Misticismo versus Magia

Wanju Duli
11 min readOct 27, 2019

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Moses draws water from the Rock, Francois Perrier, 1642

Você já deve ter ouvido a velha história várias vezes. Talvez já tenha dito palavras parecidas ou não simpatize muito com os que têm esse tipo de discurso.

Aqui está o que muita gente diz: “Eu não gosto de magia, poderes psíquicos ou da ideia de usar a espiritualidade para obter capacidades sobrenaturais. Devemos buscar as artes espirituais para ter um contato com o divino, para o autoconhecimento, num sentido mais religioso. Para servir a humanidade e fazer a vontade de Deus e não para proveito próprio, para propósitos egoístas”.

Quando eu comecei a ler livros de ocultismo, e também a praticar, aos 13 anos, eu comecei a fazer isso porque eu queria descobrir uma forma de amaldiçoar uma pessoa que eu não gostava. Era um colega do colégio que estava sendo extremamente desagradável. Às vezes eu passava o intervalo inteiro no banheiro feminino para não cruzar com ele. Uma vez eu até sonhei que eu o estrangulava e o quebrava contra uma janela. Quando eu comecei a praticar magia, eu alegremente anunciei para ele e informei que iria amaldiçoá-lo. Ele ficou confuso e pareceu um pouco preocupado. Mas não precisei chegar a esse ponto.

No primeiro livro que eu li, que era de wicca, aprendi sobre a Lei Tríplice: “tudo o que fizeres voltará em triplo para ti”. Ao ler isso, desisti da ideia das maldições. Já não parecia algo tão legal. Ou seja, eu não desisti por compaixão, mas por medo. Não por altruísmo, mas por egoísmo.

Não passou pela minha cabeça na época que a tal Lei Tríplice pudesse funcionar também para qualquer coisa que eu fizesse com as pessoas ao meu redor. Parecia somente algo válido para um mundo espiritual que era muito distante do mundo material e tinha outras regras.

Ou seja, mexer com espíritos ou demônios parecia algo muito mais sério e grave do que xingar uma pessoa ou bater nela na vida real. Ou ao menos era essa a impressão que eu tinha na época.

Aos 13 anos eu ainda tinha uma visão literalmente muito mágica do mundo. Eu não era cética, pois recém tinha saído da infância e entrava na adolescência, então eu acreditava seriamente que espíritos podiam existir sim. Que Deus, demônios, anjos e todo o resto eram coisas sérias. Podia ser extremamente perigoso mexer com aquilo.

Aos 12 anos eu tinha feito o jogo do copo com colegas minhas após assistirmos o filme “O Exorcista” e aquilo tinha deixado uma impressão extremamente vívida em mim. Eu simplesmente percebi que todo aquele troço era mesmo real, mas eu tinha medo de investigar mais a fundo.

Por isso minha entrada no ocultismo ocorreu de forma muito natural. Eu não precisei lutar contra um ateísmo ou ceticismo típico da adolescência, porque isso simplesmente não existia em mim lá atrás.

Só que inicialmente eu também não tinha uma busca mística ou interesse religioso. Eu não buscava Deus, autoconhecimento ou uma forma de lidar com a dor e a morte. Eu tinha apenas curiosidade pela magia, um pouco de fascínio e medo de um universo completamente desconhecido e novo.

É claro que eu queria ter poderes, como os personagens das histórias de fantasia. Simplesmente porque parecia legal. Eu não queria ficar rica ou salvar o mundo, mas apenas me divertir um pouco.

Peace, by GUWEIZ

Mas então, após passar por uma fase no xamanismo, aos 14 anos eu comecei a ler os livros do Eliphas Levi. E ele veio com aquela história de alta magia e baixa magia.

Alta magia seria um tipo de magia superior, em que você busca Deus. Já a baixa magia seria um tipo de feitiçaria, em que você faz poções para o amor ou talvez até para curar alguém.

A cura sempre pareceu uma área cinzenta, pois de certa forma usar poderes mágicos para curar se encaixava em baixa magia, feitiçaria. Afinal, se o Kronos que Deus deu a uma pessoa acabou, ela simplesmente tem que aceitar e ir para o céu, certo? Mas essa magia não ajudava alguém? Por que a ciência era um método aceitável para ajudar os outros e a magia não? Era porque mexia com espíritos, com energias desconhecidas que Deus proibiu que investigássemos? Mas o mundo material também foi criação de Deus, então por que podemos investigá-lo pela ciência e não o resto?

A não ser que você seja maniqueísta e acredite que o mundo material é fruto de um Deus mau e o mundo espiritual vem do Deus bom.

Na Bíblia há aquela história dos anjos e gigantes que ensinaram ciência para a humanidade e as pessoas ficaram tão fascinadas e confiantes com as descobertas científicas que perderam a fé em Deus. Mas depois veio o dilúvio e esse pessoal desapareceu.

Bem, na época eu levei a sério o que o Eliphas Levi disse. Comecei a investigar mais sobre religiões por esse motivo, principalmente cristianismo e as religiões indianas. Li a Bíblia, o Alcorão, o Bhagavad Gita, o Dhammapada, o Tao Te Ching e outras coisas. E ouvi falar do livro de Abramelin.

Comprei, li o livro e fiz a operação. E essa operação diminuiu muito meu interesse em “baixa magia”, tanto que eu não tinha o menor interesse nos quadrados mágicos. Eu estava fascinada por budismo, jainismo e meditação.

Só que as religiões indianas também ensinam que é possível obter poderes através das meditações. Porém, elas também não valorizam muito esses poderes e os classificam como “distrações”, que podem desviar as pessoas do objetivo final, que é a iluminação.

É um discurso muito parecido com o cristão, que ensina que devemos amar Deus acima de tudo. Podemos pedir coisas em orações e Deus pode ter piedade de nós. Mas esse não parecia ser o foco. O objetivo final da religião era a salvação, ir para o céu.

No meu blog antigo eu escrevi um texto sobre poderes psíquicos e dei as referências de textos budistas Theravada como esses (15 anos depois o site continua igual, haha), que indicavam como obter esses poderes através de meditações (chamados siddhis no hinduísmo ou abhiññās no budismo), pois acabei descobrindo uma ou outra coisa sobre isso, de tantas horas seguidas que eu passava meditando dia após dia.

Em pouco tempo, esse texto passou a ser o mais acessado do blog e isso me aborreceu tanto (algo como “essa gente que só pensa em poderes em vez de direcionar a espiritualidade para atingir a iluminação ou honrar Deus!”) que acabei apagando o post. Aquilo diminuiu as visitas no meu blog, mas não dei a mínima, pois eu acreditava estar fazendo um “bem maior” tirando aquele texto do caminho.

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É claro que havia muita coisa estranha nisso tudo. No livro de Abramelin é dito que os poderes de Abraão ou Moisés, por exemplo, foram obtidos usando a operação de Abramelin, que Deus transmitiu diretamente a alguns de seus profetas. Por isso quando os mares se abrem há um anjo na frente: é o Sagrado Anjo Guardião e Moisés usou um quadrado mágico (história legal, hã?).

Talvez, eu pensei, misticismo e magia não sejam coisas contraditórias ou antagônicas como antes eu imaginava.

Antigamente eu pensava que interesse por magia ou ocultismo fosse coisa de criança ou de adolescentes, ou mesmo de jovens egoístas com más intenções, tentando usar aqueles poderes ou para benefício próprio ou para prejudicar alguém. Aquele discurso de “vou usar magia para ajudar os outros” não me convencia. Por que não ajudar sem usar magia, então?

Parecia uma mera brincadeira, ou uma desculpa para fugir da nossa responsabilidade como seres humanos. Apenas reze para Deus ou faça um feitiço, e depois não faça nada a respeito na vida real? Muito suspeito.

Eu me achava muito adulta e madura por ter 17 anos, já ter realizado a operação de Abramelin, já ter certa experiência em meditação, conhecer religiões indianas e já ter lido a Bíblia inteira. Eu me achava muito diferente das “crianças” que estavam apenas brincando de fazer feitiços para coisas triviais como ganhar dinheiro ou achar um objeto perdido, enquanto eu, muito evoluída, buscava “coisas mais importantes” como a iluminação ou a glória de Deus.

Mas eu não era mais evoluída coisa nenhuma! Eu estava apenas sendo arrogante, isso sim. Quando você não tem humildade, eu li uma vez, isso destrói o valor daquilo que você fez. Eu era definitivamente pior do que qualquer pessoa que estava se dedicando sinceramente a feitiços.

E onde a magia do caos se encaixa no meio disso tudo? Ela não parece exatamente a síntese da magia de feitiços, com seu estilo fast magic de usar sigilos e servidores?

Chaos Clock — The Steampunk Spell-Shaper, San Jaya Prime, 2012

Para mim sigilos foi algo que o Spare popularizou, servidores algo que o Phil Hine e alguns outros popularizaram, mas isso não resume magia do caos, que para mim sempre esteve mais ligado com magia criativa.

Desde criança eu gosto de arte, de desenhar e de escrever e isso veio bem antes do meu interesse em ocultismo ou religião. Nunca achei que a magia do caos não poderia ser mística.

“Nada é verdadeiro, tudo é permitido” ou “Use o que funcione” não são dogmas ou verdades da magia do caos, porque a magia do caos simplesmente não combina muito com dogmas. Você poderia escolher ser um mago ou um místico; os dois, ou nenhum. Isso parecia bom. Assim a velha discussão acabava e você podia fazer o que quisesse, o que achasse certo.

Mas vamos resumir a história antes que eu desvie o assunto. Os anjos são os heróis e os demônios são os vilões? Os místicos são os caras bonzinhos, altruístas e evoluídos, enquanto os magos são os caras maus, egoístas e superficiais?

Na verdade não. A magia de Abramelin, ao combinar elementos de teurgia e goécia, nos ensina algo que sempre, no fundo, desejamos que fosse verdadeiro: os demônios não são os caras maus, mas Deus os deixa por aí para que cumpram o propósito de nos testar, para que assim possamos aprender e amadurecer.

Há uma luta entre anjos e demônios, mas ela tem um propósito. Ela é terrível, mas também tem beleza, assim como a vida e o mundo. A dor e a morte são coisas terríveis, mas elas não nos aproximam uns dos outros, não nos ensinam a amar? É uma lição pesada demais para entendermos completamente, mas há um mistério nessas palavras.

Existe um livro maravilhoso escrito por um padre dominicano sobre a oração do Pai Nosso. Ele nos ensina que, de acordo com São Tomás de Aquino, a oração de petição é o tipo mais excelente de oração. Ela supera em importância qualquer outro tipo, até orações de agradecimento.

O que são orações de petição? São orações em que pedimos algo, seja para nós mesmos ou para os outros. Pois a oração de petição não se parece muito com um tipo de “baixa magia”, mesmo que sua fonte venha de Deus? É muito semelhante aos quadrados mágicos de Abramelin.

E o que torna esse tipo de oração tão excelente? É porque nós deixamos nosso orgulho de lado, admitimos que somos fracos e, com humildade, pedimos ajuda.

Não há nada de errado em estar com dificuldades e pedir ajuda. É claro que se você está passando dificuldades e fica pedindo dinheiro emprestado para seu amigo o tempo todo, caso seu amigo não seja milionário isso poderia colocar vocês dois numa situação difícil. Porém, com Deus é diferente, pois ele é onipotente.

Por esse motivo, você pode se sentir livre para pedir o que quiser para Deus, mesmo que a princípio pareça algo egoísta, se sua consciência te indica que aquilo poderá gerar um bem.

prayer painting | A painting of Jesus praying

Até Jesus rezava. Ele nos ensinou a rezar. Ele pedia humildemente ajuda para o Pai Celestial.

De acordo com o cristianismo, pedir coisas em oração, para nós ou para os outros, é bom porque isso nos conecta com a comunhão dos santos. Principalmente o catolicismo foca na importância de sermos mediadores uns dos outros.

Podemos rezar para o Pai, o Filho e o Espírito Santo, para santos específicos, para a Virgem Maria, para os anjos. É maravilhoso termos a oportunidade de ajudar uns aos outros.

E se um dia você por acaso virar um santo, ou mesmo se for para o céu, poderá ajudar as pessoas vivas lá do céu após morrer, veja só! Mas já dá para ajudar bastante enquanto estamos vivos também.

Os cristãos acreditam que Deus não se mostra diretamente aos seres humanos para fortalecer a nossa confiança uns nos outros. Para que sejamos testemunhas uns dos outros.

Deus aplicou um teste em nós e está observando como intercedemos uns pelos outros tanto de forma física quanto espiritual.

Deus deu a cada um uma missão que devemos cumprir em corpo e alma. Nós devemos rezar para Deus, glorificá-lo, buscar sua presença (misticismo), mas também ajudar uns aos outros de forma mais direta.

E o que a magia tem a ver com essa forma mais direta de ajudar? Ela pode ter relação com o misticismo, se interpretarmos a oração de petição como uma forma de magia.

Mas além de pedir ajuda para Deus, devemos agir nesse mundo material. Isso tem relação com nosso propósito no mundo, que para uns tem um caráter mais ativo e para outros mais contemplativo. Mas toda vida tem um pouco dos dois.

Dessa segunda vez que realizei a operação de Abramelin, eu finalmente entendi o propósito de haver demônios e quadrados mágicos no livro. Não era um erro ou uma etapa obscura da operação, mas sim um prosseguimento natural do trabalho.

Uma pessoa pode interromper a operação após o conhecimento e conversação com o SAG e não há nada de errado nisso. Mas ela não deve se achar superior ou “mais espiritualmente evoluída” por ser “mais mística” do que aqueles que prosseguem para as próximas etapas. Isso é apenas uma forma de arrogância, que mancha um pouco um dos principais objetivos da operação, que é a busca da humildade.

Por que pessoas que rezam pedindo favores ou que fazem coisas tendo em vista o próprio conforto e prazer seriam melhores do que alguém que faz algo extremamente parecido, mas sob uma aparência formal de magia? Os dois não estão mexendo com coisas completamente diferentes, já que o mundo espiritual e o material estão conectados.

Se você faz algo no mundo material, gera consequências espirituais. Se faz algo no mundo espiritual, gera consequências materiais. Então onde exatamente está a divisão entre o místico e o mago? Até, digamos, um ateísta pode ser um grande místico, mago ou uma pessoa extremamente boa através de suas ações no mundo, mesmo que ele não acredite em consequências espirituais de suas ações materiais.

Ainda assim, reconhecer a porção espiritual do mundo nos dá mais clareza a respeito de nosso propósito e da importância e peso de nossas ações. Se nós apenas nascemos, vivemos algumas décadas, morremos e acabou, o que fazemos tem menos peso. Mas se há outra vida, se fazemos parte de uma comunhão espiritual e todas as nossas ações, pensamentos e palavras afetam todo o resto, vamos seriamente repensar como temos vivido.

Você é um místico ou um mago? Você é um ser humano e não está sozinho, nem no mundo material e nem no espiritual. E tudo o que você faz não afeta apenas sua consciência e o seu karma, mas serve de testemunho para o mundo. Outras pessoas vão olhar para você e copiá-lo, mesmo de forma inconsciente, seja para o bem ou para o mal.

Um dia, dizem muitas religiões, você terá que prestar contas do que fez no tribunal divino diante de três julgadores (como nos conta o autor do “Legenda Áurea): Deus, nosso anjo guardião e nossa consciência. Melhor ter uma conversinha com eles e deixar as coisas claras antes do momento decisivo.

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Wanju Duli
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