Cristianismo e Islamismo: duas religiões fascinantes
Um dos motivos principais que explica meu grande interesse pelo cristianismo e islamismo é que as duas são as religiões com os maiores números de praticantes atualmente. Na verdade, essas duas estiveram entre as maiores religiões do mundo por séculos. Elas moldaram o mundo, no Ocidente e no Oriente, e o transformam até hoje.
Se considerarmos essas estatísticas de 2010, ao somarmos o número de cristãos e muçulmanos temos 54,7% da população mundial. Estima-se que no futuro o número de muçulmanos no mundo ultrapassará o de cristãos.
Isso significa que metade das pessoas vivas hoje são ou cristãs ou muçulmanas. É algo extremamente significativo. Para pessoas que não gostam de religião ou consideram-nas como “um atraso” é preciso levar essa questão em conta: nós achamos mesmo que metade da população é realmente estúpida ou ignorante? Somos tão arrogantes assim? Ou pior: achamos que uma parte enorme de nossos antepassados eram burros, incluindo alguns de nossos maiores filósofos e cientistas da Europa e do Oriente Médio.
Eu uso a expressão “pessoas vivas” devido à democracia dos mortos de Chesterton, um dos conceitos mais inteligentes com os quais já me deparei. Para mostrar como a ideia de que Deus existe é forte e tem uma enorme probabilidade de ser verdadeira, ele propôs uma votação: se todas as pessoas vivas hoje votassem, é possível que mais de, digamos, 90% alegasse acreditar em alguma forma de divindade (seja monoteísta, politeísta, panteísta, etc). Porém, e se fizéssemos essa votação entre todas as pessoas que já viveram, de todos os países, culturas e civilizações, vivas e mortas? É possível que uns 99% votasse que Deus existe.
Em alguns países e em algumas épocas pessoas cometem loucuras em nome de ideais e acreditam em ideias absurdas. Porém, é extremamente improvável que a maior parte das pessoas que já existiram, de diferentes culturas e criações, em todos os tempos (sendo que muitas não tiveram contato umas com as outras), se enganassem ao mesmo tempo!
Sendo assim, com base em lógica simples, estatística e a esperança e o otimismo de que “mais cabeças pensam melhor do que uma” (no caso, a democracia dos mortos que defende que Deus existe em oposição à aristocracia dos vivos que defende que Deus não existe), concluiríamos que a ideia de que Deus existe é, no mínimo, razoável; ou seja, é algo em conformidade com a razão. Não é um pensamento meramente irracional ou supersticioso.
Já devo ter citado esse trecho do clássico “Ortodoxia” de Chesterton pelo menos umas três vezes nos meus textos, mas aqui vai de novo para quem ainda não leu:
“Nunca pude entender onde os homens foram buscar a ideia de que a democracia se opõe, de certo modo, à tradição. É evidente que a tradição é somente a democracia projetada através dos tempos. É acreditar no consenso de vozes humanas, em vez de acreditar em qualquer documento arbitrário ou isolado. O homem que cita um historiador alemão em oposição à tradição da Igreja Católica, por exemplo, está apelando implicitamente para a aristocracia, pois apela para a superioridade de um perito contra a extraordinária autoridade de uma multidão. É perfeitamente compreensível o motivo pelo qual uma lenda é tratada com mais respeito — e assim deve ser — do que um livro de história. A lenda é, geralmente, criada pela maioria das pessoas sãs da cidade, ao passo que o livro é, geralmente, escrito pelo único homem louco dessa mesma cidade. […] Se damos tanta importância à opinião dos homens comuns quando se trata de assuntos cotidianos, não podemos desprezar essa mesma opinião quando se trata da história ou de fábula. A tradição pode ser definida como uma extensão do direito de voto, pois significa, apenas, que concedemos o voto às mais obscuras de todas as classes, ou seja, a dos nossos antepassados. É a democracia dos mortos. A tradição se recusa a submeter-se à pequena e arrogante oligarquia daqueles que parecem estar por aí meramente de passagem”
Esse é um dos argumentos mais importantes que sugerem ser razoável confiar no cristianismo em geral e no catolicismo (ou cristianismo ortodoxo) em particular: pois, como foi dito antes, teólogos, filósofos e cientistas específicos e que vivem em épocas específicas (pois somos moldados pelas crenças, loucuras e preconceitos da época e lugar em que vivemos) podem se enganar. Mas será que uma religião como o cristianismo que já tem dois mil anos de história e é seguida por um número tão imenso de pessoas, que formou tantos santos, pode facilmente se enganar? E será que uma religião como o islamismo, com seus quase 1500 anos de história, pode ser tão absurda quanto alguns pensam?
Disse Erasmo de Rotterdam a Lutero, em defesa do catolicismo:
“Um peso maior deveria ser atribuído aos juízos prévios de tantos homens instruídos, de tantos ortodoxos, de tantos santos, de tantos mártires, de tantos teólogos antigos e recentes, de tantas universidades, de tantos concílios, de tantos bispos e papas — ou, em vez disso, confiar no juízo particular desse ou daquele indivíduo”
O cristianismo e o islamismo juntos são responsáveis pelo maior número de organizações humanitárias, mas alguém pode acrescentar: sim, é óbvio, se juntos eles formam mais da metade da população mundial, seria lógico adivinhar que mais da metade das pessoas vão dar mais da metade das doações para caridade. Mas não é assim tão evidente, quando sabemos que 1% da população mundial detém a mesma riqueza dos 99% restantes.
O fato de geralmente haver mais religiosos que fazem caridade do que ateus (fato que é confirmado por um famoso ateu chamado Paolo Flores d’Arcais, que já debateu com o Papa Bento XVI), nos sugere que algo nas religiões pode realmente nos estimular a sermos mais compassivos. Isso nos instiga a pensar que termos uma postura pragmática de ajudar os outros sem acreditar em Deus pode, de alguma forma, esfriar o fervor do mártir que morre “em nome de Deus” e se não existe mais pessoas sofrendo ao seu redor ele baixa a guarda e se permite alguns prazeres. O monge clássico nunca baixa sua guarda, pois “Vosso adversário, o demônio, anda ao redor de vós como o leão que ruge, buscando a quem devorar” (1 Pedro 5:8). É a crença de que existe uma origem e um propósito para o sofrimento humano na terra, não sendo mero fruto de estupidez humana. É a humildade de admitir que o ser humano não é forte o bastante nem para salvar o mundo e nem para destruir o mundo. Há anjos e demônios, há um Deus guardando o universo e a fala clássica de Santo Inácio de Loyola:
“Ore como se tudo dependesse de Deus e trabalhe como se tudo dependesse de você”
É razoável pensar que a maior parte dos cristãos e muçulmanos não se tornaram adeptos dessas religiões apenas por conversões forçadas e por tradição. Uma enorme parte dos cristãos e muçulmanos de hoje vivem em países democráticos e possuem idade e educação suficiente para optar seguir uma religião de livre e espontânea vontade e com total consciência do que estão fazendo.
O argumento de que tanta gente é cristã e muçulmana apenas porque foram educadas naquela religião e sofreram lavagem cerebral é tão fraco quanto o argumento de que você necessariamente deve seguir a opinião dos seus pais e da sua sociedade em relação a qualquer coisa e que é impossível escapar delas.
A verdade, que muitos não querem admitir, é que muita gente de grande educação e níveis socioeconômicos se convertem ao islamismo e ao cristianismo, inclusive já em idade adulta. É extremamente arrogante acreditar que você é uma pessoa privilegiada que sacou a grande enganação que é as religiões, enquanto os pobres tolos ainda seguem velhas superstições e histórias da carochinha. Em geral, aqueles que afirmam isso possuem pouquíssimo ou nenhum entendimento de teologia e nunca estudaram a fundo nem a Bíblia e nem o Alcorão, pegando trechos totalmente fora de contexto para provar suas opiniões.
Por exemplo, muito menos de 1% dos muçulmanos apoiam algum tipo de terrorismo. Uma enorme parte dos muçulmanos contribuem com ações de caridade, apoiam os direitos das mulheres (como fez o próprio Maomé em sua época) e, como diz Reza Aslan em seu livro “No god, but God: The Origins, Evolution and Future of Islam”, os países islâmicos já geraram mais mulheres presidentes e primeiras-ministras do que em toda a Europa e América do Norte.
O cristianismo também foi muito importante para os direitos das mulheres desde sua fundação. Jesus conversava com muitas mulheres e vários nomes femininos de liderança são citados nas cartas paulinas. Enquanto na Idade Média a única opção de muitas mulheres era casar e cuidar dos filhos, com o cristianismo elas tinham a opção de entrar em mosteiros e assim ter maior liberdade de se dedicar aos estudos, como foi o caso de Hildegarda de Bingen e Heloísa de Argenteuil.
Outro trecho do livro de Chesterton que já citei em outros textos meus:
“Alguns céticos escreveram que o grande crime do Cristianismo tinha sido o seu ataque contra a família. O Cristianismo arrastava as mulheres para a solidão e para a vida contemplativa de um mosteiro, longe de seus lares e de seus filhos. Mas logo outros céticos (ligeiramente mais avançados) vinham dizer que o grande crime do Cristianismo era forçar-nos ao casamento e à constituição da família, condenando as mulheres ao duro trabalho do lar e dos filhos, proibindo-lhes a solidão e a vida meditativa. As acusações eram, na verdade, contraditórias. Dizia-se, ainda, que algumas palavras das Epístolas ou do Rito do Matrimônio revelavam desprezo pelo intelecto das mulheres. No entanto, concluí que os próprios antricristãos sentiam desprezo pelo intelecto das mulheres, porque seu grande desdém pela Igreja no continente era devido ao fato de afirmarem que ‘só as mulheres’ a frequentavam. Outras vezes, o Cristianismo era censurado por seus trajes indigentes e pobres, por seu burel e suas ervilhas secas. Entretanto, no momento seguinte, o Cristianismo era censurado por sua pompa e ritualismo, seus relicários de pórfiro e suas vestes de ouro. Acusavam-no por ser demasiadamente humilde e por ser demasiadamente pomposo”.
Essa questão da “simultânea riqueza e pobreza do cristianismo” é no mínimo interessante. Desde seus primórdios temos registros de que os gregos e os romanos se impressionavam com a caridade cristã: com o fato de eles dividirem todos os bens em comum e tantos doarem todo o seu dinheiro para os pobres. Por isso, as primeiras gerações a começarem a seguir o cristianismo foram realmente os pobres que se sentiam oprimidos por elementos de culturas e outras religiões vigentes. De fato, a maior parte dos famosos pensadores gregos e romanos que lemos hoje provinham da aristocracia, em oposição ao cristianismo, que gerava membros provindos de todas as classes sociais. Alguns de seus intelectuais e papas mais conhecidos nasceram em pobres famílias de pastores.
Na verdade, existem muitas histórias impressionantes ao longo da Idade Média de príncipes, princesas, reis e rainhas que doaram tudo para os pobres e se tornaram monges, monjas ou freiras. São histórias que parecem ter saído de contos de fadas, mas aconteceram de verdade. O cristianismo foi sempre uma religião impressionante por existir num mundo que valoriza tanto o dinheiro, a fama, o status e o poder. Podemos até fazer um paralelo com príncipes como Siddharta Gautama e Vardhamana, que largaram tudo e se tornaram respectivamente Buda e Mahavira, no budismo e jainismo.
E o islamismo não foi diferente, por ter enfatizado a caridade para pobres, órfãos e viúvas desde o princípio, assim como o cristianismo. Maomé revolucionou a sociedade da época com sua defesa dos mais pobres e das mulheres. Ele era contra guerras ou violência e só defendia guerras como defesa. O conceito original de Jihad não era guerra santa, mas a jornada espiritual para Deus, que deve ser realizada no interior de cada um (algo como a batalha descrita no Bhagavad Gita).
E por que há tanto preconceito contra o islamismo hoje? Reza Aslan diz que as pessoas estão em busca de um bode expiatório. É muito mais fácil colocar a culpa no inimigo com cultura diferente e afirmar que são eles os violentos e com cultura primitiva e rudimentar do que admitir os atuais fracassos do sistema secularista ocidental.
Existem violações dos direitos humanos em todos os países, em particular em muitos países africanos e asiáticos, mas nem todos eles são muçulmanos. É comum apontar a violência que ocorre em países muçulmanos e dizer que a culpa é da religião. E em países com outras religiões que ocorrem violências semelhantes ou até piores, nem se questiona se a religião tem relação com isso; diz-se que é principalmente a pobreza que gera essa violência.
É comum citar ataques terroristas ou a velha Inquisição cristã como exemplos de violência. Como se a religião causasse ou aumentasse tais atos e como se eles inexistissem em países laicos!
Voltando a comentar o trecho do livro do Chesterton, muita gente não gosta de cristianismo porque acha que é “coisa de pobre”, achando que as pessoas apenas se tornam cristãs porque são ignorantes e sem educação. Elas, ao contrário, citam suas conquistas acadêmicas e conhecimentos científicos para “provar” que Deus não existe ou que o cristianismo ou o islamismo são absurdos e um atraso. Os jovens de hoje, obviamente, desejando se identificar com as ideias, a cultura e os valores das pessoas “inteligentes e de alto nível socioeconômico” acabam por abraçar ideias seculares e materialistas.
Porém, é contraditório e irônico o quanto o cristianismo é criticado exatamente pelo argumento oposto. Enquanto alguns detestam o cristianismo alegando que é uma religião das classes populares e incultas (e elas mesmas não querem ser consideradas pobres e incultas, então se afastam dessa religião), outros o detestam porque alegam que o cristianismo é uma religião conservadora dos ricos ocidentais que defendem valores tradicionais e retrógrados para manter seus privilégios.
A verdade é que, embora a mídia costume retratar os cristãos como políticos ricos e retrógrados, a maior parte dos cristãos ainda é e sempre foi constituída de pessoas muito pobres em sua maioria, assim como é o caso do islamismo.
Os refugiados de países árabes e não árabes provenientes do Oriente Médio e da África, uma parte significativa deles muçulmanos, geralmente constitui a maior parte dos refugiados do mundo. E hoje em dia os lugares em que o cristianismo mais cresce, particularmente o catolicismo, são em países pobres da África e da Ásia. O Papa Francisco costuma citar isso frequentemente: o cristianismo não é uma religião majoritariamente da elite como alguns pensam, pelo contrário.
Alguns podem alegar que a razão de o cristianismo e o islamismo terem se espalhado tanto por países pobres foi o esforço de missionários cristãos ao converter as pessoas ou de exércitos islâmicos convertendo pela espada no passado. Porém, novamente, alegar que esse é o único motivo pelo qual tantos pobres seguem essas religiões seria insultar a inteligência dessas pessoas, como se pessoas pobres não tivessem pensamento ou opinião própria, apenas porque não tiveram uma educação ocidental tradicional.
Além do mais, muitos missionários cristãos morreram devido ao esforço de espalhar sua religião e isso porque realmente acreditavam nela a ponto de dar sua vida por ela. É mais difícil imaginar um ateu dando a vida em nome de seu ateísmo, pois normalmente ele faria isso para salvar a vida de uma pessoa, coisa que nada teria a ver com seu ateísmo, mas em nome de outra crença sua (no amor, na caridade, etc). Então se o ateísmo não é fonte da motivação para ajudar alguém (se ele for teoricamente neutro nesse caso) e a crença religiosa constituir uma motivação a mais, não seria lógico pensar que a religião pode, potencialmente, aumentar nossa caridade e senso de sacrifício pelos outros?
Para pessoas que têm interesse não somente nas questões políticas da pobreza, mas também em realizar os chamados trabalhos sociais ou trabalhos voluntários com os pobres, não somente doando dinheiro, mas realmente conversando com eles, interagindo e conhecendo quem são essas pessoas, quais são suas necessidades e como elas pensam, possuir algum conhecimento de cristianismo e islamismo pode ser importante. Muita gente fala de “ajudar os pobres” como se eles fossem um bicho exótico que eles não conhecem e nem querem chegar perto, mas isso acaba criando uma caricatura de quem eles são e de como podem ser ajudados. Queremos salvar os pobres da suposta opressão da religião sem perguntar a eles se estão se sentindo oprimidos, ou os julgamos burros demais para se darem conta que sofrem essa opressão. Novamente, pura arrogância dos “salvadores dos pobres”. Às vezes somos nós que queremos ser ajudados e salvos da opressão da superficialidade e vazio dos valores e do estilo de vida ocidental. Ao interagir com os pobres, somos mais ajudados por eles do que eles por nós.
Tolstói ficou impressionado com os pobres camponeses que moravam no interior da Rússia de sua época. Seus amigos ricos da capital que frequentavam seus círculos literários tinham muita dificuldade para lidar com as questões da dor, da doença e da morte. Enquanto isso, os pobres camponeses lidavam com a doença e com a possibilidade do fim da própria vida com muito mais aceitação e tranquilidade. Tolstói descobriu qual era a principal fonte de onde vinha tanta força: a religião cristã. Foi por ver tantos exemplos de cristãos que, pela sua fé, sabiam lidar melhor com o sofrimento, que o próprio Tolstói viria a se converter ao cristianismo, mesmo sendo, como ele mesmo cita em sua autobiografia, rico, famoso, possuindo uma casa enorme, maravilhosa esposa e filhos e tendo muitos amigos. Em seus últimos anos, por inspiração cristã, escreveu obras memoráveis e viria a viver e morrer em grande pobreza e simplicidade.
Quando somos jovens, saudáveis e temos dinheiro ao menos para as coisas básicas, como casa e comida, é comum não termos interesse por religião ou por alguma forma de espiritualidade. Porém, conforme envelhecemos, temos alguma doença e se um dia experimentamos os resultados de uma pobreza extrema, como passar fome e não ter onde morar, a religião pode ser a fonte de nossa maior força.
Não é por acaso que Jesus se dirigiu aos pobres. Ele sabia que eles entenderiam do que ele estava falando. Somente quando temos a humildade de admitir que não sabemos de tudo e que não somos tão fortes, e que mesmo todas as descobertas humanas e nossa ciência não possuem todas as respostas, podemos descobrir e sentir o poder da religião em nossas vidas.
São os pobres que geralmente mais se interessam por religiões não porque eles não possuem educação e são supersticiosos, mas porque passaram desde cedo por muitos sofrimentos que os amadureceram em relação a lidar com a vida real. Enquanto isso, muitas pessoas vivem numa bolha de proteção e por isso podem ter mais dificuldade para lidar com a dor e o fracasso na vida.
Tanta gente hoje sofre de depressão e ansiedade por razões diversas, dentre as quais está o modelo secularista e materialista que frequentemente foca no egoísmo, competição e individualismo, que existe na educação ocidental. Nós nos sentimos pressionados a ter mais dinheiro, títulos, notas e cargos que aqueles ao nosso redor e quando não atingimos os altos padrões impostos pela sociedade ficamos ansiosos e infelizes.
Enquanto isso, há pessoas passando por problemas muito piores do que não poder comprar um carro, subir de cargo ou aumentar o salário. Muitas dessas pessoas não têm acesso a água tratada, não têm comida ou lugar para morar e frequentemente não existe nem mesmo fila para aguardar atendimento médico, pois há cidades inteiras sem sequer um hospital.
Elas não podem recorrer aos tratamentos “chiques” ocidentais, como fazer psicoterapia ou tomar antidepressivos. Porém, em muitas cidades sem esses atendimentos, muitas vezes podem ser encontradas mesquitas ou igrejas em que padres ou outros religiosos podem escutar os problemas das pessoas sem cobrar nada e que frequentemente também as ajudam de forma material com as doações que recebem.
É muita hipocrisia quando ocidentais de classe média criticam os religiosos ou os acusam de tentar converter as pessoas e usá-las, pois nem todas as pessoas que criticam estariam dispostas a passar a viver nos países mais pobres do mundo, às vezes no meio de guerras civis, correndo vários riscos, para prestar a elas diversos tipos de cuidados gratuitos. Muçulmanos e cristãos têm feito isso desde o começo dessas religiões, séculos antes da fundação da Cruz Vermelha. As religiões fundaram os primeiros hospitais do mundo.
Sendo assim, acredito que muitos ocidentais que acusam certas religiões de serem a origem de muitos atrasos do mundo deveriam, em primeiro lugar, não somente estudar mais história e teologia, mas ver o que se passa no mundo real, onde vivem e morrem pessoas reais, passando por muito sofrimento, e de onde muitas delas tiram a força para continuar vivendo naquelas condições deploráveis. Existe um limite humano quando nem mesmo o antidepressivo mais potente pode curar a dor de nossa alma e existe a necessidade de uma intervenção que não é apenas humana. Para quem nunca passou por esse grau de sofrimento pode ser muito difícil entender Deus ou religião.
Obviamente, existem outras religiões belíssimas além de cristianismo e islamismo, como várias religiões indianas, chinesas e as religiões tradicionais de vários países e todas elas ajudam e sempre ajudaram muita gente tanto materialmente quanto espiritualmente. Existem também várias formas de desenvolver a espiritualidade sem religião. Esse é um caminho que cada um deve trilhar para descobrir de onde tirará a fonte de seu consolo.
Alguns podem pensar que a maior parte dos africanos ainda seguem suas religiões tradicionais, mas desde os primórdios do cristianismo ele já começou a se espalhar pelo norte da África, posteriormente rumando para o sul. Logo o islamismo viria a dominar o norte da África. Hoje em dia essas duas são as maiores religiões do continente e crescendo cada vez mais. A propósito, acho compreensível que o mapa abaixo marque o Sudão do Sul como um local forte de religiões populares, já que com a guerra civil e separação do Sudão o islamismo se concentrou mais no norte. Sobre essa questão, recomendo o documentário “Beats of the Antonov”.
Sendo assim, se você tem algum interesse pela África, além de ser valioso estudar as religiões mais antigas do continente, um estudo de cristianismo e islamismo é fundamental para compreender a cultura da maior parte dos países africanos de hoje, que têm sido influenciados por essas religiões consistentemente há mais de mil anos.
E não devemos necessariamente pensar no cristianismo como uma religião simplesmente imposta ao continente africano, pois algumas igrejas cristãs do norte da África são tão antigas quanto várias igrejas europeias. A Igreja cristã da Etiópia, por exemplo, possui uma rica tradição totalmente única (o Livro de Enoque foi incluso especificamente na Bíblia etíope). O Egito possui os cristãos coptas. O próprio Santo Agostinho nasceu na Argélia e a igreja de lá já era bem forte desde os primeiros séculos do cristianismo primitivo. Podemos considerar então que desde seu começo o cristianismo teve uma influência africana bastante marcante e não deve ser visto apenas como uma religião de cultura exclusivamente europeia. Obviamente, a cultura do Oriente Médio também esteve sempre presente (Israel fica no Oriente Médio).
Eu acho engraçado quando alguns argumentam que não querem ser cristãos porque o cristianismo é uma religião símbolo do imperialismo ocidental. Citam as conversões dos jesuítas e às vezes elas mesmas estudaram em colégios e universidades cristãos. Mas na hora de abraçar o consumismo e outros valores secularistas e materialistas que são um símbolo ainda mais forte do imperialismo ocidental do que a religião, essas mesmas pessoas não pensam duas vezes. Uma das maiores forças que refreou um pouco o avanço pelo amor ao dinheiro e poder no mundo até hoje foram as religiões, em particular o cristianismo.
Concluo novamente instigando e estimulando a todos o estudo do cristianismo e islamismo, já que praticamente todos os países foram, de alguma forma, influenciados por elas em algum momento. Temos notícias de missionários cristãos na Índia desde o primeiro século. Hoje é um dos países que contém mais seminários católicos.
Como sabemos, nem todas as influências de cristãos e muçulmanos nos diversos países foram positivas. Porém, partir para o extremo de afirmar que essas duas religiões apenas destruíram a cultura dos outros é não estar ciente do processo de que diferentes religiões através dos tempos influenciaram umas às outras (greco-romanas, egípcias, hindus, etc) e que não é propriedade de nenhuma delas ser totalmente pacífica ou totalmente violenta, totalmente benevolente ou totalmente maligna.
O Natal, a Páscoa e outras datas cristãs não são uma invenção “pura” do cristianismo, nem as datas muçulmanas, nem as pagãs, porque vivemos num mundo multicultural e vivo. Nem por isso um ateu ocidental precisa se sentir particularmente esperto porque fez essa “grande descoberta” e muito menos usar essa descoberta para alimentar ainda mais os seus preconceitos por alguma religião.
Eu sou a favor de que se celebre tanto no Brasil quanto em outros países (como ocorre na Índia) feriados em homenagem a diversas religiões. Porém, alguns cristãos poderiam comentar, com alguma razão: “Que tal antes fundar tantos hospitais, colégios e universidades, muitos deles gratuitos, como já fazemos há quase quinhentos anos?”. Tente contar quantas dessas instituições com nomes cristãos que existem e poderá ter uma ideia. Infelizmente, com a diminuição do número de cristãos e das doações para igrejas, muitos deles passaram para propriedade privada e deixaram de ser gratuitos como antigamente. Em algumas cidades africanas há mais hospitais e colégios mantidos por doações cristãs do que pelo governo.
Ateus, agnósticos, cristãos, muçulmanos, budistas, adeptos de novas religiões ou pessoas sem religião mas que acreditam em Deus, todas elas possuem motivos diversos para suas crenças. Alguns se tornam ateus porque tiveram experiências ruins com certas religiões na infância ou juventude, outros se tornam religiosos porque tiveram experiências ruins com secularistas e materialistas que só ligam para dinheiro e poder.
Enfim, você pode achar de tudo nesse mundo se procurar bem: ateus extremamente espiritualizados e compassivos, cristãos cruéis e materialistas que só ligam para dinheiro e poder, as combinações são muitas. Não estou afirmando que é preciso acreditar em Deus ou ter uma religião para entender o sofrimento ou que pessoas religiosas são espiritualmente mais avançadas. Isso não se verifica, como todos nós sabemos, pois as pessoas são mais complexas que isso e não cabem em caixinhas e padrões.
Apesar disso, é evidente que existe um motivo mais profundo para cristianismo e islamismo serem as religiões mais praticadas do mundo hoje e por mais de um milênio. Eu acredito que isso não é acaso. Além disso, a história nos mostrou e as pessoas de hoje ainda nos mostram, principalmente os pobres, a imensa força que a religião pode ter para ajudar o ser humano na dor. Um ateu pode até ter outras estratégias de enfrentamento para lidar com o sofrimento que pode ser de auxílio especificamente para ele, mas essa estratégia não terá, necessariamente, relação com sua descrença em Deus. Por outro lado, a crença em Deus e as práticas religiosas possuem relação direta com a esperança e o otimismo que tanta gente adquire para lidar com as adversidades que a vida nos apresenta. E isso tem dado certa para milhões de pessoas desde tempos imemoriais. Será que esses dados não são suficientes para nos estimular a aprender mais sobre religião? E a descobrir que as religiões tradicionais e mais antigas podem nos trazer ideias totalmente ricas se apenas deixarmos nossos preconceitos um pouco de lado.
É normal para um brasileiro criticar o cristianismo mas admirar o budismo, por exemplo, porque ele enxerga os lados ruins da religião do seu país, mas como não convive frequentemente com muitos budistas ele acaba idealizando essa religião. Por outro lado, já conversei com tailandeses que não gostavam particularmente do budismo como religião, exatamente porque é a religião dominante da Tailândia (94,5%) e para eles talvez seja mais fácil admirar o cristianismo (somente 1,17% da população é cristã) numa idealização de que religiões do ocidente são mais avançadas, assim como muitos de nós temos essa concepção de que as religiões orientais são mais avançadas e exóticas. No final, todas as religiões possuem problemas, assim como todas as outras coisas na vida, mas isso não precisa ser motivo para não reconhecermos seus lados bons e suas contribuições para a humanidade.