Deus e Morte
Eu já escrevi tantos textos sobre Deus que talvez esteja ficando cansativo, haha! Mas para mim esse é um tema atemporal, que não envelhece. É sempre atual.
Primeiro vou deixar algo claro. Quando eu escrevo um texto sobre Deus, minha intenção não é convencer ninguém a acreditar em Deus. Há muitos ateístas que possuem motivos totalmente compreensivos para não crer em Deus. Há também quem tenha uma visão panteísta de Deus, que acredita em vários deuses, numa Deusa, que acredita em tudo e nada ao mesmo tempo, enfim. As possibilidades são infinitas.
Obviamente, como diria Wittgenstein, há um problema de linguagem. As palavras nos limitam quando tentamos explicar Deus. Mas eu gosto de palavras, acho que podemos fazer várias coisas divertidas com elas.
Eu simpatizo com a visão cristã, islâmica e judaica de Deus por um motivo muito simples: mais da metade da população mundial acredita nesse Deus. Eu sei que o público que lê os meus textos nem sempre concorda com essa visão de Deus. No entanto, eu já tendo a escrever textos muito grandes e se toda vez que eu tivesse que falar de Deus eu precisasse escrever essa introdução e tentar explicar todos os conceitos de Deus existentes ficaria muito cansativo.
Antigamente quando eu falava de Deus eu recorria muito à filosofia e à teologia. Você poderá encontrar isso nos meus textos antigos. Se quiser saber minha opinião sobre os argumentos clássicos da filosofia e da teologia sobre a existência de Deus, citações dos autores consagrados, etc, você pode procurar os vários textos aqui mesmo no Medium que escrevi exatamente com essa visão.
No entanto, conforme os anos passaram, fui tendo uma visão de Deus mais “prática”. Segundo muitos autores, principalmente cristãos, o melhor motivo para acreditar em Deus é simplesmente porque essa é a verdade. Acreditar em Deus por motivos “práticos” (porque rezar “ajuda” com paz, conforto, etc) não seria muito honesto, pois você estaria mentindo para si mesmo por conveniência. Até Bertrand Russell, famoso filósofo ateísta, concorda com isso. Ele também acha trapaça que os cristãos sempre vão tirar algum argumento mágico da cartola só para continuar defendendo Deus.
Mas eu realmente não concordo com essa visão de ateístas como sinceros e teístas como mentirosos. Na verdade, conforme observo, a crença em Deus tem muita relação com fatores econômicos (vamos deixar os fatores políticos de fora, como a influência do socialismo no ateísmo, para não alongarmos a discussão).
Como eu já repeti várias vezes nos meus textos (e eu repito isso porque já li esse argumento em outros lugares), a maior parte dos famosos autores ateístas são homens brancos de classe média alta de países ocidentais. “E daí?” você me pergunta. E daí que isso faz toda a diferença para a discussão.
Não faz muito tempo que li o livro “Infiel” de Ayan Hirsi Ali. Fiz a resenha dele aqui. Ela é o exemplo de uma mulher negra africana que era muçulmana e se tornou ateísta. Também já li alguns autores nigerianos que são ateístas. Mas em geral esses autores africanos ateístas são de classe média ou classe média alta (alguns ganhadores do prêmio Nobel, inclusive) e já viveram em países ocidentais. A própria Ayan se tornou ateísta após viver anos na Holanda.
Como eu já li vários livros escritos por ateístas, sei que eles consideram o ateísmo uma poderosa ferramenta para lutar contra coisas como: preconceitos contra LGBTQIA+, casamentos forçados, casamento infantil, mutilação genital feminina, falta de direitos das mulheres, etc. Religiões como Islã, cristianismo e hinduísmo muitas vezes usam dogmas religiosos para oprimir as mulheres e outras minorias.
Embora eu concorde com o lado sombrio de muitas religiões, eu sou uma otimista e ainda acho que religiões, apesar de tudo, trazem muitas coisas boas também. Eu geralmente cito a fundação de hospitais, escolas e outras obras de caridade, mas não só isso. As religiões também trazem esperança e força para as pessoas em situações dramáticas, como dor intensa, doença e morte.
Muitas vezes é difícil separar o conceito de Deus das religiões. “Então basta apenas acreditar em Deus sem ter religião, certo?” Mas não é tão simples. Ao redor do mundo as pessoas estão reunidas em comunidades religiosas e a crença em comum une as pessoas. As religiões também estão cercadas de elementos culturais e costumes importantes para as comunidades.
Eu acredito em Deus não somente porque acho que faz sentido do ponto de vista filosófico e teológico. Sim, depois de ler tantos livros sobre isso, eu realmente me convenci que faz sentido mesmo. No entanto, não é apenas nisso que me apoio. As próprias religiões dizem que somente a razão não basta. Ela é apenas um dos elementos para se apoiar.
De acordo com a história tradicional, Buda iniciou sua jornada porque descobriu a existência da doença, da velhice e da morte. Talvez, se fôssemos imortais, eternamente vigorosos e saudáveis, não precisássemos tanto de Deus. Sim, ainda precisaríamos da ajuda de Deus para enfrentar dores físicas e emocionais. No entanto, a morte costuma ser o evento decisivo que traz Deus para o palco.
Então pra mim faz toda diferença lembrar que a maior parte dos famosos autores ateístas são homens brancos de classe média de países ocidentais. Na verdade, quanto mais jovem, saudável e rico você for, maior a probabilidade de ser ateísta. Hermann Hesse menciona algo parecido em “O Jogo das Contas de Vidro” (meu livro favorito). É um livro em que ele faz as pazes com o cristianismo, que ele havia criticado na juventude. É uma fase mais madura do autor. Eu leio o trecho do livro aqui.
Inclusive, estou começando a ler autobiografias de negros escravizados. Parece que, em geral, mesmo depois de se libertarem da escravidão, as pessoas continuam a acreditar em Deus. Um exemplo é Frederick Douglass. Não faz muito tempo que li a autobiografia dele. Embora ele reconheça que muitos senhores de escravos acreditam em Deus e isso não diminuiu a crueldade eles, o próprio Frederick Douglass não deixa de acreditar. Até hoje, muitos negros americanos são evangélicos.
Por isso, há quem diga que ser ateísta é, de certa forma, uma postura elitista. Você talvez seja ateísta porque tem o privilégio de ser. Porque talvez você não esteja morrendo sem atendimento médico ou vendo um monte de gente morrendo do seu lado. Se você tem câncer ou alguma doença grave num país ocidental, é maior a probabilidade de ter atendimento médico e, ao menos, ter uma morte digna.
A morte é um evento assustador para todos, é claro, não importa o seu país de origem, sua idade ou classe social. No entanto, ela é particularmente assustadora em lugares do mundo que estão em guerra, onde não existe sistema de saúde público, em que apenas cerca de 1% da população foi vacinada para covid-19 e existem poucos hospitais.
Se você tem acesso a um hospital, clínica ou farmácia, pode ao menos, talvez, ter acesso a analgésicos, morfina ou o mínimo de dignidade humana na morte. Ter os lençóis da cama trocados, ter acesso a um banheiro ou comadre.
Sim, todas as pessoas morrem. Mas elas não morrem de forma igual. Dizem que na hora da morte todos são iguais, mas isso não é verdade.
Alguns ateístas, quando ficam mais velhos, talvez desenvolvam alguma forma de fé, com a proximidade da morte. Ou não. Muitos ateístas idosos continuam a ser ateístas, talvez porque eles tenham acesso a hospitais e sistema de saúde se estiverem com uma doença ou perto da morte.
Não estou dizendo que isso é uma regra. É claro que há exceções. Uma mulher negra, pobre, com dez filhos, de uma cidade sem hospitais do interior de um país muito pobre talvez não acredite em Deus e pode ter bons motivos para isso.
Porém, quanto mais sofrimento, doença, morte e pobreza a pessoa experimenta na vida, maior a probabilidade de ela acreditar em Deus. E isso faz todo sentido. Quando alguém está numa situação dramática e pensa no suicídio como saída para sua miséria, o que ainda pode segurá-la nessa vida? Talvez a esperança de um Deus bom e do outro mundo.
Algumas pessoas usam isso como argumento exatamente para defender que pessoas inteligentes são ateístas, já que quanto mais rico e com maior educação formal há grandes chances de alguém ser ateísta. No entanto, eu penso diferente: em geral, o ateísmo pode sugerir o privilégio que a pessoa tem. O privilégio de ser homem, de ser branco, de ser de classe média, de morar numa cidade com hospitais.
Eu, como enfermeira, já atendi pacientes com doenças em estágio terminal, muitos que inclusive nem sabiam ler e escrever. No entanto, quando eu parava para conversar com eles e saber como estavam se sentindo, muitos diziam que tinham esperanças, porque acreditavam em Deus. Então eles oravam para Deus, pedindo para melhorar, e depositavam as esperanças nele. E se não conseguissem melhorar, sabiam que havia o céu, o outro mundo. Então o que quer que acontecesse, vida ou morte, havia esperança.
Essas conversas sempre me inspiravam e me mostravam, novamente, o imenso poder da religião e da crença em Deus.
Inclusive, entre os profissionais da área da saúde, a crença em Deus costuma ser maior do que a da população em geral. Isso porque muitos lidam com a morte. É claro que se você for mulher, negra, pobre e ainda da área da saúde, a probabilidade de você acreditar em Deus aumenta. Se você for homem, branco, de classe média alta, talvez não acredite em Deus.
Embora eu seja da área da saúde, não foi a enfermagem que me fez acreditar em Deus, já que desde a primeira vez que entrei no curso de enfermagem, aos 19 anos, eu entrei exatamente por influência do cristianismo. Então às vezes é o oposto: alguém entra na área da saúde porque já acredita em Deus. Talvez porque quer ajudar os outros, ou porque a proximidade com a morte pode aumentar sua conexão com Deus e com a busca do sentido da vida.
Desde criança eu comecei a me interessar pela questão da morte. Eu queria entender o que raios é a morte. Eu sentia muito medo e queria respostas. Sentia que se resolvesse a questão do maior medo do ser humano, seguir na vida com os outros medos seria mais fácil.
Eu entendo que o budismo traz respostas para muita gente, mas para mim não trouxe conforto para a questão da morte. Apenas meditar, sem orações, era ótimo para atingir estados alterados de consciência. Mas quando eu sentia dor nem sempre conseguia me concentrar para atingir esses estados. A meditação não me fornecia uma solução rápida.
A oração foi a resposta para mim. Mesmo com muita dor, quando até orar era difícil, eu podia dizer algo rápido como “Deus, me ajude” ou algo assim. E isso já me enchia de esperanças. Ou quando eu não conseguia falar, era só mentalizar a oração.
Toda mulher em idade fértil tem uma experiência todo mês de cólicas e grande dor. E em muitas vezes foram esses momentos que eu percebi como a fé em Deus e a oração eram eficientes para eu atravessar esse sofrimento com um pouco de paz.
Eu sei que no futuro irei atravessar momentos de doença, grande dor e ter que lidar com minha própria morte. É com a fé em Deus e as orações que eu tenho ferramentas poderosas para seguir em frente.
Porém, como profissional de saúde, não é só com minha própria morte e com a morte de amigos e familiares que terei que lidar. Eu terei que lidar com a morte de pacientes. Então eu simplesmente preciso de Deus.
É mais fácil ser ateísta quanto menos mortes você precisa enfrentar. E no mundo ocidental é comum que se esconda as mortes. A morte pode ser romantizada na literatura, mas quando uma pessoa está morrendo no hospital é diferente.
Eu, como pessoa não negra e de classe média de um país do ocidente, fui, na maior parte da minha vida, poupada de eventos envolvendo muitas mortes. No entanto, sei que isso vai mudar no futuro. Isso muda para todos com o avanço da idade, mas vai mudar principalmente no meu caso, como profissional de saúde e talvez no futuro fazendo trabalho humanitário.
Por isso, desde a adolescência tenho me esforçado para aumentar meu relacionamento com Deus e minha fé. Isso faz diferença para mim no presente e fará ainda mais diferença no futuro. Não é algo que se consegue do dia para a noite, mas é um trabalho de toda vida.
Independente de no futuro eu ser cristã, muçulmana ou não ter uma religião específica, imagino que sempre vou acreditar em Deus e orar. Isso pra mim é a base de tudo, é meu chão, é minha esperança quando todo o resto desmorona.
É mais fácil não acreditar em Deus se quando as coisas estão ruins você tem algum refúgio, nem que seja a Netflix (acho que já escrevi um texto aqui no Medium chamado “Por que acreditar em Deus se tenho Netflix?” Hahaha!). Mas e se você não tem internet, água ou eletricidade? Se não tem morfina, se só tem a dor insuportável e solidão?
Alguns não acreditam em Deus por orgulho, para provar que são fortes, que conseguem aguentar o sofrimento sem Deus. E outros não acreditam em Deus porque acham que simplesmente não faz sentido. A educação materialista ocidental contemporânea deixou claro que Deus não existe. Ou acham que Deus e religiões estão associados a preconceitos e coisas ruins.
Eu respeito totalmente se você consegue passar por todo o sofrimento da vida sem a crença em Deus. Eu não consigo e sei que muita gente não consegue.
Eu tampouco estou dizendo que os sofrimentos da classe média ocidental são irrelevantes. Pelo contrário, muitos se sentem oprimidos pela competição, capitalismo e materialismo. E encontram em Deus uma saída para esses outros deuses.
Além do mais, quando preciso segurar a mão de um paciente, orar ou falar com ele sobre Deus, não quero fingir. Pois isso é totalmente comum. Não quero que seja apenas teatro ou respeito pelas crenças dele. Quero estar com ele, totalmente conectada, orando junto e realmente acreditando.
É difícil encontrar sentido na morte, mas ela faz muito mais sentido quando acredito que há um Deus bom e um mundo depois desse. O sofrimento de tanta gente nesse mundo não é mais um acidente. Sim, é horrível que exista a dor e devemos fazer de tudo para diminuí-la. Mas e quanto à dor que não conseguimos fazer ir embora? Então Deus e a esperança no outro mundo podem santificá-la.
Você tem todo o direito de ter suas próprias crenças sobre Deus e a morte. Eu não sei de tudo e ainda tenho muito mais a aprender sobre isso no futuro. Porém, escrevi esse texto hoje com meu entendimento atual. As pessoas têm experiências diferentes e eu respeito isso. Mas estou grata pelos aprendizados que tive até hoje.
Sim, eu ainda tenho medo da morte e acho que sempre terei. O medo da morte é um instinto natural e saudável para nos proteger, assim como a ansiedade e outras coisas que não gostamos. No entanto, para que o medo da morte não nos esmague e nos derrube totalmente, Deus pode ser a chave que falta para dar um pouco de paz ao coração. O medo ainda continua, mas também há aquela sensação suave que faz o coração bater forte. Aquele misto de medo e fascínio, com uma lembrança querida: “Ah… chegou o momento do meu encontro com Deus no outro mundo!”. E se torna também algo para aguardar, em vez do terror completo do desconhecido.
Mesmo quem não acredita em Deus pode acreditar no amor e em outras coisas que dão paz no momento da morte. E tudo bem. Mas acho importante todos trabalharem a espiritualidade de alguma forma para ter algo em que se apoiar nesses momentos.