O alívio de uma crise espiritual
Hoje é um daqueles dias abençoados em que cheguei a conclusões importantes. Não apenas porque estamos num período espiritual relevante, mas foi o próprio Ramadã que me fez entender.
Acho que a maior parte das decisões da minha vida foram feitas devido a vivências; ou, no máximo, porque li num livro o relato de alguém que teve certa experiência e isso me convenceu. Mas raramente teorias são o bastante para mover meu coração. Às vezes elas me empolgam ou me desestimulam, mas o fator decisivo costuma ser um sofrimento (muitas vezes físico) pelo qual eu passo.
Quanto mais passa o tempo, mais eu aprendo a dar valor para o corpo, não apenas para a mente. A mente não é uma entidade separada que vive sem o corpo. Ninguém tem problemas psicológicos separado do corpo.
O que eu quero dizer com tudo isso? Vamos ver.
Uns oito anos atrás eu comecei a me interessar pelo cristianismo não porque eu tive uma grande experiência espiritual, mas por razões práticas e interesseiras: porque eu queria fazer um retiro num mosteiro. E eu fiz vários.
Uns cinco anos atrás eu comecei a me interessar pelo islamismo porque eu queria aprender árabe. Achei que o interesse pela religião poderia estimular meu estudo de árabe.
Claro, eu estou fazendo uma simplificação grosseira aqui. Esses não foram os únicos motivos do meu interesse em cristianismo e islamismo. Mas eu vivo no século XXI e recebi uma educação secular. Então é natural que eu costume olhar para as coisas de forma prática: isso vai me servir para quê? Vai me trazer vantagens? Como um olhar frio e calculista.
Mas eu sou carne e sangue, então é claro que mesmo nos momentos em que tento ser principalmente lógica meu coração pode bater forte.
Eu acredito em Deus e acho que sempre vou acreditar. Porque existe sofrimento e morte. Tem gente que acha que Deus não existe exatamente porque existe dor e morte. Mas se a alternativa é que a morte é um erro, um acaso, apenas uma solução biológica para propagar a espécie com mais facilidade, eu acho isso quase um insulto à inteligência. Bom, nesse momento talvez Buda dissesse que não importa porque a morte existe. O importante é o que vamos fazer para lidar com o sofrimento. Digamos que essa é uma abordagem suficientemente pragmática. Não é por acaso que tantos ocidentais simpatizam com o budismo. As religiões abraâmicas estão repletas de tantas fantasmagorias que às vezes são impalatáveis para a mente moderna.
Eu particularmente sou fã de fantasmagorias, então quanto mais melhor. Contanto que essas fantasmagorias não sejam causa de fanatismos ou sofrimentos desnecessários.
Já faz alguns anos que tenho mencionado que eu tenho vontade de me converter ao islamismo “daqui uns anos”. Faz tempo que eu tenho adiado essa decisão, por um motivo bem simples: os muçulmanos não gostam de pessoas que se convertem ao islamismo e depois voltam atrás. Enquanto os cristãos não ligam muito para isso.
Se eu tivesse deixado para me converter ao cristianismo somente quando eu estivesse totalmente séria e segura sobre essa decisão, quando seria isso? Tive que dar o famoso “salto da fé” e me converter num impulso. E foi realmente maravilhoso, pois ao longo desses anos li muitos livros de cristianismo, fiz muitas orações, retiros, etc, aprendi muito. Foi um mergulho total.
Infelizmente eu não tive essa imersão no islamismo como eu desejava. Eles são tão sérios sobre conversão que apenas muçulmanos podem entrar em Meca.
Então eu tive que me contentar com o que eu tinha: com as orações no meu tapete, leituras do Alcorão, leituras de livros de islamismo e participação no Ramadã.
Esse é o quarto Ramadã que participo. Meu primeiro foi quase perfeito, fiz tudo certinho e minha alegria ficou no alto. Talvez porque era o primeiro e eu estava empolgada, ou porque minha fé no islamismo estava maior. O segundo também foi bom, embora não tenha sido feito com tanta dedicação quanto o primeiro. Meu terceiro Ramadã, no ano passado, foi regular: fiz somente o mínimo, mas fiz certo.
Comecei esse Ramadã empolgada, quatro dias atrás. O primeiro dia foi super divertido, porque o primeiro dia é sempre novidade. O segundo dia foi normal. Acho que ontem também. Mas hoje…
Algo aconteceu hoje. Algo quebrou dentro de mim. E isso é algo que jejuns causam. Por isso eles são poderosos. As religiões sabem disso. Jejuns te forçam a lembrar que você tem um maldito corpo, que há outros passando fome e que você vai morrer. Isso é pesado.
Acho que antigamente (há uns quinze, dez ou cinco anos) eu achava mais legal fazer jejuns por motivos espirituais. Tem todo o êxtase de fazer um jejum por Deus, de sentir Deus mais fortemente nas orações, etc. Realmente funciona para deixar sua fé lá no alto.
Atualmente eu já não acho jejuns tão divertidos. Eu já tive minha época para fazer experimentos com isso, especialmente nos mosteiros, em que às vezes temos que passar por jejuns “forçados” (não é forçado de fato porque eu fiz o retiro porque eu quis).
Quando eu era adolescente eu era muito pragmática em relação a minhas práticas espirituais. Depois eu passei por uns dez anos de fé, sem focar tanto nos resultados. E agora parece-me que estou voltando novamente a ser uma pragmática sem graça, típica do século XXI, em vez de ser uma super cool espiritualista estilo medieval, no melhor estilo dos santos que botam toda a sua fé em Deus e caminham alegremente para qualquer coisa (vida, morte, tanto faz).
Eu acho perdidamente romântica a ideia de ter muita fé e abraçar uma religião, em vez de ficar aqui sentado assistindo o rolamento dos corpos para os túmulos apenas calculando a velocidade e a gravidade.
Então, raios, eu sempre quis ser uma dessas pessoas com muita fé. Acho que por muitos anos eu realmente fui.
Mas, raios e trovões, eu sou muito mundana! Eu até queria ser um exemplo de fé para as pessoas, mas eu não sou.
Eu acredito em Deus, mas se você me perguntar se os cristãos ou muçulmanos estão certos eu vou dizer: mais de 30% de cristãos, uns 25% de muçulmanos… estatisticamente, é difícil dizer quem ganha a eleição teológica democrática por votos. Acho que os muçulmanos iriam para o segundo turno.
Vou ser bem clara: na época do Ramadã eu às vezes tenho fome e meu horário fica meio caótico (meu sono fica desregulado quando eu tento burlar a coisa e dormir de dia). Some-se a isso cinco orações diárias. É preciso ter muita fé.
Como eu sou aventureira (e com duas operações de Abramelin no currículo, que diferente de uma conversão, você sabe que é um compromisso temporário), eu também gosto de fazer pela emoção da coisa, pelo desafio. Claro, vamos esculhambar o relógio biológico. Quando você é jovem, acha que essa coisa de se preocupar com saúde é coisa de velho. E os santos medievais ligavam para a própria saúde? Que nada, eles morriam aos 30 anos, aos 20, aos 5 anos! Se você completa seis anos, precisa se preocupar se ainda não virou mártir! Ah, naquela época eles sabiam como viver e morrer como heróis.
Aí eu vejo aqueles posts com aqueles títulos entediantes do Medium: “Puxa, mudei minha vida quando passei a acordar cedo, meditar, fazer exercícios, beber suquinho”.
Ah, você melhorou sua saúde quando começou a meditar? Quando eu era adolescente eu queria meditar no meio do mato e dos mosquitos, horas sem me mexer, morrendo de calor e sentindo muita dor para atingir os estados alterados de consciência. Como o Buda, durante a juventude, como mostra essa estátua:
Claro, quando Buda ficou mais velho (na minha idade) ele deixou de ser fanático, se tornou mais moderado e inventou um tal de Caminho do Meio. Ou ele se tornou mais entediante porque ele não queria mais morrer de fome, como alguns hindus, jainas e santos católicos medievais?
Bom, talvez eu esteja mesmo ficando velha e entediante, seja em idade, ou depois de ler todas essas centenas de livros e fazer centenas de retiros. Você deve chegar a alguma conclusão eventualmente, não é mesmo? Eu diria que cheguei a algumas conclusões interessantes, particularmente hoje.
Minha primeira conclusão de hoje: acho que mudei de ideia e não pretendo mais me tornar muçulmana. Esse Ramadã me fez ver isso.
Continuarei eternamente admirando os corajosos muçulmanos, que fazem essa proeza espetacular de participar do Ramadã todo ano e fazer suas orações diárias. Isso é bem difícil.
Talvez eu quisesse ser muçulmana porque eu queria ter uma das religiões mais difíceis e mostrar que consigo fazer o jejum do Ramadã todo ano e todas as orações diárias? Mas que bobagem! Isso não é um jogo.
Acho que eu finalmente estou me tornando adulta e cheguei à conclusão que o tempo do meu dia não é ilimitado e minha vida não é eterna. Então se eu tiver que encaixar no meu dia cinco orações diárias e mais um monte de rituais religiosos, vai me sobrar menos tempo para fazer outras coisas que eu concluí que eu tenho o dever de fazer como ser humano.
Minha segunda conclusão de hoje: irei interromper meu jejum do Ramadã mais cedo esse ano. Estou com 43kg, com um IMC abaixo do normal (a droga do IMC da Cinderella, sim, isso existe) e o jejum do Ramadã está diminuindo mais umas gramas do meu peso, então acho prudente cancelar o jejum por aqui. Mas esse não é o único ou principal motivo.
Talvez eu esteja de saco cheio ou eu queira um momento de rebeldia. Antes minha rebeldia era participar da Quaresma e do Ramadã (algo super descolado e exótico nos dias de hoje). Hoje minha rebeldia é cancelar minha participação no Ramadã após anunciar para Deus e o mundo que eu ia fazer (e eu realmente tinha intenção de perseverar até o fim, como fiz nos anos anteriores).
Talvez desistir e reconhecer minhas limitações tenha sido uma lição de humildade. Isso mostra que meu eu de um ano atrás já é diferente do meu eu de hoje.
Minha existência não serve para dizer: “Olha como eu sou legal e faço coisas legais” mas principalmente para dizer: “Eu tenho defeitos, tenho limitações, eu mudo de ideia, eu tenho fraquezas, eu sou uma pessoa normal!”. Mas nós nos envergonhamos das nossas fraquezas e queremos esconder.
É claro que eu também queria ter terminado esse Ramadã com glória. Mas algo dentro de mim, que eu não sei explicar totalmente o que é, me impediu. Quero acreditar que não foi apenas preguiça. E se foi… bem, ter preguiça também é humano.
Ainda irei ler todo dia algumas páginas daquele meu livro de islamismo porque ele é ótimo. Mas eu estava bem desanimada hoje. Só que não de um jeito ruim.
Não foi algo temporário. Foi um tipo de: “Eu realmente quero um compromisso desses para a minha vida? Um compromisso que não vai afetar apenas meu desempenho nas outras coisas que quero fazer, mas as pessoas ao meu redor”.
Quem nunca participou do Ramadã não sabe, mas ele realmente irrita as pessoas com quem você convive (se não são muçulmanos). Até a Quaresma irrita um pouco os outros. Tudo muda: a rotina, o calendário, os horários.
Sinceramente, eu achei ótimo ter acontecido isso hoje. É como se desse um “Plim” no meu cérebro. E eu aprendesse a focar no que eu concluí que mais importa.
Sim, religião é importante. Sim, cada pessoa deve ter estratégias para lidar com momentos de grande sofrimento e morte.
Não faço a menor ideia de qual será meu interesse religioso no futuro, conforme eu tenha cada vez mais contatos com mortes. Espiritualidade e/ou religiões são fundamentais para essa parte. Mas eu me preocuparei com o futuro no futuro.
Obrigada, Ramadã, por ter me proporcionado mais belos quatro dias de vivência profunda da religião. Obrigada por me fazer crescer cada vez mais como ser humano.
E agora seguirei o meu caminho. Talvez nossos caminhos se cruzem de novo um dia.