Lavar-se com sangue
“Três tipos de batismo são apropriadamente descritos: Batismo de água, de sangue e do Espírito. O Batismo de água possui sua eficácia devido à Paixão de Cristo. Embora o efeito dependa da primeira causa, a causa supera em muito o efeito, nem depende dele. Consequentemente o homem pode, sem o batismo de água, receber o efeito do sacramento da Paixão de Cristo na medida em que ele está conformado com Cristo, sofrendo por Ele. Por isso está escrito (Ap 7:14): ‘Esses são aqueles que vieram da grande tribulação. Lavaram e branquearam suas vestes no sangue do Cordeiro’. Da mesma maneira um homem recebe o efeito do batismo pelo poder do Espírito Santo não apenas sem o Batismo de água, mas também sem o batismo do sangue, contanto que seu coração seja movido pelo Espírito Santo para acreditar e amar Deus e se arrepender de seus pecados; portanto, esse também é chamado do arrependimento” (São Tomás de Aquino III, 68, 2)
(Practical Theology, por Peter Kreeft)
Há um trecho semelhante a este no Catecismo da Igreja Católica:
“Desde sempre, a Igreja mantém a firme convicção de que as pessoas que morrem em razão da fé, sem terem recebido o Batismo, são batizadas por sua morte por e com Cristo. Este Batismo de sangue, como o desejo do Batismo, acarreta os frutos do Batismo, sem ser sacramento”
“Para os catecúmenos que morrem antes de seu Batismo, seu desejo explícito de recebê-lo, juntamente com o arrependimento de seus pecados e a caridade, garante-lhes a salvação que não puderam receber pelo sacramento”
“Sendo que Cristo morreu por todos e que a vocação última do homem é realmente uma só, a saber, divina, devemos sustentar que o Espírito Santo oferece a todos, sob forma que só Deus conhece, a possibilidade de se associarem ao mistério Pascal. Todo homem que, desconhecendo o Evangelho de Cristo e sua Igreja, procura a verdade e pratica a vontade de Deus segundo seu conhecimento dela pode ser salvo. Pode-se supor que tais pessoas tenham desejado explicitamente o Batismo se tivessem tido conhecimento da necessidade dele”
Pessoas que morrem por Deus ou por outra pessoa são chamadas de “mártires” pela Igreja Católica. A palavra “mártir” vem do grego e significa “testemunha”. Eu descobri isso no ano passado, num retiro que fiz num mosteiro. A monja estava me dando algumas aulas básicas de grego. Nós estávamos lendo juntas e traduzindo um trecho de uma Bíblia em grego e eu me deparei com essa palavra. Fiquei maravilhada.
A Bíblia nos ensina que, mais importante do que ensinar com palavras é passar uma mensagem com as nossas próprias vidas, usando nosso corpo. O exemplo supremo é morrer por aquilo que acreditamos, como fez o próprio Jesus Cristo, como fez Sócrates e muitos outros. Derramar o sangue teria um impacto muito maior para inspirar os outros do que palavras.
Isso não significa que palavras não sejam importantes, é claro. Elas são fundamentais. Livros sagrados foram escritos com palavras, mas frequentemente essas palavras foram escritas por corpos que derramaram seu sangue pelo que acreditavam. É dito, por exemplo, que dentre os apóstolos de Jesus todos foram mártires, com exceção do mais jovem: São João.
Mas por que São João não foi mártir se os católicos acreditam que ser mártir é o que há de mais sublime? São João não era aquele a quem Jesus mais amava?
Acredita-se que a missão de cada pessoa seja diferente, única. São João, por exemplo, deixaria como legado o evangelho mais místico dos quatro. Ele também nos deixaria o Apocalipse. Foi como um sinal, pois João observaria o Apocalipse, quando todos morrem e são julgados, mas por alguma razão ele é o único que continua vivo para observar aquilo tudo e relatar. A “razão” provavelmente é essa mesma: ele foi escolhido para ser “testemunha” do Apocalipse. A ele foi dada uma missão dolorosa: viver por mais tempo, não morrer, enquanto seus outros companheiros obtiveram a palma do martírio.
A folha da palmeira é o símbolo do martírio e muitos santos que foram mártires são retratados nas imagens segurando uma palma. Isso porque alguns acreditam que a Árvore da Vida do Jardim do Éden era uma palmeira. Quando Jesus entrou em Jerusalém foram balançados ramos de palmeira. O mártir, aquele que morre por Deus, tem a garantia de que irá para o paraíso após a morte. Por isso ele carrega uma folha da Árvore da Vida, como se clamasse, em triunfo: “Eu venci o jogo de Deus! Eu recuperei o paraíso que Adão e Eva perderam! Agora eu comi da Árvore da Vida, tornei-me imortal e contemplo o rosto do Altíssimo!”
Ninguém, mesmo que realize muitas boas ações nessa vida, nunca pode dar o paraíso como garantido. Mas há uma exceção: o mártir é o único que figura, desde os textos mais antigos do cristianismo, como aquele que conquistou o céu, mesmo em vida. Basta que ele tenha o desejo de ser mártir e busque ativamente o martírio. Vários santos fizeram isso e não conseguiram (São Francisco desejava muito essa honra, lutou por ela e, como vários santos, acabou morrendo cedo de tanto que procurou estar perto de Deus o quanto antes).
Há várias explicações para a importância do martírio no cristianismo e a mais óbvia é a morte de Cristo na cruz. Mas outra explicação de destaque foi a época de perseguição dos primeiros cristãos. Eles morriam aos montes pela fé e muitos se perguntavam se valia a pena morrer por Deus. Estando vivo não podemos ajudar mais gente?
A teologia do martírio ofereceu uma resposta. Existe um texto muito antigo e que eu gosto muito, chamado “O Pastor de Hermas”. É uma obra cristã do século II. Nele aparece o anjo Miguel guardando a entrada do paraíso, que é retratado como um grande castelo com muitas torres e andares (semelhante ao livro “O Castelo Interior” de Santa Teresa de Ávila). Ele explica que no topo do castelo e aqueles que receberam o maior prêmio no paraíso são os mártires.
Também é dito sobre quem está sentado à esquerda e à direita de Deus. Nós somos informados que à direita de Deus estão os mártires.
A resposta é clara: não há como ser maior que um mártir e por isso muitos dos santos homenageados no catolicismo desejaram o martírio. Alguns conseguiram, outros não, pelas mais diferentes razões.
Na Bíblia, quando os apóstolos perguntam quem é o maior, Jesus responde: “Se alguém quiser ser o primeiro, será o último, e servo de todos”.
Muitos católicos se perguntam qual dos santos foi o maior e no livro “Imitação de Cristo” é dito que essa discussão é inútil. Nas páginas do livro é dito mais ou menos o seguinte: devíamos estar nos preocupando em nós mesmos garantirmos nosso lugar no céu, pois ser até o menor dentre os santos é difícil, então que nos importa quem é o maior? Que nos importa quem está sentado à direita ou à esquerda de Deus se é até difícil garantir algum direito de sentar-se com Ele?
A tradição católica nos conta que Miguel era um anjo menor e Lúcifer era um dos anjos mais elevados. No entanto, Lúcifer desejou elevar ainda mais a si mesmo, enquanto Miguel teve uma humildade tão grande que Deus o elevou tanto a ponto de São Miguel hoje ser considerado entre os maiores anjos.
Nos evangelhos (em Mateus e Marcos) os apóstolos perguntam se será possível que eles se sentem à direita de Deus. A resposta de Jesus é fascinante.
“E eles lhe disseram: Concede-nos que na tua glória nos assentemos, um à tua direita, e outro à tua esquerda.
Mas Jesus lhes disse: Não sabeis o que pedis; podeis vós beber o cálice que eu bebo, e ser batizados com o batismo com que eu sou batizado?
E eles lhe disseram: Podemos. Jesus, porém, disse-lhes: Em verdade, vós bebereis o cálice que eu beber, e sereis batizados com o batismo com que eu sou batizado;
Mas, o assentar-se à minha direita, ou à minha esquerda, não me pertence a mim concedê-lo, mas isso é para aqueles a quem está reservado”.
Sentar-se à direita de Deus significa ser mártir. Sentar-se à esquerda significa ser santo e ter sofrido perseguições em nome de Deus, que é a segunda coisa maior após ser mártir (segundo o Pastor de Hermas).
Então Jesus pergunta se os apóstolos estão preparados para o batismo de sangue: morrer pela fé. E eles respondem que sim. Porém, quando Jesus é capturado todos os apóstolos fogem. Eles só reunirão coragem após a ressurreição de Cristo. Por isso Jesus lhes diz: realmente, vocês irão morrer por mim.
No Apocalipse também há uma passagem gloriosa sobre o martírio. O Livro está selado e João chora, pois mesmo os maiores santos não são dignos de abrir o livro. Então quem nesse mundo é digno?
“E vi na destra do que estava assentado sobre o trono um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos.
E vi um anjo forte, bradando com grande voz: Quem é digno de abrir o livro e de desatar os seus selos?
E ninguém no céu, nem na terra, nem debaixo da terra, podia abrir o livro, nem olhar para ele.
E eu chorava muito, porque ninguém fora achado digno de abrir o livro, nem de o ler, nem de olhar para ele.
E disse-me um dos anciãos: Não chores; eis aqui o Leão da tribo de Judá, a raiz de Davi, que venceu, para abrir o livro e desatar os seus sete selos.
E olhei, e eis que estava no meio do trono e dos quatro animais viventes e entre os anciãos um Cordeiro, como havendo sido morto, e tinha sete pontas e sete olhos, que são os sete espíritos de Deus enviados a toda a terra.
E veio, e tomou o livro da destra do que estava assentado no trono.
E, havendo tomado o livro, os quatro animais e os vinte e quatro anciãos prostraram-se diante do Cordeiro, tendo todos eles harpas e salvas de ouro cheias de incenso, que são as orações dos santos.
E cantavam um novo cântico, dizendo: Digno és de tomar o livro, e de abrir os seus selos; porque foste morto, e com o teu sangue nos compraste para Deus de toda a tribo, e língua, e povo, e nação;
E para o nosso Deus nos fizeste reis e sacerdotes; e reinaremos sobre a terra.
E olhei, e ouvi a voz de muitos anjos ao redor do trono, e dos animais, e dos anciãos; e era o número deles milhões de milhões, e milhares de milhares,
Que com grande voz diziam: Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber o poder, e riquezas, e sabedoria, e força, e honra, e glória, e ações de graças.
E ouvi a toda a criatura que está no céu, e na terra, e debaixo da terra, e que estão no mar, e a todas as coisas que neles há, dizer: Ao que está assentado sobre o trono, e ao Cordeiro, sejam dadas ações de graças, e honra, e glória, e poder para todo o sempre.
E os quatro animais diziam: Amém. E os vinte e quatro anciãos prostraram-se, e adoraram ao que vive para todo o sempre”.
Quem é digno de abrir o livro? O Cordeiro pingando sangue, ou seja, o próprio Cristo.
“Depois destas coisas olhei, e eis aqui uma multidão, a qual ninguém podia contar, de todas as nações, e tribos, e povos, e línguas, que estavam diante do trono, e perante o Cordeiro, trajando vestes brancas e com palmas nas suas mãos;
E clamavam com grande voz, dizendo: Salvação ao nosso Deus, que está assentado no trono, e ao Cordeiro.
E todos os anjos estavam ao redor do trono, e dos anciãos, e dos quatro animais; e prostraram-se diante do trono sobre seus rostos, e adoraram a Deus,
Dizendo: Amém. Louvor, e glória, e sabedoria, e ação de graças, e honra, e poder, e força ao nosso Deus, para todo o sempre. Amém.
E um dos anciãos me falou, dizendo: Estes que estão vestidos de vestes brancas, quem são, e de onde vieram?
E eu disse-lhe: Senhor, tu sabes. E ele disse-me: Estes são os que vieram da grande tribulação, e lavaram as suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro.
Por isso estão diante do trono de Deus, e o servem de dia e de noite no seu templo; e aquele que está assentado sobre o trono os cobrirá com a sua sombra.
Nunca mais terão fome, nunca mais terão sede; nem sol nem calma alguma cairá sobre eles.
Porque o Cordeiro que está no meio do trono os apascentará, e lhes servirá de guia para as fontes vivas das águas; e Deus limpará de seus olhos toda a lágrima”.
A Bíblia não deixa dúvidas sobre o lugar de destaque do martírio. Adão e Eva desejaram preservar suas vidas e perderam o paraíso. Mas é possível recuperar o paraíso pela ação oposta: sacrificando sua vida por Deus.
“Desde então começou Jesus a mostrar aos seus discípulos que convinha ir a Jerusalém, e padecer muitas coisas dos anciãos, e dos principais dos sacerdotes, e dos escribas, e ser morto, e ressuscitar ao terceiro dia.
E Pedro, tomando-o de parte, começou a repreendê-lo, dizendo: Senhor, tem compaixão de ti; de modo nenhum te acontecerá isso.
Ele, porém, voltando-se, disse a Pedro: Para trás de mim, Satanás, que me serves de escândalo; porque não compreendes as coisas que são de Deus, mas só as que são dos homens.
Então disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quiser vir após mim, renuncie-se a si mesmo, tome sobre si a sua cruz, e siga-me;
Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á.
Pois que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma? Ou que dará o homem em recompensa da sua alma?
Porque o Filho do homem virá na glória de seu Pai, com os seus anjos; e então dará a cada um segundo as suas obras.
Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui estão, que não provarão a morte até que vejam vir o Filho do homem no seu reino”.
Como muitos passagens da Bíblia, há um significado simbólico e outro literal quando Jesus convida cada um de nós a carregar sua cruz.
O significado alegórico é que cada pessoa deverá passar por sofrimentos em sua vida e que esses sofrimentos são como imitar a dor que o próprio Cristo sofreu: a dor pode nos amadurecer para entendermos o amor e assim seremos dignos do paraíso. É como um convite à santidade.
Mas o significado literal dessa passagem é ainda mais poderoso. Jesus diz: morra por mim. Seja mártir. Literalmente, seja crucificado, como eu fui.
Ao longo do cristianismo primitivo e da Idade Média, o chamado “martírio vermelho” era ativamente buscado, assim como o “martírio branco” (tornar-se um monge ou monja).
Afinal, a vida era curta e dura. Naquele tempo podia-se morrer a qualquer momento por uma doença, pela guerra, por acidentes. Se vamos morrer de qualquer forma um dia, por que não oferecer nossa vida para Deus?
Hoje as coisas mudaram um pouco. Nós ainda morremos, mas vivemos por mais tempo. Por isso, quando se fala em cristianismo hoje (uma religião já não tão popular como antes), o martírio é raramente mencionado. Nós ainda homenageamos os santos e os mártires, mas eu nunca escutei nenhum padre dizer: “Jesus nos convida a morrer por ele! Vamos lá derramar nosso sangue por ele, agora!”.
Os discursos costumam ser mais brandos, menos inflamados. Não se diz hoje em dia nas igrejas: “Dê todo seu dinheiro aos pobres!”. Não, não! Quem hoje em dia deseja dar a sua vida e seu dinheiro por Deus ou por outra pessoa? Afinal, nós vivemos por mais tempo e temos mais conforto material do que nunca. Quanto mais nos apegamos aos nossos corpos e aos nossos confortos materiais, mais difícil é abrir mão deles.
Se você procurar na internet por textos religiosos, provavelmente não encontrará textos de “como ajudar os outros” ou “como servir a Deus” e sim textos de “autoajuda”, que possuem esse nome por um bom motivo.
O cristianismo hoje é visto como uma religião antiquada para os tempos em que vivemos e frequentemente são apontados mais seus defeitos do que suas qualidades, como justificativa para descartarmos completamente os ensinamentos cristãos, como se não houvesse nada de bom neles.
Em textos de autoajuda você provavelmente encontrará mensagens desse tipo: cuide mais de si mesmo, você merece. Pare de ficar se sacrificando por pessoas que não merecem sua ajuda. Durma mais, se exercite mais, se recompense com um pouco de lazer, você merece. Cuide de sua saúde. Tenha uma vida mais longa e mais feliz.
Você não escutará ninguém dizendo: “morra por Deus!”. “Quem é esse Deus?” perguntarão.
É claro que você merece uma vida longa, feliz e com saúde e deve se cuidar. Os textos de autoajuda não estão errados nisso.
Mas o quão longe esses desejos podem nos levar? Todos vamos morrer um dia, isso é certo. A vida pode ser longa, mas vai terminar. A saúde pode ser muita, mas um dia acabará. A felicidade também pode ser enorme, mas ninguém consegue estar alegre em todos os momentos.
Como dizem os budistas, a fonte da nossa felicidade não pode ser coisas impermanentes. Textos que dizem essas coisas podem nos ajudar somente até certo ponto. E depois? Ficamos com uma sensação de vazio, de que somente isso não é o bastante.
Mas um texto que nos fala de Deus, que é permanente, e de uma vida após essa, que é eterna, tem um brilho especial.
Para quem não acredita em Deus e paraíso pode ser difícil entender isso, então eu irei traduzir em termos não religiosos: existe o amor.
“Não existe maior amor do que este: de alguém dar a própria vida pelos seus amigos”.
(João, 15:13)
Jesus nos ensina a amar nossos inimigos. Em suma, o que Jesus nos ensina é o amor universal. Amemos todos. Vamos dar a nossa vida por todas as pessoas. Mesmo que seja por uma única pessoa, pois quando se morre por uma se morre por todas.
Para quem não é religioso pode ser muito pomposo ou esquisito falar em “morrer por Deus”. Então para os ateus expliquemos assim o que fizeram os santos e mártires: a maior coisa que podemos fazer em nossa vida é morrer por outra pessoa.
Nós nascemos para morrer por outra pessoa. Por mais de uma, se conseguirmos, mas pelo menos por uma. E, se não conseguirmos morrer nem mesmo por uma, devemos pelo menos tentar com todas as nossas forças.
Também é sublime viver por uma pessoa (ou por muitas pessoas) mas é ainda mais morrer por ela.
Esse é um ensinamento religioso e que faz todo o sentido dentro do pensamento teológico. Por isso é extremamente difícil tentar traduzir isso em termos não religiosos.
O cristianismo nos ensina que há um Deus Pai (o amor), um Deus Filho (o amor se faz carne e morre para salvar a humanidade) e o Deus Espírito Santo (o amor que queima em nosso coração).
Nós não temos um corpo para prolongar nossa vida ao máximo e para ter o máximo de saúde em nome de objetivos puramente egoístas. É bom prolongar a vida e a saúde principalmente porque assim teremos mais tempo para ajudar mais gente e para avançar espiritualmente (nós avançamos espiritualmente exatamente quando ajudamos os outros).
O cristianismo nos ensina que nós ganhamos um corpo apenas para vivermos e morrermos pelos outros. Uns pelos outros. Isso é tudo.
Com a morte do corpo, a alma sobrevive e essa alma se encontra com a fonte do amor (Deus). Mas você vai para o céu (encontro com Deus) não somente após a morte, mas ainda em vida, se você chegar a um grau de desapego a ponto de não se importar mais pela manutenção de sua própria vida, deixar o medo para trás e viver apenas pelos outros e para morrer.
Diga essa frase: “Quero viver apenas pelos outros” e você será imediatamente criticado com argumentos como: “Não tem problema ser um pouquinho egoísta. Não seja idiota, se você se sacrificar pelos outros sabe que os outros não vão se sacrificar por você em troca e estará fazendo papel de palhaço”.
Mas se você acredita em Deus, esse raciocínio não tem valor. Não faz a menor diferença se os outros vão se sacrificar por você em troca, pois Deus te ama, Deus é o amor e você está vivendo pelos outros pelo amor ao Amor: sua crença de que o amor e ajudar os outros é a melhor coisa que podemos fazer em vida.
Você não está ajudando para que Deus te ame ou para que ele te dê o céu como recompensa. Deus ama a todos igualmente. Ele apenas aguarda que possamos retribuir o amor a ele, em liberdade. E nossa maior prova de amor a Deus é ajudando os outros. Assim nós mostramos que amamos Deus (ou seja, que amamos o Amor, que temos fé que o amor triunfa, que devemos amar livremente sem esperar recompensas ou vantagens em troca).
Nós não ajudamos os outros esperando que os outros nos ajudem, como mercenários, mas porque temos FÉ que é bom ajudar. Não somente é bom, é a coisa mais sublime que existe. É tão sublime que não queremos apenas ajudar, mas servir, com todo nosso corpo, nossa alma, nossa vida. Mas só isso não basta. Se nosso amor for grande demais não caberá em nós mesmos e iremos desejar morrer por todos. Eis a beleza do martírio. Eis porque em nosso coração nós sentimos que ele é o máximo que o ser humano pode fazer.
O cristianismo nos ensina que o céu não é um lugar físico, mas um estado da mente e da alma. Podemos estar sentindo muita dor por estarmos ajudando alguém ou se vamos morrer por alguém, mas há um espaço em nós, em nosso espírito, que está brilhando, nosso coração está em chamas!
Isso é o céu. Mas não devemos morrer pelos outros pela sensação de êxtase de ajudar ou morrer por alguém, porque não importa se essa sensação é presente ou ausente. Inclusive os santos nos ensinam que é mais sublime ajudar os outros em secura espiritual ou numa noite escura, porque isso é uma prova ainda maior de amor.
“Eu nasci apenas para morrer”, experimente dizer isso e te chamarão de niilista. Isso é uma heresia num mundo em que o objetivo máximo é, aparentemente, apenas saúde e vida longa. Essas duas são coisas ótimas, e por isso mesmo é excelente tentar dar saúde e vida longa aos outros, mesmo a custa de nossas próprias vidas.
E de que forma podemos fazer isso na prática?
Cada um deverá buscar em seu coração, em sua consciência, no Espírito Santo que habita em sua morada interior, em suas orações, e saberá.
Jamais devemos julgar o caminho que os outros seguem olhando de fora, pois só Deus sabe o que se passa na alma de cada um.
Uma pessoa pode ter morrido por alguém por motivos egoístas e outra pode ter tido uma vida aparentemente superficial mas através de pequenos atos poderosos (ajudou sua família, amigos, desconhecidos) chegou perto de Deus.
Jesus nos chama a conservarmos o desejo de santidade e martírio em nosso coração. Mas às vezes ele lança desafios difíceis em nossas vidas, como nos fazer perder um braço, que talvez dificulte que ajudemos os outros de certa forma, mas abre as portas para que possamos entender o amor de outra maneira.
Talvez tenhamos um filho, ou companheiro. Talvez dezenas de responsabilidades que tomem nosso tempo e que achamos que nos impedem de servir a Deus como gostaríamos, mas na verdade podemos encontrar nossos pequenos martírios, pequenas mortes diárias, em pequenos atos.
É difícil saber, mas jamais devemos julgar os outros. O desejo de martírio também é um convite de lidarmos com o maior medo humano: a morte, e atribuirmos a ele o significado mais especial do mundo.
Assim podemos começar a entender um pouco porque existe o sofrimento e a morte no mundo, por mais indecifrável que seja esse mistério. Não precisamos ter todas as respostas. Basta que possamos encontrar nossa missão nesse mundo na medida das nossas forças e possibilidades. Deus não pedirá de nós mais do que somos capazes de fazer com o corpo que ele nos deu. Somente pedirá que façamos o máximo possível. Seremos julgados com base nisso pelo mais difícil julgador: nossa consciência.
Estamos fazendo o máximo? Nós sabemos. Até Deus descansou no último dia da criação. Então, dentro de nossos limites humanos, sendo realistas com o que podemos, mas sem menosprezarmos nossas capacidades, alcançaremos um espaço nesse mundo que, por fim, acalmará uma consciência que, lá no fundo, sempre sonhou em salvar o mundo.
Por que Deus colocou em nosso coração o desejo de salvar o mundo? Porque nós podemos fazer isso.
Como? Sendo testemunhas.