Mortificação: a simulação da dor

Wanju Duli
10 min readApr 21, 2020

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Menstrual Blood Painting

Eu já escrevi um texto sobre penitências aqui, explicando seu propósito religioso e as práticas mais comuns no cristianismo e em religiões indianas.

Por isso, nesse texto irei adotar uma abordagem ligeiramente diferente. Gostaria de apresentar as penitências, asceses e mortificações como um meio de se tornar “o outro”: o sofredor.

PARTE 1

Muita gente diz: “eu quero ajudar os outros”. Mas quem são esses outros, afinal?

A Bíblia define quem é o “outro”: o termo usado é “ajudar o próximo”. Mas por que o próximo?

A explicação é a seguinte: quando dizemos “ajudar os outros” é algo muito vago. Portanto, a Bíblia definiu que devemos ajudar aqueles que estão próximos de nós. Afinal, é algo realista, é algo possível. Devemos começar com algo simples, ajudando aqueles ao nosso redor: família, amigos, vizinhos.

Mas não podemos parar aí. Esse é um passo importante, é claro, mas é apenas o primeiro passo. A Bíblia foca muito na necessidade de ajudar os pobres. Como eu apontei no meu texto anterior, o cristianismo é uma religião ensinada por um pobre (Jesus) para os pobres. Portanto, essa é uma religião que possui, naturalmente, um grande enfoque na necessidade de ajudar os miseráveis e os que sofrem.

Evidentemente, todas as pessoas sofrem. Mesmo os ricos sofrem e eles também devem ser ajudados. Conforme ensina o cristianismo, devemos amar a todos, até nossos inimigos.

Porém, a Bíblia é muito clara em relação ao imenso sofrimento dos que passam fome, dos que estão doentes, dos que moram nas ruas.

“Porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me;
Estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e foste me ver”.

(Mateus 25:35,36)

“E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes”.

(Mateus 25:40)

Essa passagem significa que dar comida a alguém que passa fome ou ajudar um doente é a mesma coisa que ajudar o próprio Jesus, servir o próprio Deus. Essa é uma afirmação forte. Esse é o coração da religião. Na verdade, a religião é essencialmente sobre isso. É uma boa forma de resumi-la: eis a maneira de nos unirmos a Deus e aos outros, pelo serviço ao outro.

No cristianismo isso se chama “obras de misericórdia”. Há sete obras de misericórdia corporais e sete obras de misericórdia espirituais. Elas incluem coisas como perdão, oração, visitar os presos, sepultar os mortos, etc.

É sempre algo maravilhoso quando doamos dinheiro para os pobres ou quando os ajudamos diretamente. Inclusive, do ponto de vista do cristianismo, é ainda mais excelente quando ajudamos alguém frente e frente, com nossas próprias mãos, do que através de doações sem ver a pessoa. Isso porque religião é sobre nos conectarmos com os outros e com Deus. Um sorriso, um toque, uma conversa, uma oração feita com o coração sincero, tudo isso nos aproxima uns dos outros e de Deus.

Porém, cada um deve fazer aquilo que puder. Mesmo através de uma doação impessoal, também é uma forma de conexão com os outros e com Deus. É uma ajuda importante. Evidentemente, também depende do que aquela pessoa precisa naquele instante. Há momentos em que um pão é um bem muito valioso. Em outros momentos é uma conversa.

Mas o que realmente significa ajudar o outro? O que torna o outro diferente de mim mesmo?

Acredito que há duas palavras chave aqui: “ajudar” e “outro”.

Eu diria que esses são dois termos perigosos e precisamos tomar cuidado com eles.

Quando dizemos “ajudar” há o risco de nos sentirmos superiores e orgulhosos. Inconscientemente, pensamos: “Vejam como sou bondoso! Eu estou ajudando! Sou melhor que os outros, sou misericordioso, sou um ser que ajuda! Eu mereço o céu, mereço ser salvo!”

Por isso, é muito importante manter a humildade quando “ajudamos”. Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que todos somos pobres diante de Deus. Antes de ajudar, nós somos ajudados, tanto por Deus como pelas outras pessoas.

Então, muito antes de se ver como um ser que ajuda, veja a si mesmo como uma pessoa que é ajudada. Assim não fica a sensação de que estamos fazendo um favor, mas uma retribuição, um agradecimento.

Quando dizemos “outro”, quem é o outro? É uma pessoa diferente de mim, mas ela também tem uma alma e é amada por Deus. De certa forma, ela também sou eu.

E quem é o “pobre” que eu ajudo? Eu também sou pobre, pois todos somos pobres diante de Deus.

A Bíblia nos convida a ajudar os outros, com especial atenção para os miseráveis: aqueles que passam fome, que sentem frio, que estão doentes, que sentem dor.

Mas e se eu for uma pessoa de classe média, que nunca realmente passou fome ou que nunca enfrentou extremas dificuldades?

É aí que entram as penitências. Realizar asceses ou mortificações corporais, “maltratando” o corpo com objetivos espirituais, é uma forma de nos unirmos a Jesus na cruz.

E o que isso significa? É uma forma de não sermos mais o ser que “ajuda” o “outro”. A penitência nos torna um ser miserável que precisa ser ajudado. Um ser que sofre e precisa suplicar a Deus por ajuda.

Através da mortificação, nós nos tornamos o “outro”. Não há mais divisão entre o ser que ajuda e o ser que é ajudado. Nós nos tornamos o pobre.

É muita arrogância pensar: “Eu sou o ser rico, inteligente e bondoso que ajuda o ser pobre, burro e ignorante”. Existe uma forma muito efetiva de quebrar essa arrogância: mortificação, mortificação, mortificação!

Você não é o salvador. Você não deve se enxergar como o ser que salva, mas como aquele que precisa ser salvo! Assim como Jesus na Cruz pediu ao Deus Pai que o salvasse. É exatamente assim que devemos nos sentir, e não como um Deus misericordioso que salva o pobre e o sofredor.

Nós nos tornaremos os pobres sofredores! E agora sim, após essa introdução, vamos ao objetivo central do texto: falar sobre como a mortificação quebra nosso senso do “eu” e nos tornamos o “outro”, para parar com essa história de “eu quero ajudar os outros”, como se nós fôssemos melhores.

PARTE 2

Uma forma muito efetiva de mortificar o corpo é fazer isso enquanto ajudamos outra pessoa diretamente. A melhor forma de realizar uma ascese é sofrer no processo de cuidar de um doente, de visitar um preso, de distribuir comida, etc.

Mas também há outras formas de se tornar o pobre e o doente.

Todos já ficaram doentes alguma vez, uns mais que outros. Particularmente, pessoas que ficam doentes com frequência ou que têm doenças graves geralmente sentem ainda mais urgência de ajudar os outros.

Esse é um dos mais importantes objetivos da penitência: causar sofrimento em nós mesmos para assim sentirmos ainda mais urgência de ajudar os outros.

Metade da humanidade passa metade da sua vida sentindo dores horríveis uma vez por mês: isso se chama cólica menstrual. A maior parte das mulheres sente, pelo menos um dia por mês, fortes cólicas, dor de cabeça, enjoo, tontura, dentre outros sintomas, às vezes a ponto de quase desmaiar.

Eu diria que minhas cólicas menstruais fortes são uma razão importantíssima para eu ter me interessado por cristianismo. Todo mês eu penso naquela dor quase insuportável e há vezes em que a dor é tão horripilante que eu penso se não seria melhor estar morta. Pode parecer exagero, mas quem já sentiu cólicas menstruais terríveis sabe do que eu estou falando (meu endométrio é mais espesso e eu sangro mais que o normal, mas há mulheres com problemas piores em relação a isso).

Essa situação desagradável pela qual as mulheres passam algumas centenas de vezes ao longo da vida é quase uma penitência involuntária. Então ela é, ao mesmo tempo, uma bênção e uma maldição.

Todos nós passamos por situações de sofrimento involuntário ao longo da vida. Muitas vezes, algumas dessas situações podem ser aproveitadas como penitências.

É claro que realizar uma penitência voluntária é muito mais fácil, pois nós controlamos a intensidade e a duração. Na vida real não temos esse controle. Mas a simulação pode ser uma oportunidade para testar nossos limites para quando nos deparamos com a situação real.

Para o cristianismo e para outras religiões, a melhor penitência é o jejum. Quaresma, Ramadã, Yom Kipur, existem muitas práticas religiosas que envolvem o jejum e eu já escrevi vários textos sobre isso.

Acredito que a razão mais importante para fazer um jejum é entender o que é passar fome. Uma coisa é distribuirmos comida para os pobres quando nunca passamos fome. Outra coisa completamente diferente é distribuir essa comida quando já sentimos em nosso próprio corpo o que é não poder comer.

Ainda assim, mesmo um jejum de vários dias ainda é mais fácil de fazer do que passar fome de verdade. Nenhuma simulação se iguala à situação real de desespero, que é não ter escolha e não poder parar quando se quer.

Eu já fiz dezenas de jejuns religiosos de um dia ou de dois dias (principalmente durante a operação de Abramelin, pois era necessário e recomendado). Uma vez fiz um jejum de dois dias e meio e somente uma vez um jejum de exatamente três dias (72 horas).

Ficar três dias sem comer nada é apenas ter uma vaga ideia do que é passar fome. Quem passa fome de verdade fica muito mais tempo que isso ou passa longas semanas comendo apenas raramente, sem saber se a comida vem hoje ou não. Isso é realmente aterrorizante.

Eu também conheço um pouco a sensação de ficar sem comer junto com a sensação de ficar sem água. Você sente dor intensa no corpo. Uma dor desgraçada. Dificuldade de respirar. Você sente os órgãos falhando, o coração acelerando desesperado, tentando enviar sangue e oxigênio para as extremidades de seu corpo. Mas os dedos doem. A cabeça doí. É como um filme de terror e isso é só o começo.

Participar de jejuns religiosos como Quaresma e Ramadã são oportunidades para entender um pouco mais o que é sofrer e assim aumentar as doações e atos de caridade nesse período.

A sua doação não é mais impessoal. Não é algo distante do tipo: “Vou doar comida para aqueles pobres coitados, vejam só como sou bondoso”. Não é mais assim que você pensa. Depois de sentir a dor da fome, você pensa: “Eu PRECISO dar comida a eles porque eu senti essa dor desgraçada e eu não consigo mais viver com o pensamento de que tanta gente está sentindo essa dor AGORA. Eu sofro com eles, eu sinto a dor deles”.

É a mesma coisa para doença. Cada mês que eu sinto cólica, eu lembro que naquele momento há muita gente sentindo dores muito piores que aquela. É o momento de lembrarmos que eles não são mais “o outro”. Eles são eu. Eu os “ajudo” porque eu me ajudo fazendo isso. Nós somos o mesmo agora.

Existem outros tipos de penitência além do jejum. Por exemplo, a penitência oriental de ficar sentado em posição de lótus sem se mover por horas seguidas. Existe também a penitência de deitar para dormir no chão duro e no frio (já experimentei essa uma vez e eu simplesmente passei todas as horas da noite acordada, com dores no corpo e tremendo, o que dá uma boa ideia do que sentem pessoas que precisam dormir no chão na rua ou em prisões).

Existem muitos tipos de mortificações. Eu apresento outras em mais detalhes no meu texto sobre penitências. Cada pessoa pode se identificar com uma penitência diferente. Usar uma pulseira ou cordão desconfortável, um tipo de cilício no corpo, também pode ser uma presença constante, para não nos esquecermos que há outras pessoas sofrendo. Sentindo a dor no próprio corpo passaremos a ter mais urgência para ajudá-las.

Correção: nós não somos mais a pessoa que “ajuda”. A penitência nos torna o “outro”, o “pobre”, o “doente”, o “sofredor”. Isso nos torna humildes e nos faz orar: “Deus, me ajude!”, pois só numa situação de extremo sofrimento e desespero entenderemos quem é Deus e o quanto precisamos dele. Enquanto estamos confortáveis é difícil lembrar de Deus ou que há outras pessoas sofrendo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sei que algumas pessoas que lerão esse texto já passaram fome, já tiveram doenças graves, já viveram pobreza extrema ou outras imensas dificuldades não mencionadas aqui. Algumas dessas pessoas podem não sentir a necessidade de fazer penitências por já terem vivido situações reais de dificuldade ou vivê-las atualmente.

Algumas mulheres como eu que têm cólicas fortes todo mês também podem considerar que essa é uma penitência mais do que suficiente. Outras pessoas que mal dormem ou que passam pelas mais variadas situações de desconforto diariamente podem transformar essas próprias situações numa penitência, sem a necessidade de simular uma situação de dor.

Isso, é claro, é totalmente individual. Muitos santos católicos pareciam achar que as penitências nunca eram o bastante: além de cuidar de doentes, faziam jejuns rigorosos, usavam cilício e realizavam todo tipo de atos de caridade ou penitência para se unir aos outros e a Cristo crucificado.

Para mim, o próprio ato de escolher o cristianismo como religião já é um tipo de penitência e uma forma de me unir ao outro, de me tornar o outro. Como eu já mencionei no meu outro texto, a maior parte das pessoas miseráveis do mundo são cristãs ou muçulmanas. Se você tem a mesma religião que elas e acredita no mesmo Deus que elas, também é uma forma de compartilhar aquela dor, de vocês se tornarem iguais e diminuir a distância entre a pessoa que ajuda e aquela que é ajudada. Quanto mais você se torna parecida com ela, mais aumenta a sensação de confiança e união.

Muita gente deseja se tornar Deus, mas não muita gente tem o sonho de se tornar como um pobre ou um sofredor. Ironicamente, esse é exatamente o caminho que o cristianismo ensina para se aproximar de Deus: servir, tornar-se o último, tornar-se o menor de todos.

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