Meu Terceiro Ramadã

Wanju Duli
6 min readMay 27, 2020

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Nesse último fim de semana terminou o Ramadã de 2020, o mês sagrado dos muçulmanos. Tive a honra de participar do jejum do islamismo por mais esse ano.

Nesse texto descrevi meu primeiro Ramadã. No ano passado não relatei minha vivência em detalhes, mas esse ano resolvi que escreverei brevemente a respeito de como foi minha terceira experiência.

Esse ano tudo foi bem diferente devido à pandemia da COVID-19. Portanto, os muçulmanos ao redor do mundo celebraram o Ramadã em isolamento. Houve muitas orações e atos de caridade direcionados às vítimas do coronavírus.

No meu primeiro texto eu falo em mais detalhes sobre o que é o Ramadã e o que se faz durante esse mês. Por isso, falarei disso aqui apenas de modo sucinto.

No meu primeiro Ramadã, em 2018, eu estava muito empolgada (afinal, era a primeira vez que eu participava!). Por isso, eu quis celebrá-lo de forma quase perfeita. Fiz todas as cinco orações por dia em seus devidos horários. O jejum também ocorreu de forma exata, com apenas duas refeições noturnas.

Meu segundo Ramadã também foi feito direitinho. Na época do Ramadã de 2019 eu tinha chegado do meu retiro em Israel há pouco mais de dois meses. Fiquei inspirada ao ver a devoção dos muçulmanos na Palestina. Quando estive em Belém, ouvi a salá da Asr (oração que se faz entre o meio-dia e o pôr do sol) ser entoada por um alto falante. Em Jerusalém vi um homem tirar os sapatos, estender o seu tapete num estacionamento, no meio dos carros, e ajoelhar-se para orar.

No ano passado não segui as regras tão fielmente como na primeira vez, mas me esforcei bastante.

Finalmente, nesse ano eu não fiz as orações diárias como das primeiras vezes. Fiz corretamente apenas nos primeiros dias, mas com o tempo minha disposição foi minguando.

Ainda assim, nesse ano, assim como das vezes anteriores, fiz questão de não comer durante o dia nem uma única vez. Minhas refeições eram feitas somente à noite. Essa é a principal regra do Ramadã.

Como estou em isolamento, eu tentei dormir de dia e ficar acordada à noite para facilitar a minha vida, mas nem sempre eu consegui isso.

Recentemente eu li um livro chamado “Além da Lama”, de Leonard Farah. Conta como foi a atuação dos bombeiros na catástrofe de Mariana. Uma das coisas que me chamou a atenção nesse livro foi um dos treinamentos que os bombeiros fazem. Para que os bombeiros sintam a dificuldade física e o desespero de pessoas que são soterradas, em uma parte do treinamento eles soterram a si mesmos. Isso é importante para que eles possam adquirir maior empatia pelas vítimas de tragédias.

Uma pessoa que já teve câncer terá muito mais propensão a fazer doações de caridade para vítimas de câncer ou para instituições que pesquisam a doença. Alguém que já passou fome na infância ou juventude tenderá a ter mais vontade de distribuir alimentos para quem está com fome. Isso é algo muito mais emocional do que lógico, mas é uma tendência humana que compreendemos.

Esse é um dos maiores motivos para a existência dos jejuns em tantas religiões. Uma pessoa que faz uma penitência em nome de Deus ou de outra causa é uma forma de envolver seu corpo, seu ser inteiro, uma entrega completa.

Uma coisa é estudar uma religião ou defender uma causa usando apenas a razão. Mas o ser humano não é apenas mente. Ele também é corpo e espírito. Uma oração ou um jejum é uma forma de entregar-se totalmente, sem proteger nenhuma parte de si. É um tipo de sacrifício, uma imolação tanto física quanto simbólica.

Como eu costumo dizer, jejuar também é uma forma de conhecer a si mesmo, testar os seus limites. Eu já escrevi sobre o jejum religioso em muitos outros textos, então não irei alongar-me aqui. Também é uma forma de adquirir coragem e confiança: se você passou pela privação de alimentos, sabe que conseguirá passar por situações mais difíceis, com a ajuda de Deus.

Acho importantes jejuns praticados em datas especiais, como a Quaresma, o Ramadã ou o Yom Kippur. Você sabe que muita gente também está realizando aquele jejum ao redor do mundo naquele momento. E você se sente conectado a eles.

Eu não sou muçulmana, mas admiro muito o islamismo e acho maravilhoso participar do jejum do Ramadã, mesmo que realizado de forma imperfeita ou incompleta. Faço o que consigo.

Realizar um jejum não é simples, também no sentido de que é preciso se organizar. Uma pessoa que tem que sair de casa para fazer um trabalho que exige muito desgaste físico, por exemplo, ficará facilmente exausta e com fome.

No início de março eu ainda não sabia se eu ia conseguir participar do Ramadã esse ano. Por causa da pandemia, fiquei em casa e foi mais fácil. Porém, eu não sei se poderei realizar esse jejum no ano que vem ou nos próximos anos da minha vida, pois não sei qual será minha situação.

Se eu fosse muçulmana, iria me esforçar para participar do Ramadã todos os anos, da forma que desse. Como sou cristã, eu participo apenas todo ano da Quaresma (que em termos de jejum é um pouco mais fácil de fazer, mesmo sendo 40 dias) e do Ramadã somente se não apresentar muitas dificuldades para minha rotina diária daquele ano.

Estou feliz porque esse ano deu tudo certo.

Eu não sinto o compromisso de realizar jejuns religiosos todos os anos, em todas as datas. Acho que a escolha por uma religião deve ser livre e a realização dos rituais religiosos deve ser, mais do que uma obrigação, uma vontade do coração.

Quando a realização das celebrações começa a ser um peso, devemos começar a nos perguntar o que aquilo tudo realmente significa para nós.

Eu gosto de participar de tantas datas (mesmo de religiões que não sigo, mas admiro) também porque estou numa época com mais tempo livre da minha vida, que permite isso. Talvez, no futuro próximo e muito provavelmente no futuro distante, meu tempo, vontade e disposição mudem.

Por isso eu gosto de, sempre que posso, aproveitar tanto o tempo quanto uma disposição para fazer parte de tudo isso.

Ninguém conhece totalmente o próprio futuro. Então eu gosto de saber que pelo menos já consegui participar do Ramadã três vezes, com vontade e alegria, de forma livre. Talvez eu olhe para trás um dia e veja tudo isso com carinho e saudade.

É difícil para mim explicar para as pessoas porque eu gosto de participar dessas celebrações religiosas que estão muito longe de ser uma festa. Em vez de adicionar comes e bebes, você os retira. Não parece muito divertido.

Se eu tentar explicar, eu diria que enquanto as festas de nosso mundo são feitas com comidas, as festas do mundo de Deus são feitas sem elas para lembrar que o mundo espiritual é especial, com regras diferentes.

Eu não acho que jejuar seja superior a comer. Acho que tudo tem sua hora de acontecer, como diz Eclesiastes. Como diz Jesus, não devemos jejuar quando o noivo está entre nós.

Comer é maravilhoso, mas jejuar também é. São tipos diferentes de sentir coisas maravilhosas. Principalmente quando oramos em jejum.

Porém, não jejuamos apenas para sentir sensações boas (ou remover as sensações agradáveis), mas é uma espécie de compromisso, uma aliança. É um lembrete de que o ser humano não vive apenas para sobreviver. Ele tem um propósito maior nesse mundo.

Às vezes, para realizar sua missão, você deve estar disposto a abandonar alguns confortos ou até mesmo a própria vida. O Ramadã é uma poderosa lembrança desse compromisso. É até mesmo um treino.

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Wanju Duli
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