Julgar e ser julgado

Wanju Duli
10 min readJun 18, 2020

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“Isto diziam eles, tentando-o, para que tivessem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo na terra.
E, como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que dentre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela.
E, tornando a inclinar-se, escrevia na terra.
Quando ouviram isto, redarguidos da consciência, saíram um a um, a começar pelos mais velhos até aos últimos; ficou só Jesus e a mulher que estava no meio.
E, endireitando-se Jesus, e não vendo ninguém mais do que a mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?
E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno; vai-te, e não peques mais”.

(João 8:6–11)

Nós, seres humanos, temos o péssimo hábito de apontar os erros dos outros e não reconhecer nossos próprios erros.

Infelizmente, apontar os erros dos outros e julgá-los tornou-se socialmente aceitável e até celebrado, principalmente na internet. Sob a justificativa “nobre” de “denunciar preconceitos, egoísmo, corrupção, roubo, etc” tornou-se uma espécie de hobby postar nas redes sociais tudo de ruim que os outros dizem e fazem.

Um político foi corrupto, uma celebridade pronunciou uma bobagem preconceituosa. É claro que é importante prestar atenção ao que políticos fazem, pois isso diz respeito a nós também, e denunciar. No entanto, o que no início tinha um objetivo bom tornou-se um espetáculo.

O objetivo já não é mais “denunciar o mal em nome da justiça” mas realizar uma violenta caça às bruxas, em que apedrejamos qualquer um que saia da linha ou que cometa a heresia de pronunciar a frase proibida.

É quase como se o livro 1984 de George Orwell tenha se tornado realidade: filhos pequenos denunciam os pais, amigos denunciam amigos, tudo em nome da “justiça” e do “bem maior”.

Nosso objetivo não é mais construir uma sociedade justa ou denunciar preconceitos, mas devolver ódio com ódio e pagar o mal com o mal. Pessoas dizem coisas como: “Não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”, que foi uma frase dita por Malcolm X.

Porém, Gandhi disse: “Olho por olho e o mundo acabará cego”.

Muitos de nós ficamos com raiva diante de preconceitos e injustiças. Eu também fico com raiva. Mas acho que o ser humano deve buscar se tornar algo mais do que apenas uma pessoa com raiva.

Nós sentimos verdadeiro ódio contra políticos corruptos ou pessoas que dizem e fazem coisas preconceituosas. Nossa primeira reação pode ser xingá-las ou até mesmo concluir que eles não são mais seres humanos. São menos que animais, são assassinos e merecem a morte.

O problema de desumanizar uma pessoa e dizer que ela não é mais um ser humano é o mesmo que afirmar que os direitos humanos universais não se aplicam mais a ela. Foi o que ocorreu na época do nazismo, pois esse argumento era o que justificava matar judeus. Foi o que ocorreu em muitos outros genocídios através da história.

O primeiro passo é aceitar que todos somos seres humanos, mesmo que seja uma afirmação dolorosa. Imagine se um médico se nega a atender alguém sob a justificativa de: “Não, você matou, roubou, mentiu, é um político corrupto, disse algo preconceituoso, então não vou atender você e deixá-lo morrer”. Por que o que vale para a lógica médica, que é atender a todos sem distinção, não vale para outras esferas da lógica e da vida?

Muita gente diz que não gosta de religião, particularmente de cristianismo, porque ela é “severa demais”. E outros não gostam pelo motivo oposto: porque é “leve demais”.

Não são poucos que dizem: “Por que existe inferno no cristianismo? Se Deus fosse realmente bom, mandaria todos para o céu. Não gosto dessa história de inferno! Se essa religião fosse mesmo boa, se Deus perdoasse todos, teria criado apenas céu, sem inferno”.

Muitos desprezam o cristianismo quando se fala de Deus e do diabo, pois são coisas desconfortáveis.

Por outro lado, há aqueles que não gostam do cristianismo pela razão oposta. Elas dizem: “Não concordo com essa história de perdoar todos. Como até um assassino pode ser perdoado e ir para o céu? Por que temos que perdoar um político corrupto ou uma pessoa que diz e faz coisas preconceituosas? Essa religião é muito mole!”

Ou seja, o cristianismo nunca é bom o bastante: ou ele é criticado por ser gentil demais com os que fazem coisas ruins ou por ser severo demais por falar em inferno e diabo.

Mas talvez um dos maiores motivos para muita gente não gostar de cristianismo é simplesmente porque não gostamos de ser julgados. Nós gostamos de apontar o dedo para os outros, chamar os outros de preconceituosos, egoístas, corruptos, ladrões, etc, mas não queremos ter ninguém, muito menos um Deus e uma religião, nos dizendo como devemos viver.

É muito mais confortável usarmos um código moral leve para perdoar nossos próprios egoísmos e preconceitos e usar um código moral severo para julgar os egoísmo e preconceitos dos outros.

A maior parte de nós se considera “uma pessoa sem preconceitos”, pois são apenas os outros que são preconceituosos, nunca nós. E a maior parte de nós se considera uma pessoa que “tem pequenos egoísmos, que não machucam ou prejudicam ninguém”, enquanto o egoísmo dos outros, o acúmulo de dinheiro, etc, seria o responsável universal pela pobreza e miséria do mundo. Enquanto isso, nossos próprios egoísmos pequenos são apenas caprichos mínimos que não interferem em nada na ordem do mundo.

Essa é uma visão muito conveniente e confortável.

Na internet nos portamos como caçadores de bruxas, como grandes justiceiros, os salvadores do mundo, a luta do bem contra o mal. Nós denunciamos tudo de ruim que os políticos fazem. Nós jamais perdoamos uma celebridade por dizer sequer uma frase preconceituosa. Agora essa pessoa não é mais um ser humano, ela foi para o lado do mal.

E são essas mesmas pessoas que criticam religiões por serem “uma luta maniqueísta do bem contra o mal, do Deus contra o diabo, do céu contra o inferno”.

No século XXI apenas mudaram os nomes dos Deuses, pois as atitudes humanas continuam semelhantes.

Eu acredito que é importante fazer denúncias de coisas erradas que acontecem. Não podemos apenas ignorar quando pessoas fazem afirmações preconceituosas ou realizam atos condenáveis. Temos que realmente levantar a voz contra isso, com segurança e sem hesitação.

Mas colocar-se contra algo não deve ser o mesmo de dizer que aquela pessoa já não é mais um ser humano e merece morrer. Há diferentes formas de denúncia.

Eu não acho que as pessoas apenas fazem esse tipo de denúncia em nome da justiça. Quando apontamos as coisas ruins que os outros fazem, às vezes nos sentimos tranquilos em relação a nós mesmos. Pensamos: “Vejam só, eu não sou uma pessoa tão ruim quanto esse cara preconceituoso. Na verdade, sou um herói, um justiceiro, estou ajudando o mundo com minhas denúncias, xingamentos e ameaças de morte, porque eu sou o cara sem preconceitos e defensor da justiça e quero ser elogiado”.

É fácil ver os preconceitos dos outros. Não é fácil ver os nossos.

Embora seja importante denunciar coisas ruins que pessoas falem ou façam e deixar claro que somos contra aquele tipo de injustiça, eu acho que não devíamos falar apenas das coisas ruins do mundo e das pessoas.

Por que não falamos mais de pessoas que falam e fazem coisas boas? Eu acredito que há mais gente no mundo fazendo coisas boas do que ruins. Então por que focamos tanto nas bobagens?

Falar apenas do pior das pessoas nos deixa com a sensação de que estamos vivendo num mundo horrível e que a maior parte das pessoas são ruins. Essa é uma visão muito pessimista. E cria uma barreira entre “nós, os bons” e “eles, os maus”. Nós nem conhecemos direito esses “maus” e os julgamos imediatamente. Nós os vemos por uma caricatura, o grupinho que discorda de nós. E usar a desculpa de que “eles nos julgam também” não é justificativa para fazer exatamente o que desaprovamos nessas pessoas.

Inclusive, não é absurdo que pessoas com uma visão pessimista não acreditem em Deus, porque seria lógico pensar que um Deus bom não condiz com um mundo tão cruel, repleto apenas de corruptos, mentirosos, ladrões e assassinos.

É sua escolha dizer que o copo está meio vazio ou meio cheio. Eu prefiro ter uma visão mais otimista do mundo, pois isso nos dá esperanças. E precisamos de esperanças no amor, nas coisas boas e acreditar no melhor das pessoas.

Eu gosto de religiões porque apesar de religiões retratarem uma luta (anjos contra demônios, Deus contra diabo, etc) elas nos dão a esperança de que o bem e Deus triunfam no fim. De que há mais bondade do que maldade tanto dentro de nós quanto no mundo. Essa é uma visão bem otimista.

Segundo a tradição, um terço dos anjos seguiu Lúcifer e dois terços permaneceu do lado de Deus. É sinal de que o bem ainda está em maior número.

Eu gosto muito de ler as histórias das vidas dos santos, porque devemos nos inspirar em pessoas que fazem não somente coisas boas, mas coisas extraordinárias. Assim nós concluímos: “Eu achava que era uma pessoa boa. Pensava que apenas ajudar uns poucos ao meu redor era o bastante. Mas lendo a vida dos santos eu me sinto motivado a fazer muito mais!”

Em contraste, quando eu vejo alguns posts de redes sociais apenas criticando tudo de ruim que pessoas fazem, sem nenhuma mensagem positiva, a tendência é pensar: “Perto desses malditos, meus pequenos egoísmos não são nada, então não preciso melhorar como ser humano, vou ficar na minha zona de conforto”.

Eu não sou tão ingênua e sei que religiões também já foram usadas como justificativas para apoiar preconceitos, para julgar os outros e para fazer coisas ruins. No entanto, lendo a história da vida de dezenas de santos é fácil ver como a religião também já transformou a vida de tantos para melhor.

Você não precisa necessariamente se tornar uma pessoa religiosa para passar a ter uma visão mais otimista do mundo. Porém, eu acredito que o otimismo e a esperança ajudam muito.

Nessa época de pandemia lemos muitas mensagens negativas como “Tal político de tal país disse uma bobagem” ou “Tal pessoa deixou que milhares morressem”. Não são só os políticos que alteram o mundo, mas cada um de nós individualmente pode contribuir com muita coisa (60% dos hospitais e escolas na África foram fundados pela Igreja Católica, o que mostra que não são só governos que mudam o mundo). Por que não falamos mais sobre todas as pessoas que estão ajudando os vizinhos a fazer compras ou que fazem doações?

É porque esse tipo de notícia não dá audiência, não estamos interessados. Nós gostamos de escândalos. Gostamos de fofocas, de saber dos políticos corruptos, dos famosos que fazem coisas ruins e se comportam como idiotas, pois isso nos deixa aliviados, pensando: “Ainda bem que não sou tão ruim como esse idiota”. E melhor ainda: você passa a responsabilidade para outra pessoa. Não é mais sua responsabilidade mudar o mundo, é apenas dos políticos. Então se algo ruim acontece é só culpa dos outros e você não tem nada a ver com isso.

Ao contrário, eu acho importante lermos mais histórias de vidas de santos ou mesmo saber mais sobre histórias de vizinhos que estão ajudando doentes, porque isso nos leva à reflexão: “Por que eu não estou fazendo mais doações ou ajudando mais?”

Quando divulgamos em nossas redes sociais apenas um mundo decadente e sem esperança de pessoas que roubam e matam, ficamos com a sensação de que para ser uma pessoa boa basta não matar e não roubar. Perto de todas essas criaturas abomináveis, apenas não fazer nada no mundo atual significa se tornar quase um santo.

Mas a moral religiosa é muito mais rigorosa. Talvez por isso não costumamos gostar dela. A religião nos diz que não basta não fazer o mal. Precisamos ser ativos e fazer o bem. E não basta ajudar os que estão ao nosso redor. Devemos ir além.

Escutar isso nos tira da nossa zona de conforto. É muito mais fácil continuar apenas em nossa velha vida, xingando os outros e apontando o dedo, porque dá muito trabalho mudar a nós mesmos.

Muita gente não gosta de religião porque não quer dedos apontados para si. Eu não quero ouvir que preciso fazer mais doações ou ajudar o meu vizinho. É mais fácil criticar o político corrupto do país X ou o famoso que está roubando ou falando bobagem.

Não me entenda mal: nós devemos nos pronunciar contra quem faz coisas ruins. Mas esse é apenas o primeiro passo, apenas o começo. Não podemos ficar só aí.

Jesus disse: se quer ir para o céu, basta obedecer os mandamentos. Mas se quer ser perfeito, largue tudo e siga-me.

Você pode merecer o céu fazendo apenas o mínimo. Mas as religiões nos convidam a fazer mais do que o mínimo. E o que é mais que o mínimo? Cada um deve consultar sua consciência e descobrir, pois não há fórmula que sirva para todos. Por isso não podemos julgar a vida alheia com base na nossa.

Não basta julgar os outros. Muito melhor e maior é julgarmos a nós mesmos! É transformarmos nossa própria vida. É não se satisfazer em fazer pouco e sempre buscar fazer mais.

Se é para se comparar com os outros, compare-se com os santos! Assim, não importa o bem que você faça, sempre descobrirá um santo que fez mais e desejará melhorar incansavelmente.

Isso dá trabalho? É claro que dá. Não é mais fácil se comparar com os ladrões e assassinos? Perto deles, basta não ser ladrão e assassino para ser chamado de “bom”.

Jesus diz na Bíblia: “Por que me chamas de bom? Bom é só Deus”.

Devemos nos mirar no exemplo dos santos, que mesmo vivendo na pobreza e mesmo ajudando os outros, sempre se julgavam pecadores e atribuíam tudo de bom que faziam apenas a Deus e nunca a si mesmos.

Essa é uma moral rigorosa? Sim. O cristianismo é difícil? Sim. Mas quando começamos a ser rigorosos com nós mesmos nos damos conta de como estamos longe da perfeição e o quão difícil é ser bom. Então nos tornamos mais compassivos e mais propensos a perdoar os erros dos outros, em vez de julgar pessoas que só vemos de fora por apenas uma parte do que elas são.

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