Infiel, por Ayaan Hirsi Ali

Wanju Duli
9 min readApr 4, 2022

--

Uau! Esse livro é uma joia preciosa!

Comecei a leitura em janeiro desse ano. Por falta de tempo só consegui acabar agora. De qualquer forma, estou radiante por finalmente ter terminado!

No final do ano passado e início desse ano eu estava numa das minhas muitas épocas (já passei por várias ao longo dos últimos anos) de vício e profunda admiração pelo Islã. Adquiri muitos livros sobre essa religião e li um atrás do outro. Também fui muitas vezes na mesquita e tive a experiência de usar véu em todas essas ocasiões (é obrigatório para entrar numa mesquita). Tive a alegria de escutar o discurso do imã e realizar as orações ao lado de muçulmanas, tanto brasileiras como estrangeiras (de países da África e Oriente Médio). Também tive algumas ótimas conversas lá.

Num dos livros que li em janeiro achei uma referência ao curta-metragem polêmico feito por Ayaan Hirsi Ali. Você pode assistir aqui. Assim que vi fiquei curiosa sobre Ayaan e procurei mais sobre ela. Descobri que ela tinha escrito uma autobiografia e comprei imediatamente.

O diretor do filme de Ayaan foi assassinado de forma dramática por um muçulmano e ela mesma foi ameaçada de morte. Isso porque ela expressa no curta ideias contra o Islã. Ela nasceu na Somália, numa família muçulmana. Pediu asilo na Holanda e se tornou ateísta.

Eu já li muitos livros escritos por famosos autores ateus. Só para citar alguns: Richard Dawkins (já li vários livros dele), Christopher Hitchens, Sam Harris, Albert Camus, Bertrand Russell e certamente muitos outros que esqueci agora. Afinal, quem não conhece os Quatro Cavaleiros do Não Apocalipse, as grandes vozes do novo ateísmo? Inclusive, o livro “A Paisagem Moral” de Sam Harris é realmente admirável e eu o recomendo!

Eu nunca me considerei ateísta. Desde criança eu já acreditava em algum tipo de força espiritual e no início da adolescência, quando tive contato com o ocultismo, acreditei nos deuses de diferentes religiões. Eu basicamente acreditava em tudo que eu lia e achava tudo o máximo. Achava muito mais divertido e empolgante um universo cheio de seres espirituais.

Aos 17 anos, quando tive um contato mais profundo com o catolicismo, entendi melhor a ideia do Deus das religiões abraâmicas. Desde então, eu acredito formalmente em Deus. Mas eu tive que ler centenas de livros de teologia e filosofia (principalmente cristã) para entender os argumentos por trás da existência de Deus.

É claro que eu também queria entender os argumentos dos ateus contra a existência de Deus. Eu respeito muito dos argumentos e entendo os diversos motivos que podem levar alguém a se tornar ateísta.

Porém, eu conhecia principalmente os argumentos que levam homens brancos ocidentais de classe média a se tornarem ateus. Se você é mulher ou LGBT também não é preciso muita imaginação para concluir porque abandonaria uma religião como o cristianismo.

Porém, o Islã por muito tempo representou a inclusão dos negros, como a religião adotada por Malcolm X. Mas eu queria entender porque uma mulher negra africana, criada em família muçulmana, quis abandonar o Islã tão profundamente a ponto de se tornar ateísta.

Eu sabia que a autora tinha morado na Holanda e atualmente mora nos Estados Unidos. Antes de ler o livro, eu imaginava que o motivo dela para deixar o Islã havia sido um motivo parecido ao dos ocidentais que abandonam o cristianismo. Porém, eu estava completamente enganada.

Não dá para tentar imaginar o conteúdo de um livro sem lê-lo. Eu tive que passar por toda a experiência da leitura para compreender melhor qual era a real crítica da autora ao Islã. Sim, antes de ler o livro confesso que eu pensava que não iria aprender tantas coisas novas. Achei que a autora usaria os velhos argumentos batidos que já li em dezenas de livros para explicar porque ela não acreditava mais em Deus. Mas não era nada disso.

A autora e a irmã dela passaram por clitorectomia, a mutilação genital feminina, quando crianças. Eu já tinha lido sobre essa prática em vários livros, mas até hoje nunca tinha lido um livro escrito por uma mulher que passou por isso. Infelizmente essa prática é comum em muitos países da África e alguns do Oriente Médio, embora não esteja diretamente ligada ao Islã.

Eu já tinha lido os argumentos de Sam Harris em seu livro “A Paisagem Moral” sobre clitorectomia. Ele classifica essa prática como extremamente violenta e uma grave violação dos direitos humanos. Nesse livro ele ataca o relativismo moral. Ele critica antropólogos e outros profissionais que não intervém quando veem violações contra direitos humanos sob o argumento de que devem “respeitar” as diferentes culturas de países, tribos, etc. Sam Harris diz que não, que essa discussão deve ter base científica. Que a moral deve ter base científica e não religiosa. Pois até hoje foi principalmente a religião que assumiu responsabilidade de definir o que é certo e errado, bem e mal. E uma pessoa sem religião tende a defender o relativismo moral. Porém Sam Harris, como ateu, propõe que a ciência dê respostas para isso. Achei geniais os argumentos dele.

Em seu livro, Ayaan segue uma direção semelhante. Ela viveu em alguns países da África, alguns muçulmanos, outros cristãos. Porém, em sua família e nas comunidades onde ela viveu geralmente havia uma tendência a controlar a vida de homens e principalmente mulheres com base na religião. Ela foi obrigada a se casar com alguém que não queria por pressão da família (e depois, a muito custo, conseguiu se divorciar). Por causa da guerra em seu país ela conseguiu um pedido de asilo na Holanda.

Ela começou a se perguntar porque a vida na Holanda era tão diferente da vida nos países africanos nos quais ela viveu. Ela estudou ciência política numa faculdade da Holanda pra tentar encontrar essas respostas.

Ayaan viu que muitos muçulmanos ou defensores do Islã na Holanda diziam coisas como “a maior parte dos muçulmanos são pacíficos, as histórias de violência são exceção” e citavam as antigas descobertas importantes feitas por muçulmanos, como a álgebra. Porém, muitos deles nunca tinham viajado para a África e Oriente Médio e desconheciam como era a rotina dos muçulmanos nesses lugares. Não se falava sobre os casamentos forçados e sobre a morte e espancamento de mulheres muçulmanas que namoravam fora do casamento, em nome da honra. Segundo Ayaan, essas histórias não eram a exceção e sim a regra em muitos lugares.

Ayaan serviu de tradutora para muitas imigrantes somalis que chegavam na Holanda e as histórias apenas se repetiam: mulheres fugindo de casamentos forçados, sendo estupradas, espancadas, reprimidas e mortas. E a maior parte dessas violências eram justificadas em nome do Islã.

Ela foi atrás das estatísticas de mortes de mulheres muçulmanas na Holanda por pais, irmãos e maridos e descobriu que nem mesmo a Anistia Internacional tinha esses dados. O Ministério da Justiça não registrava para “não estigmatizar um grupo na sociedade”. Ayaan conseguiu um cargo político e conseguiu registrar as dezenas de mortes anuais de mulheres muçulmanas que ocorriam na Holanda em nome da honra.

Os holandeses, em nome do relativismo moral e do respeito a outras religiões e culturas, usavam os mesmos argumentos: “a maior parte dos muçulmanos são pacíficos, violência é praticada por pessoas de todas as religiões, ateus, etc”. Porém, Ayaan percebeu que os números eram definitivamente desproporcionais. Ela estava farta de holandeses acadêmicos, que não conheciam a realidade da vida das mulheres em muitos países muçulmanos, tentando defender o Islã. Sendo que essas mulheres estavam sendo mortas naquele momento na própria Holanda, em nome da honra da religião.

Ayaan deu muitas entrevistas criticando o Islã abertamente. Quando ela fazia isso, era criticada por “denegrir” sua própria cultura. No entanto, ela mesma sofreu a violência no próprio corpo e tinha muito mais voz para criticar o Islã sendo ela mesma uma mulher negra da Somália criada em família muçulmana, do que teria um homem branco holandês que só conhecia o Islã por livros.

Novamente, o ponto dela era claro: a história dela não era exceção. Não era uma fatalidade lamentável que ocorreu numa família muçulmana que por acaso agiu de forma violenta, já que a violência pode ocorrer em famílias das mais variadas religiões. De acordo com as estatísticas que Ayaan recolheu e nas experiências que teve em comunidades muçulmanas em diferentes países da África e Oriente Médio nos quais viveu, muitas mulheres muçulmanas vivenciavam algo parecido. E a religião islâmica parecia desempenhar um papel claro na perpetuação dessa violência.

Ela, como política, tentava criar leis na Holanda para proteger as mulheres muçulmanas. Em público, as pessoas defendiam o Islã, em nome do respeito a outras crenças. Porém, Ayaan contou que em privado muitas mulheres muçulmanas iam falar com ela, dizendo que ela tinha razão.

Os últimos capítulos do livro são os mais reveladores, pois é lá que Ayaan conta sobre a produção do curta-metragem. Também conta como o diretor do filme foi morto por um muçulmano radical e como ela mesma foi ameaçada de morte, teve que ser escoltada por seguranças e ir para fora do país.

E o que eu penso sobre o Islã agora, depois de ler essa biografia?

Já li muitos livros sobre o Islã antes, então não era como se eu não soubesse de várias coisas que são mencionadas. Porém, quantos livros sobre o Islã que eu já li de autoras mulheres? Realmente poucos. E esse foi particularmente revelador.

Sempre achei legal acompanhar canais no Youtube e ver vídeos na internet de muçulmanas com orgulho da religião e orgulho de usar o véu. Continuo achando isso muito legal (embora esses vídeos geralmente sejam de muçulmanas vivendo em países ocidentais).

Agora, por exemplo, estou lendo um livro chamado “Contra o feminismo branco” de Rafia Zakaria, paquistanesa muçulmana que foi forçada a se casar, num casamento arranjado, aos 17 anos. Ela ainda é muçulmana e critica os brancos que “tentam salvar as mulheres negras dos homens negros violentos”, e o complexo do salvador branco.

Malala é outro exemplo de mulher muçulmana paquistanesa que costuma dizer que só chegou onde chegou simplesmente porque o pai dela não a reprimiu, diferente do que ocorre em várias famílias.

Sem dúvida, a experiência de cada mulher é diferente. Ayaan deixou o Islã e se tornou ateísta. Rafia Zakaria parou de usar o véu, mas continua sendo muçulmana. Malala é muçulmana até hoje e usa o véu.

Sim, ocorre violência em nome do Islã e isso não se restringe apenas a grupos terroristas. No entanto, mesmo depois de sofrer violência em nome da religião, nem toda mulher deixa de ser muçulmana ou de acreditar em Deus.

Gostei muito de ler a autobiografia de Ayaan. Achei que os argumentos dela para se tornar ateísta foram bem fortes e totalmente compreensíveis. Entendo a luta dela em nome dos direitos humanos.

Eu continuo a admirar o Islã e não acho que o Islã em particular ou religiões em geral devem ser combatidas. Eu acredito que existam meios de conciliar a prática de religiões antigas com nosso entendimento atual de direitos humanos.

Para mim, religiões como cristianismo e Islã preenchem o “vazio” por respostas sobre a existência. Principalmente a crença em Deus. É claro que é possível ter uma espiritualidade sem ter uma religião ou mesmo sem crer em Deus. Mas isso vai de cada um. Eu mesma sempre achei mais fácil entender as grandes questões da vida quando penso em Deus e faço orações.

Atualmente eu ando meio afastada do Islã novamente (até hoje nunca me tornei muçulmana), mas não por causa desse livro em particular. Outro dia falo mais sobre isso. Nada impede que eu me envolva formalmente com o Islã ou outra religião no futuro. Acho que isso depende muito também de questões difíceis da vida que irei enfrentar no futuro e o quanto precisarei de apoio espiritual. É mais fácil quando existe uma comunidade de apoio formada em torno de uma religião organizada.

Muita gente, principalmente ateus, acham que religiões antigas (e algumas novas) trazem consigo muito preconceito e violência. Sim, isso existe, mas religiões também trazem coisas boas. Como eu costumo dizer, a maior parte dos hospitais e escolas da África foram fundados por religiosos, principalmente cristãos ou muçulmanos.

Porém, eu tenho somente minha experiência de vida para pensar isso. E para mim religiões trouxeram muitos benefícios. Não tenho como julgar e condenar experiências que associam religiões a violência.

Como disse Ayaan, ela também sente o vazio do mundo ocidental. Não é como se um mundo não religioso também não tivesse seus próprios problemas.

Obrigada, Ayaan, pelo relato fascinante e pela sinceridade. Adoro ler biografias e espero ler mais no futuro, para aprender a enxergar o mundo por diferentes pontos de vista.

--

--

Wanju Duli
Wanju Duli

No responses yet