Dilemas éticos: a prova de Deus
Algumas pessoas dizem que estamos nesse mundo para que Deus nos teste. Se você não acredita em Deus ou tem outra crença espiritual, pode dizer que estamos nesse mundo para que o diabo nos teste, para que os Deuses nos testem e variantes. O importante é que parece haver algum tipo de inteligência que quer nos botar à prova.
Por quê? Essa seria uma resposta possível e inteligente para o problema do sofrimento. No mínimo, uma solução elegante. E faz muito sentido.
Se você não acredita em Deus, em espíritos, em outros mundos e numa vida além dessa, por que acha que estamos vivos? A ciência nos responde “como” e não “por quê”.
Tudo bem, você pode dizer que os seres vivos surgiram aleatoriamente através da evolução, que se dá através de mutações, seleção natural e outros processos. Pode falar também da sobrevivência do mais apto.
Mas, como diz Richard Dawkins e outros cientistas, o “objetivo” do ser humano não é apenas passar adiante os genes, mas também memes. Ele dá até o exemplo do mártir cristão em seu livro “O Gene Egoísta” (já li vários livros do Dawkins e gosto muito, ao menos o que ele diz sobre ciência).
A religião cristã seria um mistério, porque alguns padres e monges fazem voto de castidade e morrem pela fé. Eles não passaram os genes adiante e alguns morreram cedo. Isso é realmente genial, pois mostra que o ser humano pode, de alguma forma, escapar de seu “destino” de apenas propagar a espécie e morrer. A religião, além de não focar somente na passagem dos genes adiante, faz com que seus adeptos deem a vida não necessariamente por uma ideia política que iria ajudar a melhorar a vida dos seres e ajudar na propagação da espécie. Eles dão a vida por… Deus! E morrer por ele não ajuda na espécie.
“O sangue dos mártires é a semente de novos cristãos” reza o adágio. No fundo, cada vez que um mártir morre, muitas outras pessoas se inspiram nessa morte e se tornam cristãs. Então, inconscientemente, você está gerando mais cristãos. Não necessariamente mais seres humanos, mas mais pessoas que morrem e passam a ideia adiante. Senão nesse mundo, no outro (uso o exemplo dos cristãos, mas há mártires ateus também, e de outras religiões).
Um dos motivos de eu amar tanto religião é que é uma das únicas coisas do mundo que te arranca completamente da gaiola que o ser humano está aprisionado pela sua parte animal, biológica.
Se você não é muito ligado em espiritualidade, provavelmente vai dizer que a coisa mais elevada que o ser humano pode fazer é salvar a vida de outra pessoa. Dirá que é muito bom ajudar os outros. Mas fora isso, pode ter prazeres e curtir o tempo que tem no mundo com as pessoas especiais para você, família, amigos e com o resto da humanidade, respeitando as diferenças.
Se você tem algum tipo de espiritualidade ou religião, é possível que diga a mesma coisa acima, mas acrescentará algo mais. E esse “algo mais” para mim faz toda a diferença.
Você irá concordar com a teoria da evolução, mas dirá que isso não significa que o destino, o propósito do ser humano nesse mundo é aleatório. Se você não acredita no mundo espiritual pode acreditar no amor e que ajudar os outros é certo. Mas aquele que acredita no mundo espiritual também dirá que esse amor e essa ajuda que queremos dar não é algo que foi aleatoriamente gerado, um mero artifício do cérebro para nos ajudar na sobrevivência e na propagação da espécie.
Lá no meio daquele processo biológico, no meio do corpo orgânico, algo misterioso surgiu. Os religiosos geralmente dizem que esse algo veio antes, que é Deus.
Você pode alegar que irá inventar seu sentido para estar vivo. Mas a religião geralmente diz que ele já está em você, que é esse amor que você sente, essa sensação de que ajudar é certo, que é um tipo de destino.
Há religiões como o budismo que são mais diretas. Buda diz: não importa como começou. Importa que estamos aqui agora e temos que dar um jeito nisso.
Todas as religiões parecem concordar que o que te leva para o céu é agir bem. E também há a questão da fé aliada aos atos. Quem não tem religião também costuma concordar que ajudar é o melhor a ser feito. Não entrarei aqui na questão complicada das religiões indianas sobre iluminação.
Dizem que Deus permite a presença do diabo para nos testar. Deus permitiu o livre-arbítrio e o mal se tornou possível. Deus não desejou o mal, mas permitiu sua existência para nos testar.
Não é que Deus seja ruim por permitir o mal. Ele seria pior se não permitisse o livre-arbítrio para fazer o mal: se fôssemos meros fantoches seus, que não fossem capazes de escolher o mal porque são “obrigados” a fazer o bem. Um bem que é feito por obrigação e sem escolha não é realmente um bem.
“Há dois caminhos, um de vida e um de morte, e há uma grande diferença entre os dois”
(Didaquê)
Então basicamente estamos vivos para escolher o caminho do bem e não do mal. Esses caminhos nem sempre são claros, mas geralmente são.
Dilemas éticos são esses momentos em que não enxergamos o bem e o mal com clareza. Por exemplo, seu pai está doente, vai morrer em poucas horas, você não tem dinheiro e sua única opção é roubar um remédio. Você rouba? Um nazista te pergunta se há judeus escondidos no seu porão. Você fala a verdade ou mente? (você mente porque mentir é menos pior do que se envolver indiretamente no ato de matar?).
Normalmente nesses casos perguntamos mais detalhes para tomar uma decisão. Por exemplo, se eu roubar o remédio outra pessoa vai morrer se ficar sem ele? Na vida real nem sempre temos os detalhes e o tempo. Como no caso do trem que vai atropelar a sua mãe ou dez pessoas. Qual caminho do trem você escolhe?
Segundo os religiosos, Deus entende que se você passa por um dilema ético houve um obscurecimento na sua capacidade de julgar bem e mal e por isso no outro mundo você será julgado com menos rigor.
Mas na maior parte das vezes fica bem claro qual escolha é boa ou ruim. Ou se você tem duas escolhas boas, qual é a boa e qual é a ótima. Ou duas escolhas ruins: qual é a ruim e qual é a pior.
Se você nasce no meio de uma guerra (ou quem sabe se está vivo durante uma pandemia, como agora) vai ter mais oportunidades tanto de fazer o bem quanto o mal. Isso é bom ou ruim?
Eu tendo a pensar que embora não desejemos situações de sofrimento, ao menos elas nos botam em perspectiva para confrontar nossas convicções e nossas escolhas.
Se por acaso nascemos numa época de paz, se todas as escolhas que podemos fazer é se daremos bom dia para o vizinho ou se escolhemos ovo ou pão para o café da manhã, é bom lembrar que nós também temos a escolha de buscar os dilemas éticos caso eles não nos encontrem naturalmente.
Quando você vai para um mosteiro e se afasta das distrações da vida normal, como filmes, músicas, etc, se confronta com seu próprio silêncio interior, tédio e demônios. No mosteiro eles chamam de “demônio do meio-dia”.
É como fazer jejuns e penitências, provocando situações de dificuldade para treinar numa simulação, para te preparar quando for a coisa real. Claro, você também pode optar por se meter numa situação real difícil logo de cara.
O que quero dizer é que não escolhemos se nascemos numa época de paz ou de guerra, pobres ou ricos, se precisaremos fazer escolhas morais difíceis ou apenas escolhas fáceis e leves.
Porém, nós não precisamos nos aprisionar e acomodar na situação atual. A resposta para isso é que nós podemos nos mover para outra situação menos desejável, embora seja natural do ser humano apenas buscar o mais fácil. E por que alguém faria isso? Para ser colocado à prova.
Deus precisa te testar para saber se você vai para o céu ou para o inferno. Mas alguma vez você já provou para Deus sua determinação? Como alguém apaixonado, já fez sua prova de amor?
Talvez você diga: olha, até hoje na minha vida ainda não surgiu a ocasião, mas se eu visse uma pessoa se afogando no rio e eu estivesse passando, eu certamente iria me jogar para salvá-la mesmo que eu morresse.
Mas cadê essa pessoa e esse rio? Vamos apenas esperar sentados que por acaso isso aconteça? Nós temos um corpo e um livre-arbítrio para nós mesmos buscarmos as situações difíceis, os dilemas éticos, para nós mesmos nos colocarmos à prova e clamarmos para Deus: “Eu estou fazendo isso por amor a ti! Para te dar a maior prova de amor! Para te ofertar a lua e as estrelas!”
Então, finalmente, você poderá mostrar para Deus o quanto o ama. Claro, há muitas formas de fazer isso. Uma delas é aumentando sua frequência e duração de orações. E outra é através de muitos atos nesse mundo.
Deus valoriza tanto as pequenas quanto as grandes coisas. Santa Teresinha ficou satisfeita em ser apenas uma pequena flor escondida para Deus, já que ela era mulher e por isso naquela época não podia ser missionária para ajudar os pobres, já que as mulheres consagradas só tinham autorização de ficar dentro de mosteiros, como Santa Clara (as famosas santas da época que ajudaram os pobres tiveram que deixar a vida consagrada de lado, como Santa Rosa de Lima). Mas essa história teve uma reviravolta, pois Santa Teresa de Calcutá nasceu no século XX e adotou o nome de Teresinha, honrando seu mais sagrado desejo. Porém, ambas foram igualmente grandes, de jeitos diferentes!
Antigamente (mas ainda em alguns lugares de hoje) se você nascesse mulher, negro ou escravo, havia poucas opções de coisas “grandiosas” para fazer e honrar Deus, como muitos homens brancos tinham liberdade para fazer. Felizmente estamos no século XXI e muitos de nós temos mais opções agora. Faremos bem em aproveitar. Em compensação, hoje temos mais distrações para nos desviar do caminho, ou ao menos nos atrasar.
Se você consulta sua consciência e ainda não se sente satisfeito com as provas de amor que ofertou para Deus até agora, basta buscar mais. E não aguardar uma “chance” para ser herói, santo ou mártir. Ela não necessariamente vai cair do céu. E se o céu cai ou não na sua cabeça por acaso, resta a questão se você considera isso um grande azar ou uma grande sorte, e se aquele céu te aproximará de Deus ou te afastará. É você que faz o seu caminho.
Hoje em dia muitos de nós buscamos uma via neutra: se eu não ferir ninguém (via negativa) posso viver com meus pequenos egoísmos e caprichos. Mas fazer o bem não é apenas evitar o mal. Também devemos buscar a via positiva, de fazer algo ativamente. Não só dizer “não tenho preconceito contra negros” e continuar seguindo sua vida sem fazer nada para ajudar na causa dos negros. E isso vale para muitas outras coisas (ajudar os pobres, ajudar no direito de outras minorias: mulheres, imigrantes, LGBT, etc).
É disso que eu falo quando menciono a importância de nos colocar à prova. Ir atrás da prova e não esperar que ela surja. Somos nós que fazemos a prova. É claro que não podemos lutar por todas as causas do mundo ao mesmo tempo. É por isso que existe a missão individual para cada um de nós. Escolhemos apenas uma ou um punhado delas que ressoe em nós como um chamado. E, de nossa forma totalmente particular, fazemos isso. Sem julgar o caminho dos outros.
Esse é o “chamado”, a “missão”, ou como queira chamar. De certa forma, somos nós que escolhemos. Mas de outro ponto de vista, foi Deus que escolheu por nós: se sentimos aquele fogo no peito para um caminho, é o fogo de Deus dizendo: “sim, é isso!” e não temos mais dúvida.
Dúvidas, é claro, surgem em qualquer caminho (que chamam de o diabo testando nossa determinação), que é o medo. Mas enquanto o fogo continuar queimando, que o medo venha e sejamos convidados para a grande batalha.