Enfermagem e covid-19
Hoje foi o dia da minha colação de grau (em gabinete, devido à pandemia) e para celebrar a ocasião vou contar um pouco como foi a minha experiência com a enfermagem e a covid-19 esse ano e no ano passado.
Em fevereiro de 2020 fiz um estágio opcional no CCA (Centro Cirúrgico Ambulatorial). Lá é um ambiente em que sempre se usa EPIs e durante as dezenas de cirurgias que acompanhei, experimentei vários tipos diferentes de máscaras. Eu nunca imaginaria que, um mês depois, várias pessoas na rua estariam usando máscaras também.
No dia 5 de março de 2020 comecei meu estágio curricular do nono semestre. Nesse dia eu também não fazia ideia que eu teria que interromper o estágio duas semanas depois.
No dia 1º de dezembro de 2019 comprei uma passagem para a África do Sul para o dia 23 de março. Pretendia ficar duas semanas lá e retomar meu estágio em seguida.
Eu estava muito feliz e empolgada com esse estágio. A enfermeira que me acompanhou no meu curto período lá é maravilhosa. Fizemos várias visitas domiciliares, que após o início da pandemia não seriam mais realizadas. Eu fazia 8 horas por dia de estágio com intervalo para almoço. Às vezes eu e algumas técnicas de enfermagem almoçávamos juntas num restaurante barato ali perto. Logo isso também não seria mais possível.
Um dos requisitos do estágio era que eu escrevesse um diário contando todas as minhas atividades em cada dia, portanto eu tenho tudo registrado. Num dia participei de uma reunião com dezenas de membros da equipe de enfermagem de várias unidades de saúde para debater como seria a rotina das unidades após o início da pandemia.
Já estávamos oferecendo máscaras para aqueles que chegassem com sintomas, mas também já havia falta de EPIs. Onde os pacientes com suspeita de covid deveriam aguardar? Nem toda unidade de saúde tinha estrutura para ter uma sala apenas para atender casos supeitos de covid ou um local de espera. Tudo isso e muitas outras coisas foram discutidas naquele dia.
Na época ainda não havia consenso sobre quem precisava usar máscara e como deveriam ser feitos os atendimentos aos suspeitos de covid, além de haver a questão da falta de EPIs. Por isso, naqueles dias eu e a equipe atendemos vários pacientes suspeitos de covid-19 às vezes sem máscara (tanto nós quanto o paciente). Em março eram suspeitos de covid somente quem tinha feito viagem recente para fora da cidade e apresentavam sintomas característicos.
Nos dias 14 e 15 de março, fim de semana, eu e meus colegas aguardávamos algum comunicado dos professores. Estava tudo incerto. Os estágios iriam prosseguir?
Dia 16 de março, segunda-feira, fui para o estágio. Lembro que fiquei um pouco surpresa. Se os professores não nos pedissem para parar, não seria eu a pedir. Não se sabia tanto sobre a gravidade da doença, mas imaginei que se prosseguíssemos o estágio naquelas condições (com falta de EPIs e sem haver estrutura para receber os pacientes de forma adequada) não demoraria muito para eu receber a notícia de que um dos meus colegas estava com covid ou uma notícia pior.
Dia 17 de março, terça-feira de manhã. A enfermeira que me acompanhava foi afastada do trabalho, pois tinha condições de saúde que tornavam arriscado sua exposição. De tarde eu continuei lá, já imaginando que em breve eu teria que enviar uma mensagem para minha professora para perguntar quem iria me acompanhar a partir de então.
Mas isso não foi necessário. Após uma troca de curativo, tive um intervalo para checar meu celular e vi a mensagem da minha professora: os estágios estavam cancelados e eu devia voltar para casa.
Aguardei numa parada de ônibus deserta e entrei num ônibus vazio. Eu não sabia naquele dia que aquela seria a última vez que eu sairia na rua por um longo tempo.
Obviamente, eu também cancelei minha viagem.
Algumas semanas depois, todos os alunos do estágio responderam um questionário. Tínhamos três opções: permanecer fora do estágio por mais um tempo; voltar para o estágio; participar da ação estratégica “O Brasil Conta Comigo” que convocava estudantes da área da saúde a auxiliar no esforço contra a covid-19.
Muitos colegas meus optaram por retomar o estágio. Alguns já trabalhavam meio período como técnicos de enfermagem e tinham que sair de casa de qualquer forma. Outros também tinham estágio remunerado e iriam se expor igual. E ainda tive colegas numa situação em que os pais perderam o emprego ou não conseguiam clientes durante a pandemia, então era urgente que eles se formassem o quanto antes para trabalhar e poder ajudar com as despesas da casa.
Ou seja, não era uma questão apenas de pensar se valia o risco ou não retomar o estágio. Para alguns era realmente uma questão de sobrevivência. Não havia opção. Não havia o que pensar. Eles tinham que ir.
Também havia a situação de colegas meus que moravam com os avós. Eles eram grupo de risco. Iriam arriscar retomar o estágio?
Muitos colegas tinham motivos práticos e não heroicos para retomar o estágio e isso é totalmente compreensível. Claro que alguns deram o discurso de: “Mas foi para isso que fizemos enfermagem! Precisam de nós, temos que ajudar agora!”. Em breve eu veria colegas do meu semestre e de outros dando entrevistas e contando sobre sua rotina na pandemia.
Eu não estava numa situação de “se eu não me formar logo e não começar a trabalhar logo minha família vai passar fome”. Então eu tive o luxo de pensar. Eu tive o luxo de “poder ser heroica” se eu quisesse. O que não deixa de ser uma injustiça para quem “não é herói por opção, mas é obrigado a ser”.
Aliás, essa história de “herói” é bem controversa. Eu vou falar mais disso em outros textos que eu for escrever mais adiante. Pois é legal ter o trabalho reconhecido e receber aplausos, mas não é legal trabalhar sem EPIs e com baixos salários. A ideia do “Brasil Conta Comigo” foi boa, se ao menos os salários recebidos nesse programa fossem suficientes no mínimo para que o estudante pudesse pagar um local separado para dormir sem ter o risco de contaminar a família.
Em alguns países e até em algumas cidades do Brasil havia hotéis que davam descontos para trabalhadores da área da saúde. Lembro que até eu mesma fiz uma pesquisa de um hotel com desconto devido à pandemia para ver se era viável retomar o estágio com essa opção, mas ainda era muito caro.
Alguns meses depois, após debates com a família, retomei o estágio. E as coisas já estavam bem diferentes.
Eu mudei o local do estágio, já que a enfermeira anterior estava de licença. Fui para uma unidade maior, com maior fluxo de pacientes. Embora houvesse mais exposição com mais gente, havia melhor estrutura. Os pacientes com suspeita de covid aguardavam numa área própria, ao ar livre e com o distanciamento adequado. E havia todos os EPIs apropriados.
Isso significa que a decisão dos professores de pararmos o estágio em março foi adequada. Deu tempo para que as unidades de saúde reunissem os EPIs e se organizassem para atender os pacientes. Mesmo assim, todos nós, estudantes, tivemos que assinar um papel declarando que estávamos cientes dos riscos.
Alguns colegas meus que retomaram o estágio antes, se formaram bem antes. Eu aproveitei meu período em casa para terminar logo meu TCC. Na verdade tive que recomeçar. Meu projeto inicial de TCC era sobre o CME (Centro de Material e Esterilização). Em julho de 2019 fiz um estágio voluntário lá para me ajudar no projeto do TCC. Foi o estágio mais difícil que já fiz, com trabalho braçal intenso (lavando os materiais e usando protetores auriculares por causa do barulho).
Em compensação, eu aprendi muito sobre EPIs, pois meu projeto era a continuidade de um trabalho em andamento sobre a criação de bundles (um tipo de checklist) para saber se os membros da equipe usam o equipamento adequado e o quanto isso influencia. Íamos até contatar o departamento de estatística para me ajudar na parte mais matemática do projeto.
Mas para isso eu teria que ir três vezes por dia para o CME para fazer anotações nos três turnos. Isso não era viável durante a pandemia e por isso o projeto foi cancelado e comecei meu TCC do zero.
No final, meu TCC foi sobre a influência dos fômites (objetos ou superfícies que podem reter microrganismos infecciosos e transportá-los entre indivíduos) na transmissão da covid-19. No trabalho eu comparei a influência dos fômites em diferentes tipos de coronavírus, como SARS e MERS. Foi uma revisão de literatura. Pretendíamos publicar numa revista, mas como o ano passado foi meio caótico e minhas professoras estavam bem ocupadas, acabou não acontecendo.
Tive uma boa experiência com o TCC, pois tive uma orientadora muito boa, ótima banca e bastante tempo livre em casa para me dedicar. Aprendi muito também, então deu tudo certo.
Nessa foto, assim como na primeira foto de abertura do post, estou na Unidade de Saúde com os EPIs: máscara, gorro, face shield, avental e propés. Eu costumava morrer de calor ao usar isso no posto de saúde, pois evitávamos usar ar condicionado, mantendo portas e janelas abertas para ventilar o ambiente, pois isso diminui a probabilidade de contaminação.
Eu e o enfermeiro que me acompanhou costumávamos fazer uma triagem dos pacientes suspeitos de covid-19. Eu chamava o paciente que aguardava lá fora. Ele se sentava numa cadeira e eu media a temperatura, saturação e pressão arterial, enquanto era feita a entrevista inicial. Todos os dados eram passados para o sistema e o paciente era encaminhado para a próxima etapa (por exemplo, atendimento médico).
Tudo isso tinha que ser feito rápido (pois às vezes havia dezenas de pacientes esperando atendimento), mas de forma cuidadosa. Cada vez que um paciente saía, eu colocava as luvas e passava álcool em tudo: na cadeira, na mesa, no termômetro, no oxímetro, no esfigmomanômetro, no estetoscópio. Às vezes quase faltava algodão, luvas e papel, de tanta limpeza que eu fazia. Se faltava, tinha que correr para buscar o que faltou em outra sala ou no almoxarifado.
Então nesse período eu escutei e acompanhei dezenas, talvez centenas de casos de pacientes com suspeita de covid, covid confirmada ou pós-covid.
Houve duas ocasiões em que pacientes com suspeita de covid que aguardavam nosso atendimento de triagem nas cadeiras do lado de fora desmaiaram. Eles foram imediatamente socorridos pela equipe.
No fim de um dia agitado em que eu estava cansada e coberta de suor após ter atendido tantos pacientes seguidos sem intervalo com aqueles EPIs, às vezes o enfermeiro dizia: “Até que hoje os casos estavam leves. Tem dias em que os casos de covid são tão graves que os pacientes vão daqui direto para o hospital”.
Nessa unidade de saúde em que eu fiz o estágio, vários membros da equipe tiveram covid. O tempo todo eu escutava: “O médico tal testou positivo hoje” ou “O técnico de enfermagem tal, que estava com covid, foi para a UTI ontem”. E vários enfermeiros ou técnicos de enfermagem com quem eu conversava diariamente tinham se recuperado da covid há relativamente pouco tempo.
Sinceramente, eu achei que era apenas questão de tempo até eu ter covid também. Não parecia uma questão de “se” mas de “quando”. Afinal, todos os dias eu atravessava o local em que os pacientes supeitos de covid aguardavam, toda semana eu atendia esses pacientes. Havia alguns funcionários se queixando de falta de rotatividade, pois não era seguro que o mesmo profissional atendesse vários pacientes de covid por vários turnos e dias seguidos, pois era muita exposição à carga viral.
Até que um dia ouvi uma conversa: “A técnica de enfermagem tal morreu”. Estava começando a morrer gente da equipe com a qual eu trabalhava. Enquanto fiz o estágio, morreram pelo menos duas, ou pelo menos foi as que eu soube.
2020 foi um ano difícil para todos, pois ainda não havia vacina e eu realmente não achava que eu fosse me vacinar antes de eu me formar. Eu acreditava que eu iria ter covid cedo ou tarde, mas que os EPIs ajudariam a diminuir a carga viral a que eu fosse exposta eventualmente. Estávamos todos juntos no mesmo barco, colegas da equipe morrendo e pacientes com covid desmaiando na unidade.
Mas quando você é exposto a isso todos os dias, não tem como ficar ansioso e nervoso diariamente, pois seria muito desgastante. Lembro de uma colega de equipe do estágio hospitalar (o estágio que fiz depois desse) que chorou quando ela soube que tinha ficado exposta por horas a um paciente com covid confirmada sem os EPIs adequados.
Eu acabei esse estágio em novembro de forma meio dramática. Devido à privatização de algumas unidades, vários funcionários foram demitidos. Muitas pessoas que eu conhecia e com quem estive durante aqueles meses foram mandados para fora e a unidade ficou um caos. Nos meus últimos dias de estágio estavam todos tristes.
Comecei o décimo semestre e o estágio hospitalar somente em janeiro, quando consegui vaga (pois havia dois colegas meus fazendo estágio de manhã e de tarde). Sobrou para mim o horário da manhã, então todos os dias eu tinha que levantar 5 horas da manhã. Isso não é novidade para mim, pois já fiz outros três estágios na faculdade em outros semestres nesse horário… complicado.
Solicitei uma vaga no BC (Bloco Cirúrgico). Afinal, em fevereiro de 2020 fiz estágio voluntário no CCA e em julho de 2019 fiz estágio voluntário no CME. Como eu já tinha um pouco de experiência nessa área, achei que era para lá que eu devia me encaminhar.
Novamente, eu não fazia ideia do que me aguardava. Achei que o número de cirurgias estava aumentando por causa da covid-19, pois inclusive havia duas salas de cirurgia específicas para pacientes com covid. Porém, as cirurgias eletivas estavam diminuindo e a SR (sala de recuperação) do BC virou uma UTI pós-covid. Na semana em que terminei o estágio, iam inclusive transformar uma sala de cirurgia em UTI.
Portanto, durante esse meu estágio também recebi um treinamento breve e básico em UTI (assisti uma bela aula com slides dada por uma das enfermeiras do BC) e tive contato com os pacientes da UTI pós-covid.
Às vezes um paciente da UTI pós-covid estava bem. Depois recebíamos a notícia de que ele piorou. E alguns morreram. Não era fácil de escutar. Algumas enfermeiras do BC tinham que cuidar dos pacientes da UTI e diminuiu o número de cirurgias para que elas recebessem treinamento para isso.
Quando chegava um paciente no bloco com covid confirmada para fazer cirurgia, uma luz vermelha se acendia e colocavam essa divisória e esse aviso:
Todos tinham que usar os face shields. O face shield também era obrigatório toda vez que eu estava presente no momento da intubação de um paciente. O papel do enfermeiro é estar presente e frequentemente auxiliar na intubação, então eu devo ter visto umas dezenas ou centenas de intubações durante esse estágio.
A novidade foi que dessa vez, na minha segunda semana de estágio, consegui me vacinar. No final de janeiro tomei a primeira dose da vacina AstraZeneca. Tomei a segunda dose há quase duas semanas.
Mesmo assim, mantive os mesmos cuidados. É verdade que durante meu estágio na Unidade Básica de Saúde eu não tirava a máscara nem mesmo para beber água. Nem após longas horas seguidas de trabalho. Pelo menos durante meu estágio hospitalar, já vacinada, eu bebia água, mas muito rápido, num local afastado, e logo colocava a máscara novamente.
Esqueci de dizer que no meu estágio na Atenção Básica eu e o enfermeiro que me acompanhou visitamos muitas casas de repouso para fazer o teste de PCR, que eu ajudava a fazer.
Claro, nesse texto estou tentando me focar mais nas coisas relacionadas à covid, pois durante esse estágio eu também fazia consultas de enfermagem, ficava na sala de curativos, fazia vacinas, etc. Devo ter feito dezenas ou centenas de vacinas, testes rápidos, exames preventivos, etc.
Já no estágio hospitalar que fiz esse ano, acompanhei mais algumas dezenas de cirurgias. Fiz dezenas de sondagens vesicais de demora.
Eu costumava fugir da sala de cirurgia cardíaca, pois a equipe de lá gostava muito de colocar a sala nessa temperatura.
Tivemos algumas polêmicas nesse período, como o fato de recebermos pacientes para cirurgia sem o teste de covid e no dia seguinte sabermos que o paciente que passou horas conosco na sala de cirurgia testou positivo. Isso acontecia com tanta frequência que em breve pacientes sem teste não entravam mais para as salas de cirurgia.
Por enquanto essa é a única foto que eu tenho em que eu apareço numa sala de cirurgia, tirada por um cirurgião que me marcou no Instagram. Não é comum que se tire fotos nas salas cirúrgicas, na verdade é bem raro. E quando tiram, o paciente não deve aparecer, como no caso dessa.
Até hoje, eu não falei muito sobre enfermagem na internet por várias razões. Uma delas é que, como eu gosto muito de escrever e contar coisas que acontecem, eu podia acabar falando coisas demais e nessa área temos sempre que prezar pela privacidade do paciente, evitar contar coisas sobre outros profissionais e evitar divulgar fotos de instituições, mencionar nomes ou coisas específicas, etc.
Mas agora que me formei, vou falar um pouco mais sobre o que aconteceu no passado e planos para o futuro, assuntos que eu planejo abordar num próximo post, em breve.
Apesar de tudo, acho maravilhoso e um privilégio ser uma enfermeira em tempos de pandemia. Muitos outros profissionais, como na área de limpeza, perderam a vida (em número muito maior, inclusive, do que médicos e enfermeiros). Então espero que nesse período possamos lembrar que não são apenas os profissionais da área da saúde que devem ser valorizados. Todas as profissões são importantes. Eu encomendei tantas coisas pelo correio, tantos livros, pedi comida por aplicativos. E continuei acompanhando pela internet os artistas que conseguiram continuar a produzir sua arte e que me deram forças e motivação para continuar.