ser “salvo” pela mulher branca, se ela mesma não gostava de ser “salva”?

Eu mesma levei tempo para me dar conta disso. Como mulher, era fácil para mim entender o quanto o conceito da donzela em apuros era ridículo. No entanto, como pessoa não negra, eu levei tempo para entender como o pensamento de “salvar os negros ou pobres” era igualmente colonialista, imperialista e racista.

Os livros de cristianismo me ensinaram muito, sem dúvida. No entanto, é inevitável que eu tenha sido influenciada por aquela visão do mártir que morre por Deus, que se sacrifica pela humanidade, que salva os pobres, que salva o mundo! Sim, eu sabia que era uma visão romântica e idealizada, mas também perdidamente inspiradora.

Muito do que eu aprendi com o cristianismo ainda me guia e me auxilia para que eu consiga ter pensamentos e ações melhores. No entanto, meu breve contato com o Islã já foi o bastante para me colocar em contato com vários autores e autoras negras e me guiar para livros de antirracismo. Já que o Islã é bastante comum em países da África e do Oriente Médio, foi algo natural. Embora o cristianismo seja enorme na África, quando lemos livros de cristianismo acaba chegando a nós muito mais autores brancos ocidentais. Certamente há muitos livros bons sobre antirracismo escrito por autores negros cristãos e africanos, mas é difícil esses livros chegarem no ocidente. Aliás, acho que o único livro de cristianismo que li escrito por um autor negro africano foi o do cardeal Robert Sarah.

Sem dúvida eu demorei para ler livros sobre antirracismo também pelas quatro razões que enumerei no início desse texto. Eu estava sempre “ocupada” lendo a montanha de livros recomendada pelos autores que eu lia, que basicamente faziam parte do mesmo clubinho de pessoas com opiniões parecidas, o que dificultava que eu chegasse a livros diferentes.

E não importa se você é cristão, marxista ou outra coisa, mas há essa obsessão dos brancos ocidentais de “salvar” os pobres como se eles fossem uma coisa, uma categoria separada de você, o “outro”, o diferente digno de pena que precisa ser “salvo” de si mesmo, seja dando comida, dinheiro ou mudando o sistema.

Não importa o que você pretende fazer para ajudar (ou, de forma mais dramática, “salvar”, como se você fosse o Messias). Você, como branco ocidental que provavelmente leu em sua maioria livros escritos por homens brancos ocidentais, pensa que tem todas as respostas! Sim, você leu mil livros escritos por europeus e americanos brancos, no máximo leu cinco livros escritos por autores negros ou africanos, e com certeza tem a resposta que vai funcionar em absolutamente todos os países do mundo, incluindo a África e o Oriente Médio.

Você já perguntou para um africano, asiático ou alguém de um país e cultura diferente do seu se ele quer ser “salvo” pela sua solução genial que definitivamente vai melhorar tudo? Você sequer conversou com eles para saber o que eles acham que o país deles precisa? Talvez não seja bem o que você imagina.

Se você é uma mulher, sem dúvida se sente em apuros e precisa ser salva por músculos masculinos e um pouco da lógica dos homens. Sem dúvida, se você é de um país africano você se sente em apuros e precisa ser “salvo” por um homem ou mulher branco distribuindo pão e camisinhas.

Ou pior, como já aconteceu em muitos países africanos e do Oriente Médio, um ocidental foi lá se meter e tentar fazer uma “revolução” para derrubar o governo corrupto e resolver o problema da pobreza e da opressão das mulheres. Mas bagunçou o país ainda mais.

Não, a África e o Oriente Médio não precisam de você, mulher ou homem branco, que chega com uma atitude paternalista querendo ajudar ou salvar. Eles são adultos. Todo país tem problemas, mas é comum que vejamos os problemas dos países dos outros com mais preconceito. Você nem consegue achar a “porra do país” no mapa, talvez nem fale o idioma, e acha que pode chegar lá “salvando”, como se eles fossem crianças? Infantil é você que quer ser visto como herói e ser elogiado, como um Lawrence da Arábia.

Sim, todo mundo quer salvar o mundo, mas não é assim tão simples. É um esforço conjunto. Temos que tratar as pessoas como seres humanos, como amigos, aliados e escutar o que elas têm a dizer, em vez de querer impor suas visões de mundo e suas soluções geniais para resolver tudo.

É comum que o homem branco ocidental, depois de ler autores brancos ocidentais, ache que tenha identificado exatamente qual o problema do mundo. Existe o inimigo ou vilão que precisa ser eliminado, que funciona como bode expiatório. Então plim, basta resolver isso e o mundo ficou perfeito. E o salvador branco é aclamado como herói por resolver todos os problemas!

Por que isso não acontece na realidade? É porque existem pessoas más que conspiram para que o mundo seja ruim? Não, é porque existem outras formas de ver o mundo. Talvez sua solução genial para salvar o mundo não seja tão genial assim. E talvez ela não funcione em todos os países e com todas as pessoas.

Inclusive existe algo chamado sarcasticamente de “volunturismo”: combinação de voluntariado com turismo, feito geralmente por jovens de países ocidentais em países “pobres” africanos ou asiáticos. Essa página do Instagram, de forma irônica, ilustra bem isso.

Confesso que quando eu era adolescente eu sonhava em fazer “volunturismo” na África, e só não fiz antes porque geralmente é caro. Existe toda uma indústria em torno disso: jovens que viajam para países africanos para “ajudar”, mas acabam não ajudando quase nada e a viagem serviu mais para turismo e para tirar selfies com crianças negras, mostrando ao mundo como eles são brancos privilegiados e bondosos.

O mais parecido com isso que eu já fiz foi quando viajei para a Índia e fiz duas semanas de trabalho voluntário com as Missionárias da Caridade em Calcutá. Na época eu estava na metade do meu curso de enfermagem e inclusive pude acompanhar o trabalho de algumas enfermeiras em Calcutá atendendo as mulheres em cuidados paliativos.

Acho que o trabalho das Missionárias da Caridade tem pontos positivos e negativos, mas não irei falar deles aqui, pois já falei em outros textos meus. Aprendi muito em apenas duas semanas. Mesmo assim, na época que viajei eu ainda tinha uma visão mais colonialista de que eu estava indo lá para “ajudar” os doentes. Mas na verdade eu aprendi mais do que ajudei, principalmente com as trabalhadoras indianas de pele escura, que faziam a maior parte do trabalho pesado, enquanto os jovens voluntários brancos ocidentais (maioria europeus) ficavam com os trabalhos mais leves. Minha rotina era: voluntariado relativamente breve de manhã cuidando dos doentes e de tarde fazer turismo pela cidade com uma garota americana e outra garota portuguesa. E tínhamos a impressão de que estávamos realmente ajudando muito.

Quando eu estive na Palestina foi outro momento mágico para alimentar meu complexo de salvador branco. Fiquei fascinada quando vi um veículo da Cruz Vermelha, fantasiando quando seria meu momento de fazer trabalho humanitário na Palestina, quando eu concluísse meus estudos. Ao mesmo tempo que eu sonhava contribuir na Palestina, não gostava de ver aquele monte de outdoors com propagandas da Coca-cola pela cidade: mais uma “contribuição” dos ocidentais para “salvar” os palestinos.

Enfim, eu não tenho todas as respostas. Estou aprendendo a conter meu próprio complexo de salvador branco, embora não tenha desistido do trabalho humanitário. Ao mesmo tempo, fico frustrada com o excesso de racismo no interior de várias organizações humanitárias famosas.

E é claro que o complexo do salvador branco existe aqui no Brasil também. Nem é preciso procurar em outro país. Fazendo estágios em hospitais e postos de saúde, acompanhei o atendimento de vários pacientes negros e pobres para ver o complexo do salvador branco em ação. “Sim, senhora, para melhorar o seu problema de saúde coma mais verduras e frutas que você não vai ter dinheiro pra comprar. Pode se exercitar em uma praça, mesmo sabendo que não tem nenhuma praça segura no seu bairro, ou que sua dor crônica a impeça de se mexer, depois de trabalhar a vida toda fazendo trabalhos pesados como doméstica ou numa plantação de fumo”. É tão óbvio. Mas na verdade não é nada disso que ela precisa. O problema dela é outro, mas você não deixou nem a mulher falar. E às vezes a pessoa nem sabe ler e você escreve coisas… você não perguntou se ela sabe ler.

Existe um longo caminho para percorrer. Sim, no mundo, mas também dentro de mim.

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Wanju Duli
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