Coração Branco: Reflexões

Wanju Duli
7 min readSep 20, 2019

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Student Art | Page 15 | DigiPen

Coração Branco é o livro mais recente que escrevi. O PDF pode ser baixado aqui e existe também a versão impressa.

É um livro longo, de 452 páginas. Algumas pessoas iniciaram a leitura, mas, até onde sei, poucas terminaram até agora. Mesmo assim, nesse texto também irei comentar sobre capítulos mais a frente, tentando não dar tantas revelações sobre o enredo, embora algumas sejam inevitáveis.

O nome inicial da história era “Caçadores de Pombas”, pois eu pretendia que fosse uma história de fantasia em que os personagens tivessem poderes mágicos e conseguissem carregar o seu anjo guardião por aí em forma de pomba. Uma referência óbvia ao catolicismo.

Mas as coisas mudaram. Logo nos primeiros parágrafos da história menciono uma marca de cigarro chamada “Coração Branco”, que seria a marca de cigarro mais cara daquele mundo. Esse também seria o nome de uma música famosa e de um símbolo religioso. Provavelmente o símbolo deu origem aos outros dois.

No mundo real, sabemos que o cigarro como o conhecemos hoje teve origem na Primeira Guerra Mundial, quando os soldados fumavam nas trincheiras. Portanto, achei que o nome de um cigarro era ideal para uma história de guerra.

Panda é o apelido da protagonista, que começa a história com 19 anos, mas ao decorrer da narrativa irá envelhecer algumas décadas. Ela é de classe média, tem inveja de seus amigos, colegas e conhecidos de classe média alta, mas uma parte sua rejeita esse mundo baseado em dinheiro, prazeres e conforto.

Ela quer ir para a guerra por vários motivos: um idealismo e desejo de ajudar o mundo, mudá-lo ou mesmo salvá-lo; ela também está entediada com a mesmice da vida de uma capital; e, finalmente, ela também tem um pouco de sede de aventura, quer correr perigo e sentir adrenalina, testar os seus limites.

Cada personagem tem motivos diferentes para desejar ir para a guerra. Porém, os motivos costumam girar em torno desses e aqueles que consideram seus motivos mais nobres costumam criticar e julgar aqueles com motivos mais superficiais.

Woman in white shirt smoking cigarette painting, Ilya Kuvshinov

O desejo de “ir para a guerra” na história é uma metáfora com três significados principais. Um dos significados é o religioso, a jornada espiritual que cada um percorre. Cada um tem motivos diferentes, embora muitos desejem se tornar uma pessoa melhor, conhecer a si mesmos ou ajudar os outros. Embora Jesus tenha dito para não julgarmos, é normal que mesmo no meio religioso cada um se considere melhor porque medita por mais tempo, faz mais orações, faz mais doações aos pobres, etc. Ironicamente, um dos objetivos mais importantes da religião é a humildade. Às vezes caminhamos para mais longe dela porque quando fazemos mais coisas nos sentimos melhores do que aqueles que parecem fazer menos; e assim há a impressão de que retornamos à estaca zero.

Outro simbolismo da guerra na história são as causas humanitárias. Até que ponto somos “egoístas” e vivemos nossa vidinha e até onde estamos dispostos a ajudar nossa família, amigos, pessoas ao nosso redor, a sociedade através da profissão ou mesmo fazer doações para desconhecidos. Portanto, o “ir para a guerra” na história também significa partir para uma jornada em que sairemos da zona de conforto, realizaremos coisas difíceis, arriscaremos a vida em nome de um ideal, às vezes incerto. Sem saber se estamos fazendo aquilo apenas pelo dever de ajudar ou porque realmente queremos, ou se isso tudo faz diferença.

Finalmente, a guerra é um símbolo das batalhas da vida em si e das escolhas que fazemos.

Eu usei o simbolismo da guerra de propósito, exatamente porque a guerra é frequentemente criticada, e com razão, por causar tanta tragédia, violência, morte e violações dos direitos humanos. Ao mesmo tempo, eu quis trazer a questão de, se em alguns casos, a guerra não seria a única saída, como em casos de opressões claras, como a escravidão.

No primeiro capítulo mostro a luta da protagonista para ser aceita na universidade militar, incluindo os privilégios dados aos filhos de militares ou àqueles com mais condições financeiras.

Kamikaze é o personagem símbolo de alguém que tem tudo (dinheiro, fama, poder), mas está entediado. Ele tem muitos defeitos, mas ao mesmo tempo tenta ser gentil com aqueles ao seu redor, deixando as pessoas confusas com essa ambiguidade. Ele também tem coragem e um desejo genuíno de mudar as coisas, talvez para mostrar aos outros que ele não é apenas um mero símbolo daquilo que muitos invejam, odeiam ou rejeitam.

Eterno é o cara com o passado sombrio, obcecado por mudar o mundo e depois morrer. Devido ao seu passado, ele não vê mais significado em sua vida, sendo o único sentido dela preparar-se para a morte, como se a guerra fosse um tipo de ritual para isso. Comparo esse ideal com a vida dos santos, que se consideram quase cadáveres vivos, cujo único objetivo é o martírio em nome de Deus. Embora Eterno não seja religioso, suas motivações são comparáveis.

Artist Soldiers: Artistic Expression

Quanto ao jornal que os personagens escrevem, também trato da questão da liberdade de imprensa, mas não só isso. Trago a reflexão da teoria versus prática: refletir sobre as coisas e fazer de fato. O romantismo dos que escrevem sobre a guerra versus a coragem daqueles que a experimentam. Aqueles que escrevem textos maravilhosos e intensos sobre a guerra não serão necessariamente aqueles que terão maiores atos de bravura na guerra em si. Nem sempre a mente e o corpo estão conectados.

No segundo capítulo, Panda finalmente começa a ver a diferença entre teoria e realidade. A guerra não é tão gloriosa e ela precisa enfrentar longos períodos de tédio, cansaço, doença e sofrimento e não ter a aventura incrível que imaginava. Às vezes ela pode experimentar momentos de tédio ainda maior na própria guerra, no meio do nada, do que na vida real, mergulhando ainda mais no tédio do qual planejava escapar, mostrando que isso tudo não depende necessariamente de uma condição externa.

No terceiro capítulo, a protagonista, após uma vivência de medo e sofrimento físico, que não foi tão divertida quanto imaginava, vive finalmente um pouco da aventura que queria. Ela contempla o horror da guerra e se pergunta se está fazendo aquilo tudo para ajudar alguém ou a si mesma e se está fazendo mesmo diferença para uma coisa ou outra.

Também é o momento de falar de religião. Existe realmente um propósito divino naquilo tudo? Como Deus permite a guerra?

A segunda parte da história mostra um pouco mais o ponto de vista dos personagens religiosos sobre a morte e a guerra, embora o foco tenha se desviado da religião para a questão dos direitos humanos.

Porco é um personagem solitário e semelhante a Eterno em sua obsessão com seu passado, embora ele também misture com motivações religiosas e deseje transcender suas motivações individuais para um desejo literal de salvar o mundo. No transcorrer da história são mostradas as consequências desse desejo e até que ponto algo assim é possível.

Minha intenção inicial ao escrever essa história era fazer algumas reflexões religiosas usando a guerra como cenário, mas ao longo dos capítulos o foco mudou. A religião ficou um pouco para segundo plano e o principal passou a ser não encontrar Deus, mas achar uma solução urgente e imediata para a questão do sofrimento humano e injustiças sociais, independente de pedir ajuda para Deus ou o diabo para isso. O espiritual e a teoria já não importavam tanto quanto ações aqui e agora para fazer alguma diferença, e dessa linguagem todos compartilhavam, pois todos sabem o que é a dor.

Rato é um personagem que percorre brevemente diferentes capítulos como um tipo de curinga e essa sensação de estar dentro da história mas ao mesmo tempo fora dela, como um observador, lhe dá certo charme.

Estrela é outra personagem interessante, pois dá uma ideia do que a própria protagonista teria se tornado se ela tivesse assumido um papel de grande heroína. Ao invés disso, Panda parece vagar ao longo dos capítulos sem saber bem qual era seu papel naquilo tudo. Ela está confusa pela vida, tentando se encaixar em algum lugar, sem pertencer realmente a nenhum, diferente de Rato, que parece completamente à vontade com sua função de mensageiro e faz-tudo (quase um Deus, que está sempre disposto a bater um papo e resolver pepinos).

Panda encontra um meio-termo, que não seja ser nem uma heroína e nem uma conformista. Curioso é que, mesmo passando por tudo aquilo, ela não parece estar sofrendo tão profundamente como outros personagens que chegaram ao fundo do poço, com escolhas do tipo tudo ou nada. Ela parece disposta a experimentar, tentar, mudar de ideia, sempre curiosa e ainda capaz de desfrutar das pequenas alegrias da vida.

É possível sofrer muito, mas ainda encontrar algumas alegrias. Mas é fundamental se permitir essas alegrias. Às vezes somos muito rigorosos com nós mesmos e não nos permitimos ir adiante enquanto houver alguém no mundo sofrendo, como se fôssemos um Bodisatva. Também é importante perdoarmos a nós mesmos e termos momentos mais leves, pois assim conseguiremos perdoar os outros e não julgar tão duramente as fraquezas daqueles ao nosso redor. Afinal, nós também somos humanos.

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Wanju Duli
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