Clube 18: Capítulo 2

Wanju Duli
90 min readNov 29, 2024

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Direitos autorais: rysak

(Antes de continuar, leia o Capítulo 1 aqui)

— Essa festa tá muito chata.

— Por que acha isso, mestra? — perguntou 17.

— Só tem bebida ruim — respondi — eu já tenho 18 anos e legalmente já posso beber o que eu quiser. Mas estão controlando o álcool para as crianças.

— Eu tenho 17, mas não gosto de álcool — disse 17.

— Você já bebeu alguma vez pra saber? — perguntei.

— Não — respondeu 17.

Dei um tapa na cabeça dela.

— Sua anta — falei.

— Desculpe, minha rainha — falou 17 — prometo que direi algo mais legal da próxima vez.

— O único jeito de você ser legal é calar sua boca pra sempre — falei, dando um gole naquela bebida péssima.

Deixei o copo na mesa.

— Cansei de posar por aí pra exibir meu vestido — eu disse — vou perseguir Milo agora.

— De novo? — perguntou Briana — você não se cansa de atormentar esse garoto? Assim até parece que você gosta dele…

— Quer que eu vá até Milo dizer que você quer falar com ele? — propôs 17.

— Às vezes você é útil — falei — então vai lá!

17 saiu, mas logo já estava de volta.

— Milo está indo embora — ela avisou.

— Por que não o impediu, sua inútil? — falei, irritada.

Eu corri. Ainda deu tempo de encontrar Milo lá na frente, antes que ele saísse.

Trocamos poucas palavras. Ele se mandou. Fiquei triste.

Quando voltei pra festa, Briana estava fazendo uma striptease.

— Que porra é essa?! — berrei — desce logo dessa mesa, sua puta!

Briana deu de ombros e obedeceu.

— Você disse que a festa tava chata — explicou Briana — eu só tentei tornar a festa mais legal.

— Vocês não servem pra nada — eu disse — nenhuma de vocês!

Acabei indo embora da festa também.

— Oi mana!

Minha irmã Zuri me cumprimentou quando cheguei em casa.

— A festa tava bem fraca — informei — aposto que vocês têm festas melhores na faculdade.

Ela já tinha 21 anos.

— Um pouco — disse Zuri — mas não eleve muito suas expectativas.

— Não vejo a hora de começar meu curso de moda — eu disse.

— Por que não faz curso de nutrição? — perguntou Zuri.

— Já tenho que lidar demais com comida no meu dia a dia e no clube — falei — vou me cansar se tiver que estudar sobre isso na faculdade também.

— Faz sentido — disse Zuri — Milo estava na festa?

— Estava.

— Conseguiu falar com ele?

— Bem pouco.

— Por que não se declara logo pra ele? — perguntou Zuri.

— Tenho medo — confessei — e vergonha.

— Medo de levar um fora?

— Isso e outras coisas.

— Mas você não tem medo de jogar coisas nele — disse Zuri — de persegui-lo abertamente e fazer bullying.

— Será que eu devia ser mais agressiva? Vou sentar na mesa dele amanhã.

— Não foi isso que eu quis dizer. Apenas se declare de forma normal…

Eu a ignorei e bolei meu plano. Coloquei o relógio pra despertar mais cedo para me produzir.

Caprichei na maquiagem e selecionei roupas e acessórios lindos. Acho que funcionou. Milo parecia estar olhando pras minhas pernas quando sentei em cima da mesa dele na aula.

Quando o intervalo começou, eu o persegui outra vez. Derrubei o refrigerante na camiseta de Milo e joguei o cachorro-quente dele no chão.

— Como é bom ser homem, né? — eu forcei um riso — você pode comer esse monte de porcarias sem consequências.

Eu saí e o deixei lá, se sentindo miserável.

Milo não voltou pra sala quando o intervalo terminou. Mesmo depois que todas as aulas do dia terminaram, ele não retornou.

Mas eu sabia que ele voltaria pra buscar a mochila, então o esperei lá. Aproveitei pra rasgar o caderno e o livro dele. Derramei suco na mochila dele e comecei a espiar o que havia na carteira.

Ele só tinha uma moeda de cinquenta centavos. Olhei a foto da identidade e achei fofa. Ele não estava exatamente bonito nela, porque raramente alguém fica bonito nesse tipo de foto. Mas achei fofinho mesmo assim, porque era meu Milo.

Bem, ele ainda não era meu. Mas seria, em breve. Porque eu sempre conseguia o que queria.

Milo retornou, como eu previ. Ameacei cortar a camiseta dele com a tesoura. É claro que eu não ia fazer isso.

Comecei a rir dele. Estava me fazendo de poderosa. Mas depois eu chorei.

Eu estava exausta. Não sabia mais o que fazer para conseguir a atenção de Milo. Saí de lá batendo a porta.

Como eu era idiota. Eu gostava de Milo de verdade, mas era covarde demais para admitir.

Passei aquela noite espiando as redes sociais dele. Olhando as fotos.

Acordei mais cedo naquele dia também para me produzir. A cor escolhida seria azul escuro, pois era a cor favorita do meu amado.

Antes de ir para a aula, passei rapidinho no clube.

— Conseguiram cumprir todos os pontos das atividades diárias ontem?

— Eu não — falou 17 — comi um brigadeiro antes de dormir.

— E eu bebi um gole a mais de suco — admiti — venha comigo, Kiki. Vamos fazer isso juntas pra dar o exemplo para as novatas.

Peguei meu estilete. Kiara pegou o dela. Juntas, fizemos um corte no nosso próprio braço.

Sangue fresco saiu do novo corte no meu braço esquerdo. Mais um corte, pra se juntar aos outros.

— Disciplina — declarei — é o segredo da perfeição!

As outras meninas do clube me fitaram com respeito.

Antes da primeira aula começar, lá fui eu sentar na mesa de Milo. Ele reparou o corte no meu braço e entendeu o que significava.

Cora era péssima em manter seu peso, por isso o braço dela vivia retalhado. Milo já devia ter notado o braço de Cora. Ele sabia.

— Os cristãos já faziam isso desde os tempos antigos — comentei — usavam cilício para mortificação da carne. É uma penitência para educar o espírito.

— Eu não sou cristão — disse Milo — e esse método era mais popular antigamente. Nos velhos tempos puniam alunos mandando que se ajoelhassem no milho, mas e daí? Isso é cruel demais.

— A vida não é fácil, Milo — eu disse — melhor retalhar a própria carne agora antes que retalhem seu espírito mais tarde.

— Não ligo para o que os outros pensam de mim.

— Será que não liga mesmo?

No intervalo, fui para o Clube 18 outra vez.

— Tirem a roupa — mandei — fiquem todas só de calcinha e sutiã. Agora!

Todas as meninas fizeram isso. Elas ficaram em fila e cada uma teve sua vez de se pesar na balança que eu levei.

Anotei o peso de todas no caderno. Eu tinha a informação sobre a altura de todas também e fiz o cálculo.

— 17,5, parabéns — informei Kiara.

— Brigada — ela sorriu.

Aquela maldita sempre conseguia manter os 17. O mais longe que chegou uma vez foi 17,8.

Kiara era a única 17 do clube. Por isso o apelido dela era 17. Briana era a segunda mais magra: em torno de 18,2. E eu era a terceira mais magra: 18,5.

Todas as outras meninas do clube normalmente oscilavam entre 18,5 e 18,9, que era o limite para fazer parte do clube.

Lara estava sempre com 18,8 ou 18,9. Mas naquele dia eu fiz o cálculo e os números não mentiram: 19,1.

Eu gritei:

— Olha isso aqui, Lara! Por acaso você comeu um boi ontem? Comeu pizza com sorvete e três litros de refri, porra?!

Lara se assustou. Ela se ajoelhou no chão e baixou a cabeça:

— Perdão, mestra! Eu apenas comi uma fatia de pudim. Não vai acontecer de novo.

— No meu cu que uma única fatia de pudim ia aumentar tanto teu IMC em apenas um dia! — berrei — você comeu mais alguma coisa, admita!

— Era aniversário do meu irmão — ela confessou — saímos para jantar fora, então eu comi… macarrão.

— Meu Deus, macarrão! — exclamei, ofendida — um prato inteiro?!

— Com molho branco!! — exclamou Lara.

— Puta que o pariu, molho branco, sua cadela?! — berrei mais alto que ela — e você se orgulha do que fez?!!

Dei um chute em Lara. Ela caiu no chão.

— Não… — ela miou, baixinho.

— Você devia decepar seu braço! — gritei mais — era isso que merecia! Mas em vez disso vou apenas te expulsar do clube.

— Não, não, não! — ela disse — tudo menos isso!

— Mestra, podemos conversar lá fora só um pouquinho? — pediu 17.

— É melhor que seja rápido! — falei.

Eu e 17 fomos para fora da sala enquanto as outras meninas se vestiam.

— Era aniversário do irmão dela, uma ocasião especial… — explicou 17 — por que você não abre uma exceção?

— O irmão dela faz aniversário todo ano — revirei os olhos — ela também. E os pais dela, e os amigos dela. Está dizendo que a cada aniversário ela vai ter esse descontrole e engordar meio quilo a cada vez? Não quero uma menina dessas no meu clube. Seria mau exemplo para as outras.

Entrei na sala e tirei Lara de lá, puxando-a pelos cabelos. Joguei-a no chão e fiz uma cena no corredor.

Lara chorou. Achei bem feito.

Se eu tivesse pena dela, se eu pegasse leve com ela… o Clube 18 ia terminar rapidinho. As outras meninas iam perder a disciplina, iam abrir exceções, pensando que não era nada de mais.

No final da aula, convidei Milo para sairmos num encontro. Fiquei surpresa que ele tivesse aceitado.

Deixei que ele visse minha calcinha azul escura quando subi no ônibus. Espero que ele tenha dado uma boa olhada nela.

Infelizmente, Vance apareceu no shopping para estragar tudo. Achei fofo quando Milo me defendeu dele. Na verdade, achei o máximo, pois eu não esperava.

O encontro com Milo foi maravilhoso. Eu me senti sensacional quando o abracei e dei um beijo no rosto dele.

Cheguei em casa pulando de felicidade. Mas, para minha surpresa, encontrei uma pessoa indesejada lanchando na cozinha com minha irmã.

— Porra… — falei — mana, por que você deixou esse panaca entrar?

— Eu não ia mandá-lo pra fora — defendeu-se Zuri — e ele já veio aqui tantas vezes antes…

— Mas não precisava oferecer até comida pra ele! — exclamei.

Lá estava Vance passando manteiga e geleia de morango num pão. Vance comia um monte, porque ele era alto e forte. Ele fazia academia e conseguia fazer a mágica de transformar toda a gordura em músculos. Então ele sempre fazia questão de comer muito, pois além de treinar o tempo todo para os campeonatos de futebol, ele ia quase todo dia pra academia. Ele estava sempre gastando energia, pois amava atividades físicas.

Eu e ele éramos bem diferentes nisso. Eu já tentei fazer academia, mas não me adaptei. Eu fiz um pouco quando estava ficando com Vance. E ele vivia fazendo piadas sobre o quão pouco eu comia. Eu odiava quando homens se metiam na minha alimentação.

— Oi Zoe! — Vance me cumprimentou enquanto mastigava — como foi o encontro?

— O melhor encontro que eu já tive — falei, para provocá-lo.

Mas ele não caiu na minha provocação. Apenas continuou dando grandes mordidas no pão, contente, ficando todo sujo, como uma criança. Vance também tinha um lado infantil que poucos conheciam. Assim como eu, ele gostava de posar de poderoso em público. Mas comigo ele se sentia à vontade para ser ele mesmo.

Vance terminou de comer o primeiro pão e pegou outro.

— Quer um? — ele ofereceu.

— Comer um pão inteiro? — eu ri — nem pensar! Eu não comeria nem metade. Talvez só uma mordida. Isso é carboidrato puro!

— Eu sei — falou Vance — só ofereci de brincadeira. Eu te conheço.

— Além do mais, eu e Milo já lanchamos no shopping.

— Já sei até o que vocês lancharam — disse Vance, tentando adivinhar — você dividiu com ele alguma porção minúscula de comida e o deixou com fome. Foram nuggets?

Eu odiava que ele me conhecesse tão bem.

— Sim, nuggets e brigadeiro de colher — respondi.

Vance gargalhou.

— Coitado — ele disse, enfiando metade do pão na boca — enfim, quer trepar?

Vance perguntou aquilo ainda mastigando. Eu quase não entendi o que ele disse.

— Não — falei.

— Não minta! — disse Vance — é claro que você quer! Aquele trouxa do Milo ainda não deu pra você. Sei que você gosta muito de sexo, então deixa ele pra lá, aproveite que estou disponível e me come.

— Você está sempre disponível, então não precisa ser hoje.

— Mas eu quero hoje — ele disse, bebendo suco de uva.

Assim que bebeu um copo inteiro de suco, ele se levantou, me jogou contra a parede da cozinha e me deu um beijo muito intenso na boca.

Ainda bem que minha irmã já tinha saído da cozinha. Ela já estava acostumada a ver eu e Vance nos pegando, mas eu preferia o mínimo de privacidade.

Nós nos beijamos em pé. Vance segurou minhas duas mãos para cima. Depois ele começou a passar as mãos nos meus peitos, por cima da camisa.

— Tá bom — eu cedi — vamos lá pro meu quarto.

Afinal, a cozinha não era um bom lugar, pois havia pessoas na casa naquele momento. Eu já tinha trepado com Vance em cima da mesa da cozinha uma vez, mas naquela ocasião não tinha ninguém em casa.

Tranquei a porta do meu quarto. Arrancamos a roupa um do outro o mais rápido possível. Aquele desgraçado tinha me deixado com desejo depois daquele beijo.

Nós dois nos deitamos na cama, completamente nus. Minha cama era muito pequena para o corpo grande de Vance, mas ele não pareceu se importar. Ele raramente se importava com o local quando o assunto era sexo. Ele estava disposto a fazer a qualquer hora, em qualquer lugar, sem frescuras. Isso era sexy, mas às vezes causava inconvenientes.

O beijo intenso de língua continuou. Ele mexeu nos meus peitos com violência e chupou os meus mamilos. Depois disso, ele foi descendo e fez sexo oral em mim.

Vance era muito bom nisso e eu gemi bastante. Um pouco depois, eu já estava molhada e ele me penetrou.

Percebi que Vance estava tentando me agradar na cama naquele dia, pois agora ele tinha um rival. E ele queria vencer.

Nós dois gememos enquanto ele me fodia. Eu amava os gemidos másculos de Vance.

Quando ele finalmente gozou, ainda ficou abraçado em mim e perguntou:

— Quer que eu faça algo por você, princesa?

Ele sabia que eu me derretia toda quando ele falava daquele jeito comigo.

— Não precisa, estou bem — falei.

Continuamos deitados nus na cama por um tempo.

— Quer namorar comigo, Zoe?

Vance nunca tinha me feito aquela pergunta antes.

— Não, obrigada — respondi, de imediato.

— Eu só sirvo pra trepar, né? — disse Vance — você só quer namorar o tampinha.

— É.

— Mas ele não quer você.

— Não quer. Por enquanto.

— Se ele não quiser, você namora comigo?

— Não, Vance — falei, cansada daquela insistência — hoje foi a última vez que fizemos sexo. Agora acabou.

Eu me levantei da cama e comecei a me vestir. Vance se levantou também e encostou o pau duro na minha bunda.

— Eu quero te comer de novo — ele sussurrou — posso comer sua bunda?

— Eu tô cansada hoje — falei — é melhor você ir embora.

Claro que era difícil dispensar um homem gato como ele. Só fiz sexo com ele naquele dia porque eu não resisti. Mas agora eu queria me focar somente em Milo.

— Eu sei que você me quer — ele insistiu — pode escolher qualquer coisa pra fazer na cama que eu aceito.

A gente já tinha feito um monte de tipos de sexo, em vários lugares diferentes. Não tinha nada específico que eu quisesse fazer, sinceramente.

— Se eu mudar de ideia, eu te ligo — resolvi dizer — mas agora eu quero descansar.

— Tá bom — por fim, ele cedeu — aguardarei sua ligação ansiosamente!

Eu não tinha a menor intenção de ligar pra ele. Nós dois recolocamos as roupas e ele foi embora.

No dia seguinte, fui pra aula vestida de vermelho. No intervalo, Imara foi visitar o clube, dizendo que queria ser membro.

— Nesse caso, tire a roupa e suba na balança — mandei.

Eu duvidava que ela fosse magra o suficiente pra fazer parte do clube com aqueles peitões. E, realmente, fiz os cálculos e o IMC dela era 19,4.

— Não dá — falei — muito gorda.

— Eu não queria fazer parte do seu clube idiota mesmo…

— Então por que me fez perder tempo vindo aqui? — perguntei, irritada.

— Esse é seu único critério de seleção? Então por que você pede um currículo?

— Esse é o critério mais importante, mas há outros — expliquei.

— Então talvez eu ainda possa ser aceita?

Ela tinha acabado de chamar meu clube de idiota e ainda queria entrar? Eu a arrastei pra fora e prosseguimos a discussão no corredor.

Revelei que Milo era meu namorado, o que era uma mentira. Para minha surpresa, ele concordou com minha mentira. E ela se tornou verdade.

Eu não cabia em mim de felicidade. Eu e Milo finalmente estávamos namorando!

No final da aula, Vance foi tirar satisfações comigo.

— Então é verdade mesmo? — ele perguntou, sem acreditar — você e aquele… pedaço de merda estão namorando?

— Estamos — confirmei — então a partir de agora não poderemos mais trepar. Foi mal.

Vance parecia furioso. Senti que ele queria encher Milo de porrada, mas se conteve.

Ele disfarçou e deu de ombros.

— Semana que vem vocês já terão terminado esse namoro — ele garantiu — se no fim de semana já estiver solteira, pode me chamar pra uma cavalgada.

E com essas palavras de efeito, Vance foi embora. Como ele era infantil. Ele não sabia perder.

Mas pela primeira vez ele parecia realmente estar olhando Milo como um ser humano e como um rival real. Antes, Milo para ele era invisível, apenas meu brinquedo que eu gostava de chutar.

As coisas tinham mudado muito rápido. Nem mesmo eu conseguia acreditar.

Milo foi para minha casa. Fiz questão de mostrar o máximo de pele possível. Eu o adicionei em todas as minhas redes sociais, fingindo que eu já não o tinha stalkeado por meses em todas elas.

Ter uma foto com Milo no meu quarto era surreal. Postei nossa primeira selfie, desejando que aquilo durasse o máximo possível.

Eu iria provar a Vance que ele estava errado. Meu namoro com Milo iria durar muito mais que uma semana. Eu não ia estragar tudo.

Afinal, ele era meu primeiro namorado.

Jogamos videogame, lanchamos e ele foi embora. Não dava para acreditar que o cheiro de Milo estava nas minhas coisas. Que pena que ele não deitou na minha cama. Eu queria o cheiro dele no meu travesseiro.

Eu não contei para Milo, mas o amigo dele, Orion, já tinha me mostrado algumas conversas deles nas redes sociais.

Eu sabia que Milo olhava alguns sites de putaria. Eu sabia uma ou outra coisa interessante sobre ele que ele não queria que ninguém soubesse.

Por exemplo, eu sabia que ele e Cora já tinham ido pra cama, os dois nus, algumas vezes, mas nunca houve penetração. Eles apenas se beijaram, se abraçaram, ele pegou nos peitos dela e isso foi tudo. Não houve nem mesmo sexo oral. Ele era muito inocente.

Eu queria conversar mais com Milo sobre isso. O que exatamente aconteceu?

No dia seguinte, fui para a aula de rosa. Naquele dia apresentei Milo para as meninas do clube. Achei fofo vê-lo todo envergonhado por causa das minhas meninas lindas.

Mas eu sempre tinha que ser a mais linda para ele, a número um.

No final da aula, passei no clube outra vez.

— Eu vi esse currículo horroroso — eu disse para 17 — acho que essa menina não é adequada.

— Por que não, princesa? — perguntou 17 — ela é uma 18. Mais especificamente, uma 18,6.

— Sei lá, não fui com a cara dela — respondi — de que adianta ser magra se ela é feia e antipática? Só quero meninas bonitas e fofas no clube.

— Mestra, eu sei que você é capaz de transformar a menina mais feia numa beldade — insistiu 17 — basta ela usar a roupa certa, arrumar o cabelo, botar uma maquiagem…

— Nem eu sou capaz de milagres, coração — observei — essa garota pode até ficar bonita, mas quando ela sorrir para a foto, vai parecer que chupou limão. Olha só a cara dela. Ela não sabe sorrir.

Mostrei as fotos dela.

— Ela não é tããão feia assim — disse Briana — dá-se um jeito.

— Não quero perder meu precioso tempo com um caso perdido — falei.

Ainda houve algum debate sobre isso. Eu já estava de saco cheio.

— Que tal fazermos uma votação? — propôs Briana.

— Não! — exclamei — isso aqui não é uma democracia, é uma ditadura. Se eu disse que ela não vem, não há discussão.

Olhei meu celular. Dez minutos já tinham se passado. Avisei para Milo que iria encontrá-lo em cinco minutos.

— Merda — eu disse — falamos mais sobre isso na segunda-feira. Agora eu tenho um encontro com meu namorado. Até mais, meninas!

— Bom encontro, minha rainha! — disse 17, contente.

Não sei bem porque eu botei 17 de vice-líder. Ela era minha maior puxa-saco, mas às vezes ela me irritava exatamente por isso.

Fui para a frente do colégio procurar Milo e não o encontrei. Andei um pouco mais, até a árvore feia.

Para minha surpresa, lá estava Imara. Ela estava… dando um beijo na boca do meu namorado.

Aquilo era sério? Eu fiquei sem reação por um momento.

Nem mesmo eu já tinha beijado Milo. Como aquela puta tinha coragem…?

Percebi que Milo a empurrou. Ele claramente não queria aquele beijo. Imara o tinha forçado. Eu conhecia Milo. Ele era uma pessoa séria. Não era o tipo de namorado que me trairia, mesmo que ele me odiasse e quisesse se vingar de mim. Ele era certinho demais pra isso.

Imara estava com um canivete na mão. Percebi que as mãos de Milo estavam vermelhas.

Ela não somente o tinha beijado, mas tinha machucado meu homem? A ponto de fazê-lo sangrar? Aquilo não ia ficar assim.

Eu não podia atacá-la sem uma arma. Eu tinha que pensar rápido.

Peguei meu estojo de maquiagem e tirei de lá uma tesoura afiada. Ataquei Imara com ela.

Imara não esperava me ver, é claro. Por isso eu consegui atingi-la antes que ela pudesse sequer se dar conta do que estava acontecendo.

Ela revidou com o canivete, mas eu apenas a atingi com a tesoura repetidas vezes, dando muitos gritos.

Não houve conversas ou frases de efeito. Aquilo era uma luta. Eu estava com a adrenalina lá em cima e só tinha uma coisa em mente: punir aquela vadia que maculou meu homem.

Quando a luta terminou, corri até Milo, que estava sangrando no chão. Eu me assustei com a quantidade de sangue. Acho que ele tinha desmaiado por alguns segundos.

Ele estava muito assustado e tremendo. Chorando. Eu o abracei.

Eu já sabia disso, mas confirmei: eu o amava muito. Eu queria protegê-lo. Nada mais importava.

Até aquele dia, pouca coisa tinha importado na minha vida. Eu já tinha sentido atração e simpatia por Vance, mas nunca amor. O que eu sentia por Milo era muito mais poderoso.

Quando eu fui para a casa dele e ouvi o barulho de Milo desmaiando no banheiro, levei um susto. Eu corri para lá e o ajudei.

Eu estava com tanto medo que apenas botei a toalha em cima dele e o segurei. Estava tão completamente focada em ajudá-lo que eu nem me lembro do quanto eu vi do corpo dele. Aquilo não importava naquele momento.

Eu era tão completamente apaixonada por Milo que meus sentimentos por ele eram mais importantes que a atração sexual ou qualquer outra coisa. Eu não queria enganá-lo, porque Milo era muito inocente e sincero.

Fiquei desesperada ao vê-lo derramar lágrimas. E fiquei assustada com o tamanho do amor que eu sentia. Aquilo estava começando a sair do controle.

Eu queria terminar aquele namoro logo antes que eu me apaixonasse demais. E minha felicidade dependesse totalmente do bem-estar de Milo.

Mas eu me dei conta que já não tinha mais jeito. Já fazia muito tempo que eu gostava dele. De verdade. Ele não era apenas meu brinquedo. Será que tinha como eu convencê-lo disso? Fazê-lo confiar em mim?

Tudo começou quase um ano antes. Quando Milo arranjou uma namorada. Ou até um pouco antes disso, pois eu já estava olhando para Milo antes, mas nunca tive coragem de me declarar.

A maldita da Cora foi mais rápido. Eu a odiei por isso. Senti um ciúme violento. Afinal, Milo era meu. O coitadinho solitário da sala era somente meu para que eu o judiasse. Nessa época eu já fazia bullying com Milo, mas eu me negava a acreditar que minha obsessão doentia por ele fosse amor.

Ver Milo com Cora no colégio me deixava furiosa. Cora tentava defender Milo dos meus bullyings, mas ela era muito fraca. Ela também era tímida e tinha medo de mim.

Fiquei surpresa quando Cora quis entrar para o Clube 18. Na verdade, fiquei desconfiada. Achei que ela só estava fazendo isso para se vingar de mim. Para tentar bagunçar meu clube, dar o troco pelo que fiz com seu namorado. Afinal, ela era muito fraca para destruir meu clube. No máximo, poderia me causar problemas.

Mesmo assim, fiquei curiosa. Ela era uma 18,8. Era bonitinha também. Não tive motivos para recusá-la. E eu queria conhecer melhor a namorada do menino que eu gostava. Nem que fosse para judiá-la ou aprender mais sobre Milo.

Cora realmente estava séria sobre fazer parte do clube. E obedeceu todas as minhas ordens. Mas por que ela queria fazer parte do clube que tinha como líder a menina que atormentava o namorado dela? Mistério.

— O Clube 18 se chama assim porque dizem que 18 é o IMC das princesas da Disney — expliquei, com seriedade — então, esse é nosso objetivo: ser magra como uma princesa da Disney. Mas eu aceito no clube qualquer menina com IMC até 18,9. Eu mesma tenho 18,5.

— 18,5 ainda é considerado um IMC saudável, não é? — perguntou Cora — menor que isso é tido como abaixo do peso normal.

— Mais ou menos — eu disse — esse cálculo do IMC é só um indicador. Tem muita gente com IMC 18 ou até menos que está mais saudável do que muita gente com IMC considerado “normal”. Mas esse não é um clube que busca saúde e sim a beleza. Aqui, além de cuidar do peso, ligamos pra moda. Queremos estar bonitas. Gostamos de roupas, maquiagem, perfumes e muitas outras coisas legais. Tenho certeza que você vai adorar! Seja bem-vinda!

Eu sorri. Cora sorriu também. Todas as meninas a abraçaram e lhe deram as boas-vindas.

Ela não fazia ideia do inferno que iria se tornar sua vida muito em breve.

Cora era uma menina adorável, mas eu tinha muita inveja dela porque ela estava namorando Milo. O que exatamente ela tinha que a tornava melhor que eu?

Até que Cora sabia se arrumar, quando se esforçava. Com nossas dicas de moda, ela fez os ajustes certos no guarda-roupa. Ela gastou muito em roupas, sapatos, maquiagem e acessórios no primeiro mês no clube, por indicação minha e das meninas.

— Amanhã é o dia do vestido — declarei — quero todo mundo do Clube 18 de vestido na aula amanhã.

Sorte que nosso colégio não tinha exigência de usar uniforme no ensino médio. Graças a isso tive minha adolescência dos sonhos, pois eu odiava uniforme.

— Amanhã é o dia da saia jeans — anunciei.

Ninguém ousaria dizer para mim que não tinha uma saia jeans. Quem não tinha precisaria arranjar uma até o dia seguinte.

— Amanhã é dia de Vans — revelei — quero todo mundo com esse tênis amanhã.

Percebi que Cora ficou nervosa. Eu sabia que ela não tinha esse tênis. Mas no dia seguinte lá estava ela, com um Vans novinho. Ela devia ter comprado aquele modelo por uns 500 reais.

Eu sabia que Cora não era rica. Eu também não era, mas eu já tinha conseguido reunir um bom número de artigos de moda ao longo dos anos. No caso dela, que costumava usar mais ou menos as mesmas roupas para ir à escola, ela precisava investir bastante dinheiro para fazer parte do clube.

Aos poucos ela também aprendeu a se maquiar melhor.

— Você parece uma palhaça — comentei.

Nem sempre meus comentários sobre a maquiagem dela eram gentis. Eu esperava que pelo menos assim ela se desse conta.

Por outro lado, 17 era sempre gentil com Cora e com todas as outras. Ela ajudou a fazer a maquiagem de Cora algumas vezes e deu várias dicas.

— Maquiagem não é sobre habilidade, é sobre marcas boas e caras — contou 17 — com a marca certa, basta encostar o lápis no olho e o lápis sozinho faz a mágica.

— Também não é assim, sua imbecil — eu nunca perdia a oportunidade de xingar 17.

Mas a culpa era de 17, que só falava merda.

— Amanhã é o dia da trança e do esmalte verde esmeralda.

Percebi que as notas de Cora começaram a cair. É claro, pois ela só vivia em função do Clube 18 e das minhas constantes exigências. O namoro dela também ia de mal a pior. Parece que ela andava discutindo bastante com Milo naqueles tempos.

Ele a estava confrontando. Afinal, qual era a prioridade dela: o namorado ou os encontros do Clube 18?

Eu ficaria muito feliz se conseguisse destruir o namoro dos dois, mas não seria fácil. Milo era paciente e perdoava. Sempre dava uma segunda chance. Ele era bom demais para esse mundo.

Eu nunca dava uma segunda chance paras as meninas do clube. Fez merda, cai fora e nunca mais volta. Por isso elas tinham tanto medo de sair da linha.

Um dia, o maior pesadelo de Cora se concretizou: ela se pesou na balança, eu fiz o cálculo e descobri que o IMC dela estava 18,9.

— Se o seu IMC chegar a 19 apenas uma vez, você está expulsa do clube — eu repeti para Cora a informação que ela já sabia.

— Prometo que isso não vai acontecer — disse Cora, de imediato — amanhã meu IMC já estará melhor.

Cora tinha 1,53cm de altura. Atualmente, ela estava com 44,3 quilos. Isso significava que se ela chegasse a 44,5 quilos, ela estaria expulsa. Apenas 200 gramas, apenas uma única refeição leve poderia ser a diferença entre mantê-la lá ou botá-la para fora.

Eu mandava as meninas se pesarem todos os dias na minha frente, apenas de calcinha e sutiã. O que Cora comeria naquele dia seria decisivo.

No dia seguinte, fiquei surpresa com o peso dela na balança: 43,8 quilos. Ela tinha emagrecido meio quilo em apenas um dia. Eu a fitei com desconfiança.

— Para emagrecer meio quilo em tão pouco tempo no peso que você está, significa que você não comeu nada desde ontem? — perguntei.

— Não comi absolutamente nada — confirmou Cora.

— Você pretende comer algo hoje? — perguntei.

— Não — respondeu Cora.

Não fiz nenhum comentário. Jejuns intermitentes eram uma prática comum entre nós. Jejuns de 24h também, ou até de 48h.

Mas… quantos dias exatamente ela planejava ficar sem comer?

— Você está bebendo água? — perguntei.

— Estou — respondeu Cora — mas eu fico com vontade de ir ao banheiro o tempo todo se bebo muita água sem comer nada. Então vou beber mais água quando eu chegar em casa.

— Ok — falei.

Anotei o IMC dela como 18,7 e deixei por isso mesmo.

No dia seguinte ela se pesou de novo: 43,3 quilos. Mais meio quilo perdido.

— 18,5 — observei — seu IMC está exatamente igual ao meu agora.

Cora deu um grande sorriso e eu fiquei com muita raiva.

Eu era mais alta que ela: tinha 1,60. Eu pesava em torno de 47,3 quilos. Ela tinha 4 quilos a menos que eu, mas tínhamos o mesmo IMC.

O mínimo que eu já cheguei a pesar naquele ano foi 46,1. Eu estava com exatamente 18 de IMC naquela época, mas nunca cheguei a 17.

Sinceramente, a única pessoa que já tinha chegado a 17 no clube era a própria 17. Ela nunca tinha chegado a 18, a maldita.

Se Cora perdesse mais peso no dia seguinte, ela teria um IMC menor que o meu. Isso não pegava bem. Somente 17 e Briana tinham IMC mais baixo que o meu.

Eu era a líder. Devia dar o exemplo. Por isso, naquele dia resolvi fazer um jejum de 24 horas também. Se Cora queria guerra, ela teria.

Consegui emagrecer 600 gramas. No dia seguinte, eu estava com 46,7 quilos e IMC de 18,2.

Cora se pesou: 42,9. Ela tinha emagrecido mais 400 gramas. Ela estava com 18,3.

Eu venci. Eu a fitei com um sorriso triunfante.

— Acho que vou parar com o jejum hoje — decidiu Cora — estou passando mal…

Ela ficou tonta e desmaiou ali mesmo na nossa frente, de calcinha e sutiã, na frente da balança.

17, sempre muito prestativa, deitou Cora e elevou as pernas dela, para que o sangue fosse para a cabeça. Cora acordou após alguns segundos.

— Eu desmaiei? — ela perguntou.

— Sim — informei — você está há 3 dias sem comer. Você precisa comer alguma coisa. Qualquer coisa. Imediatamente. Isso é uma ordem da sua líder.

Cora fez que sim, parecendo aliviada. Mesmo assim, eu não senti pena dela.

17, sempre pronta a resolver qualquer problema, tirou da mochila um potinho com um mix de castanhas. Cora pegou apenas uma avelã e uma noz.

— Está bom assim — disse Cora.

— Não está bom — eu falei — você está há 72h sem comer. Precisa de algo mais consistente. Vá comprar alguma coisa no bar do colégio antes de a aula começar.

— Não tenho mais dinheiro — confessou Cora — gastei tudo em roupas…

— 17 — falei — vá comprar algo pra Cora.

— Sim, mestra — respondeu 17, de imediato.

— Não compre algo grande — falou Cora — pode ser só um mini pão de queijo…

— Você precisa de mais proteína — falei — pelo menos uma empada de carne ou frango.

— Empadas são grandes demais — disse Cora.

Revirei os olhos.

— Você sabe que só vendem porcarias aqui no colégio — falei — eu divido uma empada com você.

Cora concordou. 17 retornou com uma empada de frango. Cora comeu metade e eu comi a outra metade. Devia ser o momento de maior glória da vida de Cora dividir um lanche com a líder do Clube 18.

Eu vi como ela estava feliz. Mas eu não estava. Tive que anotar a meia empada no meu caderninho. Isso significava que eu teria que diminuir a quantidade da comida na minha próxima refeição. Eu já comia pouco, então aquilo era um golpe forte.

No outro dia, Cora se pesou e estava com 42,5 quilos. Mais 400 gramas perdidos. Eu a fitei firmemente.

— Não me diga que sua única refeição ontem foi aquela meia empada, aquela noz e aquela avelã? — perguntei.

— Sim — confirmou Cora.

— E você acha isso engraçado? — perguntei.

— Não — falou Cora — só não quero ser expulsa do clube há pontapés e humilhada no corredor, como você fez com as outras meninas.

— Seu IMC já está 18,1 — informei — você não precisa emagrecer mais que isso. O problema não é seu IMC, mas que você está perdendo peso muito rápido. Fazer jejuns de vez em quando pode ser saudável. Mas três ou quatro dias seguidos praticamente sem comer é um problema.

— Por que é um problema? — perguntou Cora.

— Você desmaiou, mesmo bebendo água — falei — você acha que desmaiar é saudável? Você pode bater a cabeça. E se continuar fazendo vários dias de jejuns seguidos, seu corpo vai sofrer. Eu já fiz isso. Comecei a perder cabelo e minha menstruação parou. É isso que você quer?

— Não…

Cora olhou pro chão, parecendo perdida.

— Coma alguma coisa hoje — mandei — se amanhã seu IMC estiver menor que 18, você será punida.

Quando Cora subiu na balança no dia seguinte, eu fiquei nervosa. Ela estava com exatamente 42 quilos. Ela perdeu mais meio quilo e agora o IMC dela era 17,9.

Dei um tapa na cara dela. Eu a agarrei pelos cabelos e a joguei no chão, sem piedade.

— Sua puta!! — gritei.

Cora, ainda no chão, começou a chorar violentamente.

— Qual é o seu problema?! — ela berrou — se eu engordo levo um tapa na cara e se eu emagreço também?!

— Mantenha seu IMC entre 18 e 18,8! — falei — não menos e não mais que isso!

— Mas 17 tem 17,5 de IMC! — argumentou Cora.

— Mas ela já tem isso faz tempo! — exclamei — ela não fez um jejum de 5 dias seguidos pra baixar o IMC! Se seu objetivo é ter 17 de IMC, faça isso de forma saudável. Diminua as quantidades gradualmente. Não faça merda.

— Eu sou um ser humano e não um robô — disse Cora, ainda chorando — se eu voltar a comer normalmente, vou sentir cada vez mais fome e vou voltar ao meu peso anterior. Só se eu ficar sem comer nada consigo emagrecer um pouco…

— Então coma, sei lá, salada, ovo! — exclamei — não coma porcaria!

— Odeio salada — disse Cora — odeio ovo… eu adoro pizza e chocolate…

— Talvez você não tenha experimentado boas saladas — opinou 17 — você gosta de nozes, não é? Sei preparar ótimas saladas com nozes e molho pesto que…

— Cala a boca, 17! — exclamei — não te mete! Ninguém pediu sua opinião!

— Perdão, mestra… — 17 baixou os olhos.

É claro que valia a pena escutar as dicas de dieta de 17. Afinal, se ela conseguia manter 17,5 de IMC por tantos anos seguidos sem adoecer com frequência, alguma coisa certa ela devia estar fazendo.

Mas eu era orgulhosa. Não tentei ajudar Cora além de dar conselhos vagos e fazer ameaças.

No dia seguinte, o IMC de Cora estava 18,2. Fiquei aliviada, pois ela devia ter comido alguma coisa.

A cada dia, o IMC dela aumentava um pouquinho. Não demorou muito para que ela voltasse para 18,9. Eu suspirei fundo.

— Cora… — eu sentia vontade de dar um tapa na cara dela outra vez, mas me contive — você é uma pessoa ou um animal? Você não tem o mínimo de autocontrole? As duas únicas opções pra você são não comer nada ou se entupir de comida?

— Se quiser, eu vou ao banheiro agora mesmo e vomito meu café da manhã — disse Cora.

— Isso não é necessário — falei — já está cientificamente provado que bulimia não emagrece. Só gera mais fome e desgasta o esmalte dos dentes.

— Mas anorexia emagrece — observou Cora.

— E mata também — falei — sabia que cerca de 1 ou 2 em cada dez pessoas com anorexia morre? Você gosta de brincar de roleta russa?

— Meu braço parece um ralador de cenoura — disse Cora, com lágrimas nos olhos — não aguento mais…

Ela mostrou o braço esquerdo. Ele estava cheio de cicatrizes e todo ensanguentado, pois ela havia feito cortes nele recentemente.

— Você está fazendo cortes demais — observei — não precisa usar mais esse método.

— E vou usar qual método agora pra perder peso? — perguntou Cora, perdida — eu já tentei de tudo…

— Você quer emagrecer, mas não quer abrir mão de nada — falei — quer comer chocolate todo dia! Corte pelo menos o chocolate. Ao menos por um tempo. Ou coma chocolate meio amargo.

— Chocolate meio amargo é caro e eu nem gosto muito — disse Cora — eu não quero emagrecer. Estou satisfeita com meu peso atual. Eu só quero fazer parte do Clube 18…

Eu ri. Ela achava que eu ia sentir pena dela com esse discurso patético?

— Você sabe porque o Clube 18 se chama assim — falei — porque quem é membro tem IMC 18! Eu já estou sendo muito generosa de permitir membros com até 18,9 de IMC!

— Por que não muda o nome do clube, então? — sugeriu Cora — pode ser apenas um clube de meninas lindas que falam sobre moda, não importando o quanto elas pesem.

— O seu problema não é esse, Cora — falei — você quer ser parte de um clube exclusivo, mas não quer fazer nenhum sacrifício. Você quer que eu deixe entrar aqui meninas gordas e pobres. Você também não gostou de ter que gastar dinheiro pra comprar um tênis de marca. Então se eu deixar entrar meninas com IMC 19, daqui a pouco você vai sugerir que eu permita que entrem aqui meninas que usam marcas falsificadas e baratas. Não é mesmo?

Cora ficou quieta. Porque ela sabia que eu tinha razão.

— Olhe para 17 — apontei — ela não tem muito dinheiro, mas ela só usa roupas de marca. Porque ela tem prioridades. Ela gasta todo o dinheiro dela em roupas e não sobra muita coisa pra comida. Assim é fácil ter IMC 17!

Eu ri da minha própria piada. Algumas das outras meninas também riram, para me acompanhar e puxar meu saco. Mas Cora não riu.

— Porra, Cora — falei — você só faz drama e causa problemas pra todo mundo. Todos os membros do Clube 18 estão se esforçando e sofrendo pra comprar roupas novas, pra manter o IMC e pra estar sempre linda e perfeita todas as manhãs. Você não é a única que chora todos os dias. Mas ao menos faça isso em silêncio na sua casa e não no clube.

— Talvez psicoterapia possa te ajudar — sugeriu 17 — eu conheço uma terapeuta ótima que…

— Cala a boca 17! — falei, rispidamente — está muito claro que Cora não está preparada para fazer parte do Clube 18. Ela sempre se faz de vítima. Ela acha que minhas regras estão erradas ou que sou muito extrema ou exigente, até mesmo preconceituosa. Se acha isso, apenas caia fora! Não é simples? Assim todos ficarão felizes.

— Mas eu me esforcei tanto pra entrar… — falou Cora — meu IMC sempre foi em torno de 19,5. Sempre pesei entre 45 e 46 quilos. Foi difícil baixar para 44 para poder entrar no clube. Não quero sair depois de me esforçar tanto.

— Ah, então é por isso que você está com tanta dificuldade de manter seu peso atual — comentei — porque sua perda de peso foi recente. Isso significa que seu corpo ainda está tentando recuperar o peso que tinha antes. Isso se chama set point. O corpo sempre tenta voltar ao maior peso que ele já teve. Depois de perder peso, o corpo mantém a memória de seu maior peso por tempo indeterminado e tenta voltar desesperadamente para ele. Você precisa manter o peso perdido por longos meses, talvez até mais de um ano, pra seu corpo conseguir perder a memória do seu maior peso.

Cora não ficou muito feliz com a notícia.

— Eu tenho tanta fome, o tempo todo — ela disse — mesmo quando eu como alguma coisa.

— Querida — eu ironizei — todas nós estamos sempre morrendo de fome. Esse é o preço de nascer mulher. Esse é o preço de ser linda.

— Não posso ser linda com IMC 19? — perguntou Cora.

— Não no Clube 18 — respondi — todas as princesas da Disney têm IMC 18. Imagina como Branca de Neve olharia pra você se um dia você se pesasse e aparecesse um 45 na balança!

Mostrei um meme no meu celular: Branca de Neve olhando pra um cálculo de IMC 19 e a legenda: “Branca de Neve não está impressionada”.

É claro que minhas seguidoras riram. 17 também. Mas Cora não.

— Ria da minha piada! — mandei — ria, sua maldita!

Eu chutei Cora e ela riu imediatamente.

— Isso mesmo! — exclamei — eu sou linda, magra, rica e engraçada!

— Mas você não tem namorado — observou Cora — quando eu saio com Milo, gosto de comer hambúrguer com ele.

— Ah, então é seu namorado estúpido que está te engordando! — exclamei, morrendo de ciúmes — então termine com ele!

— Não quero — falou Cora — eu amo Milo.

Fiquei furiosa com aquela resposta.

— Quando eu saio com Vance, ele às vezes come um Big Mac com batatas fritas grandes, refrigerante grande e um McFlurry — falei — mas ele é homem, treina futebol todo dia e faz academia todo dia. Ele também corre todas as manhãs. Ele tem 1,90 e é bem musculoso. Eu não vou comer a mesma coisa que ele!

— Mas eu gosto de hambúrguer… — falou Cora.

— Eu também, mas e daí? — falei — pare de sentir pena de si mesma. Você quer ter namorado ou fazer parte do Clube 18? Escolha!

— Não vou terminar com Milo — ela disse, decidida.

— Então se mande daqui.

— Não, não! — disse Cora — pode deixar, vou conversar com ele. Vou comer meio hambúrguer quando sairmos e guardar metade pra comer de janta em casa…

— Não me importo como você vai resolver sua situação — falei — eu só quero ver seu IMC menor que 18,9 amanhã.

No outro dia, o IMC dela estava 18,8.

— OK — falei — não quero mais saber dos seus problemas, Cora. Não sou sua terapeuta. Apenas mantenha o peso e cale a boca. Sua presença e seu drama está desmotivando todas as outras meninas. Não seja um mau exemplo. Apenas sorria e finja que está feliz, como todas nós. Nós vivemos numa sociedade de merda que julga as mulheres pelo peso e aparência. Se quer sobreviver nessa selva impiedosa, aprenda a seguir as regras e jogar o jogo.

Cora fez que sim. Acho que ela entendeu, pois manteve o IMC entre 18,8 e 18,7 por um tempo e ficou quieta.

Toda semana ela comprava roupas novas, de acordo com minhas especificações. E continuamos realizando os eventos do clube: tirando nossas fotos em grupo para postar no nosso Instagram e gravando nossos vídeos curtos para postar no TikTok do Clube 18.

As nossas fotos do Instagram eram lindas, pois estávamos bem produzidas, com roupas da moda, maquiagem e cabelo feito. Além disso, deixávamos bastante pele à mostra. Os homens nos amavam. Algumas mulheres nos admiravam e outras nos invejavam. Éramos poderosas.

No TikTok fazíamos alguns vídeos com dicas de maquiagem e penteados. E às vezes dançávamos alguma música, principalmente funk. Eu adorava aqueles funks com letras bem pervertidas.

Nosso vídeo mais assistido do TikTok era um em que eu e Briana dançávamos um funk com letra imunda, eu roçando minha bunda contra a bunda dela e depois nós duas requebrando com a bunda bem focada na câmera.

Na verdade gravamos aquele vídeo numa ocasião em que nós duas estávamos meio bêbadas e 17 filmou. A qualidade nem era muito boa. Normalmente 17 editava os vídeos e fazia coisas de boa qualidade. Mas nosso público também curtia nossa espontaneidade.

Eu sabia que Cora não curtia muito funk e ela era meio tímida. Ela não sabia dançar ou ser descolada. Mas ela queria ser uma de nós. Bem, ela era. Mas ela nunca se encaixou no Clube 18 de verdade. Afinal, ela não era suja como nós.

Claro, ela namorava Milo. É claro que Milo não ia namorar uma menina vulgar e preconceituosa. Ou assim eu pensava. Afinal, Milo era homem e nem ele resistia à beleza.

De certa forma, eu entendia um pouco Cora e os dilemas dela. Eu também estava exausta daquilo tudo. Mas em breve o colégio ia terminar e eu iniciaria uma nova vida na faculdade de moda, com novos amigos. Talvez eu fundasse um clube lá também, mas as coisas seriam diferentes. Eu esperava que até lá eu amadurecesse um pouco. E mantivesse memórias queridas do Clube 18 que fiz no ensino médio.

Ou assim eu pensava. Mas Cora estragou tudo. Ela assombrou e amaldiçoou o Clube 18 para sempre com a morte dela.

Sim, éramos jovens e estúpidas. Mas a estupidez de Cora passou um pouco do ponto. Eu avisei a ela para sair do clube. Disse que não era pra ela. Mas ela insistiu em ficar.

Eu respeitei a liberdade de Cora de continuar, contanto que ela seguisse as regras. Mas eu percebia que cada dia para ela era um sofrimento. Eu e as outras meninas sofríamos também para manter o peso, para estar na moda, com maquiagem e depilação perfeita toda manhã.

Mas ninguém sofria como Cora. Ela via com clareza que ela não se encaixava entre nós. Não apenas na questão do peso dela, que estava sempre no limite, mas também em todas as outras coisas. Ela não se interessava pelas músicas que ouvíamos ou pelos assuntos que conversávamos. Eu falava mal de todas as nossas colegas e professores e ela apenas escutava quieta, com um sorrisinho.

Claro que Cora era uma boa menina e não queria fofocar sobre ninguém. Aquela suposta pureza me dava raiva. Então Milo gostava de boas garotas? Mas por que Cora queria ser uma garota má? Ela só fingia ser uma, pois não conseguia. Assim como 17.

Mas até as meninas boazinhas sentiam inveja de mim, uma garota genuinamente má. E queriam ser como eu. Porque eu era popular, engraçada, descolada. Até mesmo minhas inimigas, que criticavam meu clube, me invejavam.

— Tem razão, Zoe — disse Cora, um dia — meu cabelo começou a cair e minha menstruação parou. Exatamente como você disse. E minhas unhas estão quebrando.

Ela me mostrou as unhas rachadas e os tufos de cabelo que estava perdendo.

— Estou com medo — ela disse.

— Saia do clube — mandei — antes que eu te expulse!

Eu não sabia mais o que fazer com aquela menina. Atualmente, ela estava com IMC 18,5, para me imitar. Para ser como eu. Ela usava roupas parecidas com as minhas. Estava até me imitando no modo de falar. E parecia muito orgulhosa por estar perdendo cabelo e por sua menstruação ter parado, pois eu disse que aquilo já tinha acontecido comigo.

Se eu a expulsasse, ela poderia ficar chocada e até cometer suicídio por ter sido mandada pra fora. Afinal, naqueles tempos ela estava puxando meu saco quase tanto quanto 17. Ela ria das minhas piadas mesmo quando não eram engraçadas, só pra me agradar. Ela até tentava falar mal de algumas das nossas colegas, mas as críticas dela eram tão leves e bobas que eu sentia pena.

— Por favor, não me expulse do clube! — implorou Cora — é tão legal aqui! Eu me sinto tão poderosa por ter amigas tão estilosas!

É como se o clube fosse o mundo todo de Cora. Ela era meio parecida com Milo nisso: sempre foi a garota quietinha da sala de aula. Ela estava sendo popular pela primeira vez e gostou de provar do sabor do poder. Ela não queria voltar a ser uma ninguém de novo.

— Vá lá comer um hambúrguer barato com Milo e voltar a ter IMC 19 — falei — retorne para sua vida normal e patética.

— Milo te odeia — observou Cora.

Eu ri.

— É claro que ele me odeia — falei — eu transformei a namorada boazinha dele numa menina superficial que só liga pra sapatos e dietas. Antes você lia Shakespeare e agora só lê rótulos de calorias.

As outras meninas do clube que escutaram gargalharam da minha piada. Todas aquelas beldades de longos cabelos chapados, shorts curtíssimos e barriga de fora.

Uma vez Milo passou no corredor e eu joguei um copo de suco na cara dele, só pra zoar.

Milo ficou ali parado no corredor, sem reação. Cora estava junto comigo e não fez nada. Ela apenas seguiu ao meu lado com as outras meninas e riu conosco.

Sim, Cora já tinha vendido a alma pro diabo. E o diabo era eu.

Não eram só as princesas da Disney que tinham IMC 18. Satanás também. Eu entendi isso naquele dia e me senti orgulhosa.

Cora colocou um piercing no umbigo e outro na língua, só pra me imitar. Percebi que Cora andava falando alguns palavrões ultimamente. Ela não era disso.

Cora andava muito louca naqueles tempos. Ela raramente bebia, mas percebi que em algumas festinhas do clube ela se excedeu na bebida. E um dia ela apareceu no clube sem calcinha. Na hora de ela se pesar, foi um escândalo, pois ela esqueceu que estava sem calcinha. E 17, é claro, salvou a pele dela.

— Pode deixar que eu tenho uma calcinha extra na mochila! — informou 17, contente.

— É claro que você tem… — eu revirei os olhos.

— Tive uma noite quente na casa do meu namorado e esqueci a calcinha lá — comentou Cora, se achando.

Resolvi não fazer nenhum comentário. Conhecendo Milo, a noite quente dos dois foi olhar um para a cara do outro, pelados, e não fazer absolutamente nada. Eles ainda eram crianças.

O sofrimento de Cora estava no ápice algumas semanas antes de sua morte. Antes ela parecia extremamente triste e constantemente deprimida. De repente, do nada, ela estava transbordando de felicidade. Mas eu sabia que era só fachada. Ela estava fingindo.

Ela chegava no clube cumprimentando todo mundo, com alegria, e mostrando vídeos idiotas no celular. Falava bem alto e criticava todas as meninas que via nos vídeos do TikTok, sem motivo nenhum.

— Olha só essa menina gorda que está dançando — ela disse — cheia de celulite, muito feia!

A menina do vídeo em questão era extremamente linda e provavelmente mais magra que eu. Se ela tinha celulite, eu nem teria reparado, de tão bonita que ela era.

— Nossa, que obesa! — 17 conseguiu fazer um comentário mais idiota do que Cora — ela devia ter vergonha de dançar com esse corpo.

Será que elas estavam bêbadas ou alucinando? Meu Deus, aquela menina devia ter uns 40 quilos. Onde elas estavam vendo gordura? Eu analisei o vídeo com mais atenção.

— Ela é linda e magra — resolvi dizer — mas a roupa dela é horrível. Ela não sabe absolutamente nada sobre moda.

— Tem razão, mestra — falou 17 — ela não sabe absolutamente nada.

— Roupa horrível mesmo — concordou Cora.

As duas só repetiam o que eu dizia e puxavam meu saco. Aquilo era cansativo e chato. Eu não precisava de outra 17.

No dia seguinte, eu anunciei:

— Quando for verão, será a temporada dos biquinis. Nessa época, o Clube 18 só permite IMC até no máximo 18,5. Não podemos ter barriga nas fotos de biquini. Quando acabar a temporada do verão, podem voltar para 18,8, mas não antes.

Cora ficou chocada com a notícia. Naquele dia, seu IMC era 18,6. Ela voltou a fazer jejuns mais rigorosos.

— Não exagere — avisei — ainda falta um tempo até o verão.

— Mas não quero estragar nossas fotos com minha barriga feia! — falou Cora.

— Você nem tem barriga, sua anta… — falei — foi só um modo de falar. Aposto que você vai ficar linda de biquini.

Talvez fosse a primeira vez que eu elogiasse Cora, pois ela olhou pra mim como se eu tivesse dado mil reais pra ela.

— Muito obrigada, líder! — exclamou Cora, com os olhos brilhando — vou comprar um biquini bem caro e lindo!

— Vai ter que se maquiar e fazer o cabelo pras fotos de biquini também — avisei — mesmo que a gente pule na piscina em seguida pro vídeo. Vamos arruinar horas de tratamento de cabelo e maquiagem, mas fazer o quê… verão é sempre um pesadelo.

Cora riu. Mas foi um riso meio forçado. No fundo, ela odiava muito tudo aquilo. Talvez eu também odiasse.

Uma semana antes de sua morte, Cora já tinha iniciado a “operação verão” e nem era primavera ainda. Eu a chamei de ridícula, mas ela me ignorou.

Um dia antes de sua morte, Cora foi falar comigo no clube.

— Eu sinto meu coração batendo de forma meio estranha — me informou Cora — isso é normal?

— Está fazendo jejum de novo? — perguntei.

— Mais ou menos — disse Cora — não é jejum total. Estou comendo só alface essa semana.

— Só alface? — perguntei, estranhando — você nem gosta de salada.

— Estou tentando me forçar a gostar — falou Cora — se eu transformar as horas das refeições em sofrimento, eu vou comer menos.

— Comer fibras é saudável, mas o seu corpo precisa de proteína também — falei.

— Vou voltar a comer proteína assim que eu chegar no peso que quero — falou Cora — estou quase lá.

— Seu IMC já está 18,2 — falei — está bom assim.

— Mas eu queria exatamente 18 — disse Cora — que nem as princesas da Disney.

— As princesas da Disney não têm IMC 18 — informei — isso é só um rumor da internet inventado por meninas ridículas que não têm mais o que fazer. Além do mais, as princesas da Disney não existem. São personagens. Você já tem seu príncipe e pode viver feliz pra sempre com ele. Mas só se estiver viva.

Cora riu.

— É claro que as princesas da Disney têm IMC 18 ou até menos — falou Cora — só pode ser, com aquela cinturinha…

— Acho que nem alguém com IMC 16 teria aquela cintura — comentei.

Cora gargalhou. Aquilo estava ficando irritante. Ela não precisava rir tanto de cada frase que eu falava. Era forçado demais.

— Cora — eu disse — falando sério agora, se você sente que seu coração está batendo de forma estranha, você devia ir ao médico.

— Eu não! — exclamou Cora — um médico vai vir com a mesma conversa patética pra cima de mim. Ele vai dizer que qualquer IMC abaixo de 18,5 não é saudável. O que é uma grande bobagem. Sabemos que há muitas meninas com IMC 18 ou menos bem mais saudáveis do que muita gente de IMC 19 ou 20 que come um monte de porcaria…

Meu Deus, Cora estava repetindo todas as coisas que eu disse. Aquilo estava ficando meio assustador. Era aterrorizante escutar a mim mesma, da boca de outra pessoa. De uma das fanáticas que me idolatrava. Eu tinha mesmo criado uma seita. A seita da Barbie.

— Eu também já fiz jejuns de uns 3 dias — falei — quando eu não bebia muita água, eu também sentia meu coração batendo de forma estranha. Eu sentia dor no corpo, porque o sangue tinha dificuldade de chegar até minhas extremidades. Sentia dor nas mãos, nos braços. Dor de cabeça, tontura. Alguns jejuns podem causar isso. E pode ser perigoso. Jejuns devem ser feitos com cuidado.

— Blá, blá, blá — disse Cora — nem parece você falando, Zoe. Você já foi parar no hospital por intoxicação alimentar, né?

— Sim, duas vezes — respondi — por causa de jejuns malucos. Minha imunidade baixou muito por causa dos jejuns. Fazer jejuns malucos uma ou outra vez na vida pode ser uma experiência interessante e intrigante, até pode desintoxicar o corpo. Mas porra Cora, você está exagerando! Jejum de alface, que merda é essa?

— Alface é saudável.

— Você não é um coelho! — exclamei — seu corpo precisa de outras coisas além de alface.

— As plantas vivem de luz solar… ai!

Dei um tapa na cabeça de Cora, como eu fazia com 17.

— Plantas não sentem dor quando eu dou um tapa nelas — argumentei — é perigoso mudar sua alimentação radicalmente de uma vez só. Seu intestino tem bactérias que processam seu alimento. Quando você muda tudo muito rápido, aquelas bactérias morrem. Você pode passar mal, ter diarreia, vômito, tontura, desmaiar…

— Eu já tive tudo isso — argumentei Cora — estou acostumada. Fiz vários experimentos com alimentação nos últimos meses.

— Alface pode ter larva se você não lavar bem — eu estava tentando achar alguma argumentação que a convencesse — e como sua imunidade está baixa, uma intoxicação alimentar pode te derrubar. Se quer comer apenas um tipo de vegetal, opte por um alimento cozido, que é mais seguro. Dizem que o cérebro humano só começou a se desenvolver mais quando começamos a consumir alimentos cozidos. Se você só comer coisas cruas…

— Onde está a Zoe e o que fizeram com ela? — perguntou Cora — você é minha mãe por acaso?

— Eu vou me foder se algo acontecer com você — falou Zoe — porque eu sou a líder dessa merda de clube. Deixei bem claro que seu peso já está bom e que você não precisa emagrecer mais.

— Você não deixou claro merda nenhuma! — gritou Cora — você só gosta de mim agora porque estou com 18,2 de IMC! Quando eu estava com 18,9, você ameaçou me expulsar. Das duas vezes! Você me tratou feito lixo! Você só é queridinha, manda beijinhos e finge que gosta de mim quando sou magra!

— Eu sempre te tratei feito lixo — retruquei — eu te trato assim até agora. Nunca fingi gostar de você. Nunca gostei de você, cara. Não me acuse de ser falsa. Eu sou igualmente mal educada com todos os membros do clube. Todas são lixo igual!

Dessa vez Cora riu.

— Tem razão, como pude me esquecer disso? — ela ironizou — é claro que a rainha do clube considera todas as meninas do mundo como lixo. Porque você tem inveja de todas nós! Você só quer vigiar suas rivais e mantê-las na coleira!

— Que comentário machista — disse Zoe — meninas podem ter amigas sem sentir inveja umas das outras.

— Mas essas meninas não se chamam Zoe — retrucou Cora — você estragou minha vida, sabia? Meu namoro está uma merda por sua causa. Meu relacionamento com meus pais também. Não tenho mais amigas lá fora, só no clube. As outras meninas me abandonaram. Todos odeiam minhas dietas malucas. E todos reclamam que gasto demais em roupas. Dizem que você fez minha cabeça.

— Você nunca teve amigas lá fora, não minta! — gritei — você entrou pro clube na sua tentativa idiota de fazer amigas pela primeira vez, mas nem isso você conseguiu. Seu namorado é um perdedor. Você quer ser uma perdedora também e viver como todas as outras pessoas vivem? Sendo feia e se contentando com pouco? Ter uma vidinha medíocre? Você sabe que o Clube 18 foi sua primeira oportunidade de brilhar. Talvez a única que tenha na vida. Você nunca teve tantas curtidas e comentários no TikTok.

— Eu não ligo pra nada disso! — berrou Cora, começando a chorar — eu só quero comer… pelo menos uma refeição normal, sem preocupações. Sem ficar contando mordidas. Sem fazer jejuns de 24h toda vez que eu engordo 200 gramas.

Eu odiava quando Cora chorava. Ela fazia aquilo com frequência.

— Aí está você, se fazendo de vítima outra vez! — exclamei — eu estraguei sua vida? Eu fiz sua cabeça? Você entrou no clube porque quis! Eu já tentei te expulsar várias vezes. Não fale como se eu te obrigasse a estar aqui. Se não gosta, apenas saia, merda! Eu sempre te achei a mais medíocre do clube. Não importa seu peso, você é apenas… uma fraude. Você finge que é legal, mas você não é engraçada, nem sabe dançar e só repete o que os outros falam. Até 17 é mais legal que você.

Aquela minha última frase era uma grande ofensa. Até eu sabia disso.

Cora ficou quieta. Parecia em choque. Então eu prossegui:

— Todos odeiam suas “dietas malucas” e seus gastos em roupas? Que piada! A maior parte das outras pessoas também come um monte de porcaria, mas em grande quantidade. Elas também morrem por comer mal, mas a diferença é que morrem de doenças que demoram um pouco mais para aparecer. As “pessoas de IMC normal” também tentam perder peso e fazem dietas e talvez sofram até mais, porque quanto mais peso se ganha, mais é difícil voltar atrás.

— Mas toda a sociedade é construída em torno das pessoas de IMC normal — argumentou Cora — eles não fazem um hambúrguer em tamanho mini para meu consumo, que seja adequado pro meu IMC. Eles não servem bebidas de 100ml. Sempre tenho que dividir minhas comidas com alguém quando como fora, ou guardar para levar, porque as porções não são feitas pra alguém com nosso IMC e acabo sempre virando motivo de crítica e piada por comer pouco…

Ela ainda estava chorando ao dizer isso.

— Sim, não dá pra ter uma vida social normal pesando pouco — concordei — sair para comer com amigos e pedir uma porção normal de comida num restaurante significa que aquela será nossa única refeição no dia. Vamos precisar de um jejum de 24h para recuperar o meio quilo que ganhamos naquela única refeição.

— Exatamente! — exclamou Cora, com os olhos brilhando de tristeza e talvez esperança — você me entende!

— E sobre as roupas, sim, mulheres precisam de muitas roupas — falei — uma vez uma garota me chamou de porca porque usei a mesma saia três dias seguidos. Ela disse que eu não lavava minhas roupas e só tinha essa saia. Nunca mais me esqueci disso.

— É melhor nunca ter nascido do que nascer mulher — concluiu Cora — acho que eu só nasci pra sofrer. Eu queria não me importar com o que os outros falam de mim, mas… é difícil. Falam mal de Milo também, mas é diferente. Se Milo usa roupas velhas e se eu uso roupas velhas… você sabe que não é a mesma coisa.

— Eu sei — falei — Vance é descolado quando usa tênis velhos e cheios de lama. Significa que ele anda treinando muito futebol. Mas eu, ser vista com um tênis velho? Seria minha sentença de morte.

— Eu tô cansada — confessou Cora — muito cansada. Eu só queria… sumir. Dormir. E não acordar mais.

— Eu também — admiti.

Ficamos em silêncio por alguns segundos.

— Não sei se vou continuar no clube — comentou Cora — talvez eu seja muito fraca pro Clube 18. Talvez eu simplesmente não me encaixe aqui, como você falou. Eu só queria ter uma vida calma e simples com o Milo. Só isso. Não me importo em ser medíocre. Só queria um pouco de paz.

Talvez eu também quisesse. Era cansativo ficar com Vance. Às vezes ele era mais parecido comigo do que eu gostava de admitir. Ele era extremamente competitivo e odiava perder. Sempre queria ganhar no futebol, ter mais músculos que todo mundo. Ele queria ser o melhor de todos, tanto no futebol quanto na academia. Era exaustivo estar com ele, pois eu me via nele e odiava o que via.

Quem sabe ter um namorado como Milo me fizesse bem. Ele era uma pessoa quieta, tímida, calma, gentil. Ou ao menos era essa impressão que eu tinha dele, pelo que eu via na aula e nas redes sociais.

Vance era intenso demais, como eu. Em ritmo acelerado. Milo era fofo. Se eu quisesse ter mais equilíbrio na minha vida, talvez a solução fosse estar ao lado de alguém como Milo. Às vezes eu gostava mais dele do que eu queria admitir. Eu provavelmente tinha inveja da vida normal que ele levava. Pois naquele ponto minha vida era tudo, menos normal.

Eu tinha transformado minha vida num inferno, mas ainda dava tempo de reverter. Infelizmente, Cora não teria mais tempo.

Naquele dia, naquele momento que conversamos, eu não sabia que a vida dela chegaria ao fim em menos de 24h. Se eu soubesse, será que eu teria dito coisas diferentes pra ela? Eu me pergunto…

Cora levantou-se.

— Vou embora agora — ela me disse — tenho um encontro com Milo hoje de tarde. Não vou lanchar com ele, porque atualmente só estou comendo alface, mas vamos conversar…

Tive que segurar o riso. Aquela última frase ficou estranhamente esquisita e engraçada.

— Não esqueça de beber água — recomendei — você anda com uma garrafinha d’água por aí?

Cora mostrou a garrafinha de sua mochila, orgulhosa.

— Muito bem — elogiei — essa é minha garota!

Cora sorriu.

— Achei que você não gostasse de mim — observou Cora.

— Não gosto mesmo — confirmei — tenho inveja de você, porque atualmente seu IMC é menor que o meu. Também tenho inveja porque você tem um namorado legal.

— Mas você tem Vance… — observou Cora — literalmente toda menina do colégio gostaria de namorar Vance.

— Eu e ele não somos namorados, apenas ficantes — expliquei — Vance tem um rosto lindo e um corpo perfeito. Ele tem 1,90, ele é gostoso pra caralho. Mas… ele é a versão masculina da Zoe: perfeito por fora e podre por dentro.

— Ah… sinto muito — disse Cora — deve ser muito difícil conversar com você mesma.

— Sim, eu não aguento nem a mim mesma e preciso aguentar Vance também — falei — mas ele não é completamente chato. Tem coisas legais em Vance também. Eu espero sinceramente que tenha coisas legais em mim também, além da aparência…

Cora não disse nada. Eu entendi o recado. Nós duas rimos juntas.

— Amanhã de manhã te informo o que decidi — falou Cora — se irei continuar no clube ou não. Se eu decidir sair… você vai me deixar ir embora, de boa?

Seria um golpe forte perder Cora. Apesar de não ir muito com a cara dela, eu já tinha me acostumado com a presença dela no clube. Mas também era cansativo ser a babá daquela criança. Pelo menos assim eu iria me livrar dessa responsabilidade.

— Sim, pode ir, com minha bênção, se for isso o que decidir — falei — tome uma decisão bem pensada para o que for melhor pra você e não se preocupe.

Eram palavras incomumente gentis da minha parte. Mas eu também tinha meus bons momentos.

— Obrigada — ela sorriu — eu queria muito ficar, mas… é difícil.

— Eu sei.

— Sempre vai ter nossas fotos e vídeos pra relembrar os bons momentos — disse Cora — porque também teve bons momentos…

É. O Clube 18 também tinha bons momentos, embora fosse difícil acreditar nisso. E quem via nossas fotos e vídeos nem imaginava o extremo sofrimento que ocorria nos bastidores. Só o pessoal do nosso colégio, quando me via expulsando alguma menina aos gritos no corredor, tinha alguma ideia.

— Vá logo pro seu encontro — falei — você vai chegar atrasada.

— Verdade. Até mais, Zoe!

— Até…

E essas foram as últimas palavras que troquei com Cora. Nada de especial, nenhuma frase de efeito. Foi sorte eu não ter discutido com ela da última vez que nos falamos, pois nós discutíamos com frequência.

Mesmo assim, essa última conversa não foram apenas flores. Cora chorou. Eu a critiquei. Talvez ela apenas fingisse estar bem. Ela sorriu, mas já estava falando sobre sair do clube. É claro que ela não estava bem naquele dia.

Cora não estava fisicamente bem. Estava fraca, comendo apenas alface há quase uma semana. Mas psicologicamente ela também estava em péssimo estado. Ela estava deprimida e pensando em morrer.

E, pensando bem, aquela nossa última conversa soou mais como uma despedida. Como se ela já estivesse desconfiando que fosse morrer em breve.

Será que eu devia ter sido mais crítica com ela? Sobre ela estar comendo só alface. Eu sabia que aquilo era completamente errado, mas Cora já tinha feito vários jejuns e dietas malucas antes e se safado. Não achei que seria logo a alface a matá-la.

Será que eu devia tê-la convidado para fazermos um lanche juntas? Será que, se eu tivesse saído para almoçar com Cora, qualquer coisa mais consistente que alface, eu poderia ter salvado a vida dela?

Não sei. E não adiantava mais pensar em tudo aquilo. Eu falei para ela o que estava ao meu alcance. Não sei mais o que eu poderia ter feito.

Eu sabia que ela estava fazendo uma dieta de alface e estava bem deprimida principalmente por causa das regras extremas que eu impus no Clube 18. Portanto, é verdade que, indiretamente, ela morreu por minha causa. Não vou fugir da responsabilidade.

Mesmo assim, ela não estava exatamente feliz desde antes de entrar pro clube. Mesmo namorando Milo. Ainda tinha uma parte dela que precisava de algo mais. Ela achou que o Clube 18 era a resposta. Mas foi a resposta errada. A pior possível.

Naquele dia fiquei no clube por mais tempo, mesmo depois que a aula acabou. Não sei porquê. Convidei 17 para revisar uns papéis comigo. Estávamos selecionando marcas de perfume na internet.

Duas horas depois, quando Milo entrou na sala do clube, só estávamos eu e 17 lá. Fiquei surpresa ao vê-lo.

— Vocês viram Cora por aí? — perguntou Milo.

— Não… — respondeu 17.

— Falei com ela 2h atrás — informei — ela disse que ia para um encontro com você.

— É, mas ela não apareceu no encontro e não deu notícias — disse Milo — fiquei preocupado. Achei que ela ainda podia estar presa no clube.

— Eu não “prendo” pessoas aqui — retruquei, ofendida — só 17, porque ela é minha vice e secretária e faz tudo que eu mando.

Milo não parecia muito interessado em 17. Ele continuou me olhando, desconfiado.

— Você falou alguma coisa estranha pra ela? — ele perguntou.

— Como assim, estranha? — perguntei.

— Vocês discutiram? — perguntou Milo.

— Não — respondi — conversamos como sempre. E nos despedimos numa boa.

Discutir com Cora era rotina pra mim, então não achei nada de estranho. Achei inclusive incomum termos terminado aquela conversa em bons termos.

Talvez Cora quisesse partir para o outro mundo em paz comigo. Pensando em retrospecto, talvez foi por isso que ela forçou uma despedida pacífica entre nós.

— Ela não atende o celular — explicou Milo — fui pra casa dela e os pais dela disseram que Cora não voltou pra casa depois da aula.

— Hmmm — comentei, sem muito interesse — quem sabe ela está te traindo? Será que ela está tendo um caso? É com isso que você está preocupado?

— Claro que não! — falou Milo — eu confio em Cora! Além do mais, se ela quisesse me trair, não teria marcado um encontro comigo. Ela teria dado uma desculpa, dizendo que marcou dentista ou algo assim.

— Faz sentido — concordei — mas isso não é problema meu. Cora é apenas membro do meu clube. Ela não é minha amiga. Nunca fui na casa dela e não faço a menor ideia do que ela faz no dia a dia.

Milo me fitou com irritação. Até que ele ficava sexy quando estava puto da cara. Era divertido provocá-lo.

— Obrigado por não me ajudar em nada — disse Milo, sarcasticamente — eu sei que pra você seus membros só são acessórios bonitos pras suas fotos e vídeos e não pessoas.

— Ainda bem que você entendeu rápido essa verdade simples — comentei — Cora pareceu meio confusa, achando que ia entrar pro Clube 18 para fazer amigas, em vez de encarar meu clube como um programa eficiente para perda de peso.

Eu ri e 17 me acompanhou logo em seguida no riso. Milo continuou de cara fechada.

— Você sabe que ela está comendo só alface nos últimos dias? — perguntou Milo.

— Claro que sei — respondi — mas não fui eu que a mandei fazer isso. Até tentei impedi-la, mas não posso obrigá-la.

— Ela está fazendo isso por causa das regras absurdas do seu clube! — Milo me acusou.

— Eu disse a Cora que ela já está com peso adequado e não precisa emagrecer mais, mas ela não me escuta — retruquei.

— Cora quer perder mais peso do que o mínimo necessário, para não correr o risco de ser expulsa! — argumentou Milo — então, sim, você é indiretamente responsável por essa situação!

Eu entendia a lógica dele, mas era difícil concordar com aquela acusação.

— Não há mais nada que eu possa fazer por você — declarei — então, se não tem mais nada a dizer, saia daqui. Estou muito ocupada selecionando perfumes para o próximo evento do clube.

— Se Cora passar mal por causa dessa dieta… — ameaçou Milo.

— Isso não tem nada a ver comigo — defendi-me — Cora já é bem grandinha para se cuidar. Ela não é mais uma criança. Eu não sou a babá dela. Pessoas precisam comer para sobreviver. Ela não é um coelho pra comer só alface. Se ela não entendeu algo tão simples, desculpe, mas sua namorada é uma imbecil. Vá procurar outra.

Milo me fitou sem acreditar e saiu de lá sem dizer mais nada.

Eu o ignorei. Minha pesquisa sobre perfumes se estendeu por longas horas. Não dava para acreditar que eu fiquei no colégio até o fim da tarde num dia de semana. Os membros do clube deviam valorizar mais meu esforço. Eu realmente fazia de tudo para fazer o Clube 18 brilhar…

Fiquei surpresa quando vi Briana entrar na sala do clube perto das quatro da tarde.

— Esqueceu alguma coisa aqui? — perguntei.

— Me disseram que Cora foi pro hospital — disse Briana — vocês sabiam?

— Ah, é? — perguntei, meio surpresa, embora não fosse assim tão inesperado — o que ela tem?

Eu já desconfiava.

— Intoxicação alimentar — informou Briana — acho que ela comeu algo estragado ou algo assim.

— Será que foi… alface? — perguntou 17.

Eu e 17 desatamos a rir. Obviamente, não podia ter sido outra coisa. Esse enigma era extremamente fácil.

Briana não entendeu o motivo do nosso riso.

— Cora está mal mesmo — informou Briana — parece que foi grave. Ela teve diarreia, vômitos e está até com dificuldade respiratória.

Eu já fui internada no hospital por intoxicação alimentar, com diarreia e vômitos. Mas… dificuldade respiratória? Ela estava tão mal assim?

— Cora provavelmente vai sair do clube amanhã — informei — ela já estava insinuando hoje que talvez saísse. Depois dessa, acho que ela vai se assustar. Pelo menos pra isso vai ser bom.

— Até que ela durou bastante no clube — comentou 17, despreocupada — não achei que fosse durar tanto.

— Você sabe que o namorado dela vai te culpar pelo que aconteceu — disse Briana.

— Ele já me culpou — informei — ele veio aqui duas horas atrás me acusar. Vou ter que ouvir muita coisa amanhã, com certeza. Pelo menos depois dessa bosta, Cora vai sair do clube e vou parar de ouvir desaforo daquele panaca de merda. Eu devia ter feito mais bullying nele, pra ele se assustar mais comigo e não pisar mais os pés aqui.

Infelizmente, o pior aconteceu. Na manhã seguinte, o professor do primeiro período estava com uma expressão sombria quando entrou na sala de aula.

— Sentem-se e fiquem quietos! — ele mandou — tenho um anúncio importante para dar.

Ninguém fazia a menor ideia do que fosse, mas aquilo era extremamente incomum. Então todo mundo se sentou e calou a boca para escutar.

— É com grande tristeza que venho informar a todos que a colega de vocês, Cora, faleceu nessa madrugada — disse nosso professor.

Senti uma sensação horrível no peito. Não. Aquilo não podia ser verdade.

Estranhei que Milo estivesse atrasado naquele dia, mas agora fazia sentido. Ele provavelmente não viria na aula. Na verdade, ele faltaria por uma semana inteira.

Até para mim, que sabia que Cora estava no hospital, aquela notícia foi um baque. Para quase todos os outros alunos, que não sabiam de nada, aquilo foi completamente inesperado.

Alguns alunos choraram. De imediato. Fiquei bem surpresa com aquilo. Cora não tinha amigos naquela sala. Mas eles sabiam quem ela era, é claro.

Até mesmo eu senti vontade de chorar, mas me contive. Escutei o professor explicar o resto.

— Ela morreu no hospital — ele informou — vítima de uma intoxicação alimentar.

Percebi claramente alguns olhares na minha direção quando o termo “intoxicação alimentar” foi mencionado. Afinal, todos sabiam que Cora era membro do Clube 18. E muitos acompanhavam nossas redes sociais. Eles tinham uma ideia do que fazíamos naquele clube.

Eu sabia o que todos deviam estar pensando: que mandei Cora fazer alguma dieta absurda, algum jogo ou desafio do clube, e que ela tinha morrido por causa disso.

Sim, tínhamos alguns jogos ou desafios. Tínhamos a “brincadeira” de fazer cortes no braço com estilete cada vez que burlássemos algum ponto da nossa dieta. Mas nada que ameaçasse nossa vida.

Merda. Todos iam pensar que Cora morreu por minha causa. Milo com certeza já pensava isso, mesmo depois de eu deixar tudo claro. Ele devia estar me odiando agora.

— A aula desse primeiro período está suspensa — declarou o professor, notando que alguns alunos estavam chorando ou quase chorando — darei espaço para o luto de vocês. Se estiverem em condições, retomaremos a aula no segundo período.

O professor saiu da sala. Assim que ele saiu, o assunto explodiu. Vários alunos começaram a chorar forte e a se abraçar. E outros começaram a fofocar sobre o que tinha acontecido. Estavam todos chocados.

Tentei sair da sala de fininho, mas não consegui.

— Ei, Zoe! — disse Ramiro, um colega meu particularmente fofoqueiro — o que você mandou Cora comer ontem?

Quase todos olharam pra mim. Aquilo era irritante.

— Eu não tenho nada a ver com isso — respondi, de mau humor — não me enche.

— Não foge, não foge!

Tentei sair da sala, mas Ramiro me barrou na porta.

— Você deve saber de alguma coisa — insistiu Ramiro — então conta o que você sabe.

— Eu não sei de nada! — defendi-me — me deixa passar, seu merda, ou vou te bater!

Dessa vez Ramiro se sentiu intimidado e me deu passagem. Mesmo assim, ele ainda gritou lá de dentro da sala:

— Assassina!

Senti vontade de voltar e socá-lo, mas eu me contive.

Pensei em entrar no banheiro feminino logo à frente, mas mudei de ideia. Lá já havia algumas colegas nossas chorando, então fui no banheiro no andar de baixo.

Entrei num banheiro vazio e me tranquei numa das portas. Sentei no chão e desatei a chorar.

— Porra, Cora… por quê…?

Por que eu estava chorando? Por tantas coisas que eu nem mesmo sabia o que pesava mais.

Eu criei o Clube 18 no primeiro ano do ensino médio. Ele já existia há mais de dois anos. Nenhum membro, novo ou antigo do clube, jamais tinha morrido. Sim, algumas meninas tinham desmaiado ou ido parar no hospital. Mas nada muito grave.

Aquilo era diferente. Sim, iam me culpar. Aquilo era só o começo. Eu seria confrontada e não seria bonito.

Por que Cora fez aquilo comigo? Ela me odiava? E por que eu fiz aquilo com aquela menina?

Eu não queria que ela tivesse morrido. Mesmo que eu desejasse que ela e Milo terminassem o namoro. Não queria que tivesse sido assim.

Cora tinha morrido aos 17 anos e era um cadáver magro, jovem e lindo. A morte gloriosa que um membro do Clube 18 sonharia em ter. Uma morte extremamente romântica.

Não. Eu estava apenas embelezando a situação. Provavelmente foi uma morte dolorosa e sofrida. Será que Milo estava com ela? Será que segurou a mão dela no momento final? Ou Cora morreu sozinha e com medo?

Eu não sabia. Um dia eu queria conversar com Milo sobre isso. Não sabia se ele aceitaria. Eu teria coragem de pedir uma conversa como aquela?

Cora finalmente se libertou daquele mundo de merda. Meu Deus, eu tinha dezenas de fotos e vídeos com ela. Eu poderia vê-la dançar de novo, ouvir a voz dela dando dicas de moda.

Será que foi uma boa ideia gravar aqueles vídeos e tirar tantas fotos? Agora eles quase pareciam uma maldição. Será que não era melhor eu apagar toda as fotos e vídeos que Cora aparecia? Eu devia fazer aquilo imediatamente ou esperar? Apagar significava que eu me considerava culpada? Do que eu tinha medo?

Acessei o Instagram e o TikTok: as fotos e vídeos em que Cora aparecia, principalmente os últimos, estavam com um número anormal de visualizações e comentários. E aquilo só iria aumentar ao longo daquele dia, quando mais pessoas ficassem sabendo do ocorrido.

Alguns comentários eram pacíficos, como: “Descanse em paz, menina linda”, mas outros eram assustadores. Havia um que dizia: “Ela morreu por causa desse clube de merda” e outro dizia “Zoe assassina”.

Morrendo de medo e com as mãos trêmulas, apaguei esses comentários imediatamente. Sim, era melhor eu apagar logo os vídeos e fotos dela. De qualquer forma, eu tinha todos eles no meu email, caso eu precisasse acessá-los um dia.

Apaguei tudo. Aquilo deu trabalho, pois Cora fez parte do clube por vários meses e aparecia muito em nossas redes sociais.

Mas apagar as mídias que ela aparecia não impediu mais comentários. As pessoas continuaram postando. E somou-se a isso acusações de que eu tinha apagado tudo porque eu fui responsável pela morte de Cora.

Limpei as lágrimas e me levantei. Convoquei todos os membros do Clube 18 para uma reunião urgente e fechei a porta da sala.

Todas as meninas me encararam, esperando explicações.

— Vocês já devem estar sabendo que Cora morreu — eu comecei assim — estou muito triste. Imagino que vocês também estejam. Mas gostaria de deixar claro que eu não tive nada a ver com isso.

Expliquei rapidamente a situação: sobre a dieta de alfaces e como tentei impedi-la. Alguns membros do clube já sabiam uma parte da história.

— Eu entendo que não foi culpa sua, Zoe — disse Cristina, um dos membros do clube — mesmo assim, depois disso eu fiquei com medo. Vou sair do clube hoje, se você não se importa.

— Não me importo — falei, secamente — pode sair.

Pensei em dizer que Cristina era um membro dispensável, então não faria muita diferença se ela saísse ou não. Mas eu não disse isso. Também pensei em dizer: “Se você quer uma desculpa para comer e voltar a ser gorda, pode sair”, mas seria muito cruel.

Nem eu estava no clima para ser grossa naquela situação. Podia ser difícil acreditar, mas eu estava triste de verdade. Estava arrasada. E não só porque eu era líder do clube que foi indiretamente responsável pela morte dela.

Cora tinha morrido. Morrido mesmo. Pluft! Desaparecido desse mundo assim, sem mais nem menos. Talvez ela tenha sido a primeira pessoa mais ou menos próxima de mim que perdi.

Tecnicamente, eu e vários membros do clube podíamos ser diaganosticadas com transtorno alimentar de anorexia nervosa se fôssemos marcar consulta com um médico. Cora também. Eu disse a Cora que 1 ou 2 em cada 10 pessoas com anorexia morria. Isso significava que Cora fazia parte dessa estatística agora. O clube tinha cerca de dez membros, então podia ter acontecido com qualquer uma de nós.

Sim, eu já tinha ido para o hospital duas vezes. Outros membros também. Podíamos ter morrido. Ou mais alguém poderia morrer até o fim do ano.

Entendi porque Cristina decidiu sair do clube. Ela não queria ser a próxima vítima. Será que eu mesma sobreviveria até o fim daquele ano?

Senti medo. Mas eu não podia simplesmente terminar o clube. Fazer isso não seria admitir minha culpa? Ou seria uma decisão responsável?

Não, eu não pediria desculpas publicamente. Eu poderia postar algo nas redes sociais, em respeito a Cora, mas jamais admitiria que o clube era responsável.

— Mestra, eu vi que você apagou todas as fotos e vídeos que Cora aparece — disse 17 — você vai dar alguma explicação sobre isso nas redes sociais? E vai postar algo sobre a morte dela?

— Talvez — falei — agora eu não tô com cabeça pra isso. Talvez à noite.

Naquele exato instante, eu não estava com cabeça para nada. Eu não estava em condições nenhuma de assistir a aula do segundo período. Por isso, peguei minha mochila na sala e simplesmente fui embora.

Vance me encontrou perto do portão principal do colégio.

— Aquela menina morreu mesmo? — ele perguntou.

— Sim — respondi, secamente.

— O que aconteceu?

— Podemos conversar mais tarde? — pedi — não tô a fim de falar sobre isso agora.

— OK — disse Vance — mas você tá bem?

— Mais ou menos.

— Se precisar de alguma coisa, me liga.

Até que às vezes ele era atencioso.

Fui direto pra casa. Deitei na cama, enterrei meu rosto no travesseiro e voltei a chorar. Mais tarde eu ia falar com minha irmã sobre isso também. Mas naquele momento eu só queria ficar um pouco sozinha. Porque estava doendo. Não somente porque a morte de Cora era dolorosa, mas também por causa de toda a situação.

Será que o colégio ia me responsabilizar? Eles podiam me obrigar a acabar com o clube? Talvez. Afinal, já tentaram fechar o clube antes, por causa de alguns boatos e acusações. Agora eles tinham um motivo oficial para isso. Ia pegar muito mal pro colégio se aquilo vazasse mais. É claro que os pais não iriam querer matricular os filhos num lugar com um clube perigoso como esse. Até porque 17 seria a nova líder quando eu me formasse no final do ano. O clube ainda iria continuar por mais um ano inteiro pelo menos, até 17 indicar sua sucessora.

Nem percebi o tempo passar. No fim da tarde, Vance foi me visitar. Permiti que ele entrasse no meu quarto.

Num primeiro momento, ele apenas sentou-se ao meu lado na minha cama e não disse nada. Tomei a iniciativa e o abracei.

— Você gostava daquela menina? — ele me perguntou.

— Não muito — respondi — sei lá. Talvez eu gostasse um pouco.

— Dói muito?

— Não sei. Eu fico pensando… poderia ter sido eu. Sabe?

— É — disse Vance — eu já te disse que esse seu clube é meio… perigoso.

— Se não fosse o clube, talvez eu não fosse tão popular e a gente nem teria se conhecido — observei.

— A gente teria se conhecido sim — falou Vance — naquele dia que você se vestiu de líder de torcida balançando pompons com aquela sua sainha minúscula para torcer pelo nosso time de futebol… fiquei caidinho por você.

— Eu me vesti de líder de torcida junto com as meninas do clube — expliquei.

— Essa é uma atividade legal do seu clube — comentou Vance — você poderia tirar suas atividades de dieta e deixar só as atividades de moda.

— Se eu fizer isso, nem eu e nem as outras garotas vamos caber mais nas nossas roupas.

— É só comprar roupas novas… — disse Vance, como se fosse óbvio — e mudar o nome do clube.

— Falar é fácil — eu disse — duvido que você tivesse ficado caidinho por mim se eu fosse uma gorda balançando pompons.

— Teria sim — afirmou Vance — talvez até mais, porque se você tivesse uns quilinhos a mais pelo menos seus peitos e suas coxas seriam maiores. Sinto falta de um pouco mais de carne pra apertar…

Vance apertou na minha bunda e eu dei um tapa nele, rindo.

— Você é péssimo para consolar uma garota em luto — falei — mas obrigada por ter vindo. Mesmo desse seu jeito desajeitado, sei que você está preocupado comigo.

Vance ainda roubou um lanche da minha geladeira antes de ir embora. Eu estava sem apetite: algo raro. A morte de Cora realmente acabou comigo, de uma forma que eu não teria conseguido prever.

Um pouco depois, minha irmã bateu na porta do meu quarto. Ela também sentou ao meu lado na minha cama e conversamos um pouco.

— Zoe… eu não vou te dizer “eu avisei” porque acho que não é isso que você precisa ouvir agora, mas… — começou Zuri — não acha que é o momento de reconsiderar as atividades do seu clube? Eu me preocupo com você, sabia? E com as outras garotas que estão lá. Principalmente agora.

— Eu… tô tão perdida.

Era uma confissão sincera. Eu sabia que eu devia acessar minhas redes sociais para dar satisfações, mas eu não sentia a menor vontade de fazer isso. Eu só queria sumir por um tempo. Como Milo fez. Mas, diferente dele, eu não podia simplesmente fugir. Eu precisava assumir minha responsabilidade de líder.

Zuri fez carinho na minha cabeça, de forma afetuosa.

— Minha maninha mais nova… sempre tão descuidada — ela disse — você sempre foi impulsiva. Nunca ligou para as consequências. Você sabe que eu te amo, né?

— Eu também te amo.

— Mas uma colega sua morreu. E… os pais dela, parentes, amigos, devem estar arrasados. Por favor, fale algo sobre isso. Não fique em silêncio. Sei que você precisa de um tempo para se recompor. Mas pelo menos hoje à noite tente escrever alguma coisa. Não espere mais.

Segui o conselho de Zuri: eu precisava falar. Naquela noite mesmo, escrevi sobre o assunto em todas as minhas redes sociais.

Talvez eu tenha sido meio covarde, não sei. Eu apenas disse que sentia muito pela morte de Cora. Não fiz nenhuma relação entre as atividades do clube e a morte dela. Por isso, recebi alguns comentários raivosos depois. Apaguei todos eles.

Na verdade, tive que bloquear novos comentários, pois aquilo estava saindo do controle. Eu já estava farta de checar minhas redes sociais. Eu só queria um pouco de paz.

Mesmo assim, fui ao colégio no dia seguinte. Eu fui chamada para conversar com a diretora. É claro que eu sabia do que se tratava.

Foi uma conversinha desagradável. Fui bem evasiva. Deixei claro que eu não tinha culpa nenhuma e insisti nisso. E disse que as atividades do clube não eram tão extremas assim.

Não, eles não iam fechar meu clube. Tive que usar argumentos manipuladores para convencer a diretora. Tive que chorar na frente dela, dizendo que estava arrasada pela morte da minha “grande amiga Cora”. Acho que ela se convenceu com o meu drama.

No intervalo, fiz um discurso infeliz na sala do clube:

— Sim, Cora morreu e isso foi horrível, mas precisamos seguir em frente. Todas nós vamos morrer um dia, mas o importante é que nosso cadáver esteja magro no momento da morte e não gordo. Cora realizou nosso sonho de morrer magra e jovem. Não é porque ela morreu que vamos deixar de nos pesar todos os dias. Por isso, podem tirar a roupa e subir na balança agora para eu calcular o IMC de vocês.

Depois desse meu discurso, perdi mais um membro do clube. Catarina ficou escandalizada com o que eu disse e simplesmente saiu de lá.

— O mundo é cruel — prossegui — ele vai julgar vocês de forma impiedosa. Os maiores atributos de uma mulher são ser bonita, jovem e magra. Quando você é magra, automaticamente se torna mais bonita e parece mais jovem. Vamos usar nossa maior arma a nosso favor.

— Zoe… — falou Briana — com todo o respeito, você já repetiu essa merda mil vezes. Cora acabou de morrer, poxa. Não é isso que precisamos ouvir agora.

— E o que você precisa ouvir? — desafiei-a — quando você fizer consulta com sua terapeuta, ela vai te dar vários discursos bonitos sobre como você tem que se amar pelo que você é, e que você não precisa se importar com a opinião dos outros. Mas na prática não é assim que funciona.

— Se o clube continuar desse jeito, você sabe que podemos ser as próximas, certo? — falou Briana — podemos morrer também, como Cora.

— Então vamos morrer!! — exclamei, como uma louca — eu aceito a morte pelo grande prêmio de ser magra! Não há nada mais importante do que ser magra, porra!! Quem concorda comigo?

É claro que a imbecil da 17 levantou a mão. Mas as outras pareceram hesitantes.

— Que monte de merda — falou Briana — eu não vou sair do clube, porque eu gosto das nossas atividades de moda e dos nossos vídeos, mas hoje eu não tô em condições de ouvir você. Voltarei amanhã. Espero que você tenha algo melhor a dizer.

Briana levantou-se e saiu da sala.

— Eu não sabia que vocês eram tão sensíveis… — comentei — ok, Cora morreu, mas pessoas morrem todos os dias. Só porque um dia vamos morrer, isso nos dá licença para engordar como um porco?

— Mestra, acho que todas nós ainda estamos tristes com a morte de Cora, porque ela era nossa amiga e companheira de clube — explicou 17 — não precisamos necessariamente mudar as atividades do clube. Mas acho que hoje você podia pegar um pouco mais leve, só enquanto as meninas ainda estão tristes…

17 falou o óbvio. Lógico que eu sabia de tudo aquilo. Ela não precisava me explicar. Eu estava sendo rude de propósito, para botar ordem e disciplina na casa.

A verdade era que eu mesma ainda estava chocada e arrasada com o que aconteceu. Eu estava completamente perdida e não sabia como lidar com aquilo. Por isso estava fazendo aquele monte de discursos cretinos.

Eu queria me defender. Não queria assumir a culpa. Queria deixar claro que a morte de Cora era um incidente isolado. Que ela foi ridícula. Que eu jamais faria algo tão imbecil quanto comer apenas alface até morrer.

Mas no fundo eu sabia que aquilo não era verdade. Eu já tinha feito muitas dietas absurdas. Talvez fizesse mais coisas assim no futuro. Quem garantia que eu não morreria em breve por causa disso?

Por que era assim tão importante pra mim ser bonita e magra? Por que eu me sacrificava tanto? Eu não podia ser apenas uma pessoa normal? Mas o que era normal, exatamente?

Uma semana depois, Milo finalmente voltou para a aula. Todos olharam pra ele. Ele parecia um zumbi. Ele estava lá, mas não estava. Com certeza ele queria desaparecer, mas não podia faltar mais, ou corria o risco de repetir o ano.

Lá estava ele, solteiro, finalmente! O menino que eu gostava. Bem, eu não matei a namorada dele de propósito. E eu nem considerava aquilo culpa minha. Mas eu ainda podia me aproveitar da situação.

Achei que Milo iria me confrontar. Que ele iria me xingar. Mas ele nem olhou na minha direção. Ele não queria saber de mim. Não tinha nada a me dizer.

Resolvi esperar um tempo. Ainda não era o momento de dar em cima dele. Quando Milo esquecesse Cora, seria a minha vez de atacar. Eu queria muito tê-lo como namorado. Eu queria experimentar ter um namoro normal, com um cara convencional.

Vance não servia pra mim. Ele era gostoso, mas eu não gostava dele de verdade pra namorar.

Se Milo se apaixonasse por mim, eu poderia provar que eu estava certa: que ser magra e bonita era algo tão poderoso que até um cara como Milo, que me odiava por várias e boas razões, podia ser presa do meu feitiço.

Mesmo assim, não foi fácil. Milo resistiu muito. Eu achei que eu tinha o controle da situação, mas eu estava errada: comecei a me apaixonar tão perdidamente por ele que doía.

Por que eu o amava tanto? Não sei. Talvez eu acreditasse que ele era a única pessoa que podia me salvar.

Claro que no fundo eu não estava satisfeita com o Clube 18. Talvez eu odiasse aquele clube superficial, que só me fazia sofrer. Ele era como um jardim em miniatura, um universo artificial, que sintetizava tudo que havia de pior no mundo.

Eu achava que se fizesse minhas seguidoras sofrerem também, eu me sentiria melhor. Mas eu não me senti melhor com a ruína e a morte de Cora.

Eu era uma pessoa profundamente infeliz e deprimida. Eu ainda tinha esperanças de encontrar felicidade em algum lugar. Talvez minha última esperança fosse o amor.

Eu era muito desajeitada, até na minha tentativa de fazer amigas. Afinal, eu queria ter amigas com o Clube 18, certo? Não foi por isso que eu o criei? Ou foi para manter minhas rivais sob controle? Para invejá-las e odiá-las?

Talvez no fundo eu fosse apenas uma menina simples, que buscava coisas modestas, como amizade e amor. Eu era apenas orgulhosa demais para admitir isso.

Por que eu precisava ser perfeita o tempo todo? Aquilo era cansativo demais. Exaustivo. Eu só queria um namoro normal e uma vida normal.

— Zoe…

— O que foi?

— Você disse que ia me contar uma história assustadora — eu disse — mas você não me contou nada que eu já não soubesse.

Eu, Milo, também passei por tudo aquilo, ao lado de Cora. É claro que eu sabia de todas aquelas coisas.

— Eu estava tentando fazer você me odiar — explicou Zoe.

— Não funcionou — eu disse — claro que fiquei com raiva de várias coisas. Você diz e faz coisas absurdas. Mas agora eu vou te contar a versão da Cora. Que você provavelmente também já sabe. Não vai ter nenhuma novidade.

Quando Cora me pediu em namoro, eu não acreditei. Ela se declarou pra mim no final da aula. Eu não tinha o que pensar. Aceitei de imediato, ainda pensando se aquilo era real.

Saímos juntos em vários encontros nas semanas seguintes. Foi mágico.

Até que ela entrou para o Clube 18. Sim, o namoro estava perfeito até aí.

— Não seja machista — disse Cora — eu também posso ter meus próprios projetos. O nosso namoro não precisa se centrar totalmente em torno de você. Você tem suas coisas e eu tenho as minhas. Cada um também precisa do seu espaço.

Tentei argumentar, mas não funcionou. O que eu ia dizer que todo mundo já não sabia? Que a líder era uma psicopata? Que as atividades daquele clube eram no mínimo suspeitas e definitivamente insanas?

Poucas semanas depois, a vida de Cora tinha mudado totalmente. Ela fez um novo corte de cabelo e todo dia dedicava muito tempo a arrumá-lo, com diferentes penteados. Ela começou a passar maquiagem regularmente e mudou completamente o guarda-roupa, com um monte de roupas novas.

Eu não vou mentir: Cora já era muito bonita quando me pediu em namoro, mas após entrar para o Clube 18, ela ficou ainda mais linda. Zoe podia até ser psicopata, mas entendia muito de moda. As dicas dela acertaram em cheio.

Quando eu saía em encontros com Cora, as pessoas ao redor olhavam: o cabelo dela não tinha um fio fora do lugar, a maquiagem ressaltava os belos traços de seu rosto e as roupas valorizavam as curvas do seu corpo. O salto a deixava mais elegante e a bolsa cara a fazia parecer uma nobre menina rica.

Eu não estava reclamando, pois Zoe transformou Cora totalmente, para melhor. Mas, sinceramente, Cora estava tão bela que eu até me sentia meio intimidado. No começo parecia até outra pessoa, uma estranha. Como se eu estivesse namorando uma modelo.

— Que exagero — Cora riu do meu comentário, mas vi que ela gostou.

— Você tem a liberdade de se vestir como quiser, é claro — falei — mas eu já gostava bastante da sua aparência anterior.

— Só porque os caras não olhavam pra mim antes na rua? — perguntou Cora — agora você fica com ciúmes. Você me prefere feia, assim você me tinha só pra você…

— Não é isso! — defendi-me — mas eu me sentia mais à vontade com você antes. Éramos mais próximos. Agora você parece meio distante…

— Sou a mesma pessoa! — ela riu — só mudei do lado de fora.

— Será mesmo?

— Agora me sinto mais confiante com minha aparência e comigo mesma. Então talvez eu esteja um pouquinho mais convencida… ou você me prefere humilde e modesta?

— Eu te amo, Cora — falei — você é fofa em todas as suas versões. Só tome cuidado com Zoe. Ela às vezes exagera um pouco…

— Eu sei — ela riu de novo — a mestra é uma figura!

— A “mestra”? — perguntei, desconfiado.

Eu não estava gostando nada daquela história. Se aquilo continuasse assim, Cora faria qualquer coisa que Zoe mandasse. Ela já tinha gastado muito dinheiro naquele monte de roupas e acessórios.

Claro, o dinheiro era dela e eu não tinha que me meter. Mesmo assim, fiquei preocupado. Não queria que Cora ficasse sem um centavo por causa das exigências de Zoe.

Antes, Cora fazia apenas penteados simples, mas bonitinhos: um rabo de cavalo, trancinhas, qualquer coisa rápida. Ou usava uma tiara no cabelo solto. Ela raramente passava maquiagem, às vezes apenas um batom leve. Não pintava as unhas. E usava roupas mais soltas e casuais: jeans, tênis, vez ou outra uma saia ou vestidinho.

A aparência de menininha de Cora mudou para uma aparência mais madura. A maquiagem e os penteados a faziam parecer mais velha. E as roupas apertadas ressaltavam seus peitos e sua bunda. Eu gostei muito disso, é claro. Era difícil não olhar. As roupas novas realmente faziam meu olhar flutuar pelo corpo dela.

— Para onde você está olhando? — Cora me perguntou uma vez, maliciosamente, numa ocasião em que usou um decote enorme.

— Só achei bonita sua blusa nova — respondi, meio sem jeito.

— Eu sei — ela me respondeu, com mais malícia ainda — você preferia a Cora inocente ou gosta mais da Cora ousada?

— Já disse que te amo de todos os jeitos.

Eu não achava ruim que Cora usasse microshorts e minissaias. Eu gostei da nova aparência dela, embora não tivesse reclamado se ela continuasse do jeito antigo pra sempre.

Se a coisa tivesse parado só aí, tudo bem. O problema foi quando vi Cora com o braço esquerdo retalhado. Estava com muitas cicatrizes e pareciam recentes.

Cora me explicou o “joguinho” que elas faziam no clube.

— As infames dietas de Zoe… — falei, preocupado — você não precisa fazer dieta.

— Mas meu IMC está muito no limite — explicou Cora — posso ser expulsa do clube a qualquer momento.

A partir de então, nossas saídas em encontros para comer nunca eram normais. Cora pedia uma quantidade minúscula de comida, ficava olhando ingredientes e fazendo anotações em seu caderninho.

— Tenta relaxar um pouco — falei — assim eu me canso também.

— Você com certeza não quer uma namorada gorda — disse Cora.

— Eu não ligo pra isso. Eu mesmo não sou exatamente magro. Sinceramente, eu prefiro uma namorada acima do peso e que se divirta normalmente comigo em encontros do que uma que fica controlando o que come o tempo todo.

— Isso foi rude — disse Cora — você não se importa em estar acima do peso porque você é homem. Nós mulheres somos julgadas o tempo todo por isso. Não é você que vai ter dificuldade em conseguir emprego e que vai ser olhado torto na rua e insultado na internet.

— Eu também sofro preconceito por ser meio gordinho — observei — eu entendo que vocês mulheres sofrem mais. Mas se eu for me importar com o que todos falam de mim, não vou viver em paz. Eu só quero curtir a vida de forma normal. É muito cansativo tentar ser perfeito o tempo todo.

— Milo… você só quer um namoro “normal” e uma namorada “normal”, mas só por eu ter nascido mulher, já nasci na desvantagem. Preciso me esforçar muito mais que você pra provar meu valor. Preciso provar o tempo todo que sou inteligente e bonita, pra ter alguma chance. As mulheres já ganham salários mais baixos, têm menos chance de conseguir emprego e são julgadas pela aparência tanto na vida pessoal quanto profissional. O meu normal e o seu são completamente diferentes. O meu normal já significa ter que me esforçar muito mais que você pra ser aceita como ser humano e não apenas como um acessório bonito e descartável.

Eu fiquei quieto. Escutei com atenção o que ela tinha a dizer.

— Sim, você tem razão — concordei — as mulheres sofrem preconceitos de formas que eu não entendo e que nunca vou entender. Mesmo assim, eu me preocupo com você. Eu quero que você seja feliz. E você não me parece feliz comendo… meia porção de uma salada que você nem gosta.

— Sim, eu odeio viver assim — admitiu Cora — estou sempre com fome e parece que todos os esforços que faço nunca são o bastante. Mas tenho esperanças de um dia chegar no peso que quero e conseguir mantê-lo. Aí vou poder relaxar um pouco, mas só um pouquinho…

Mas parecia que Cora nunca estava satisfeita. Até quando estava com quase 40 quilos, ela ainda se achava gorda. Ela claramente estava com um transtorno alimentar, mas não foi um transtorno que nasceu do próprio desejo dela de emagrecer.

O objetivo de Cora nunca foi perder peso. O objetivo dela era ser parte de um grupo popular do colégio e andar com as garotas populares. E pra atingir esse sonho ela precisava se comportar como elas e atingir seus elevados padrões.

Cora odiava quando eu a criticava.

— Nós somos namorados, mas meu mundo não pode girar apenas ao redor de você e do que você acha — ela explicou — você não se importa com meu peso, mas o mundo se importa. E é claro que eu também me sinto mais bonita e confiante quando peso menos.

— Só porque Zoe acha isso e você quer agradá-la! — retruquei — por que não namora Zoe, então? Você parece ligar muito mais para o que ela diz do que para o que eu digo!

Aquele tipo de conversa era frustrante e só desgastava cada vez mais nosso namoro.

— Chamam Zoe de psicopata e maluca só porque ela é mulher — Cora defendeu-a — se Zoe fosse homem, ela seria considerada legal, ambiciosa, revolucionária.

— Talvez — concordei — isso não muda o fato de que ela está fazendo algo perigoso.

— Quando homens fazem coisas perigosas eles são considerados aventureiros, corajosos, bravos, como fazer esportes radicais ou morrer na guerra pelo país — comentou Cora — mas as coisas perigosas das mulheres são tidas como ridículas ou superficiais. Elas precisam ser “salvas” por homens muito mais sábios que elas, não é? Esses mesmos homens que dão a vida por causas políticas, pra sentir adrenalina ou qualquer outra coisa que será justificada e aclamada como nobre pela lógica masculina.

Eu não sabia como responder a isso, pois eu também não era nem um pouco a favor de morrer na guerra ou escalando uma montanha. Eu simplesmente não curtia essas coisas, eu era um cara pacato que só queria ficar na minha.

Eu via onde Cora queria chegar e até dava um pouco de razão a ela em algumas coisas. Mas eu odiava Zoe e o clubinho dela. Tentava convencer Cora a sair, mas ela não queria me ouvir. Ela queria que eu a respeitasse em seus “assuntos de mulher” e não me metesse.

O que eu poderia ter feito para ajudá-la? Não sei.

Só sei que as últimas semanas que antecederam a morte de Cora foram um pesadelo.

Cora queria muito fazer sexo comigo e tentamos várias vezes. Não estou dizendo que eu não queria fazer sexo com ela. Claro que eu queria. Mas Cora parecia num tipo de desespero, como se pudesse ver que sua morte estava próxima e precisasse realizar aquele desejo antes de morrer.

Infelizmente, aquilo não foi possível. Toda vez que eu tentava penetrá-la, ela sentia dor e se afastava. Tentamos várias vezes, em diferentes dias e momentos, mas Cora não conseguia se excitar.

— Talvez se meu corpo fosse mais bonito, se eu fizesse academia, você se excitasse mais? — perguntei, para provocá-la.

— Não tem nada a ver — disse Cora.

Eu desconfiava que Cora queria fazer sexo porque Zoe se gabava de fazer sexo e Cora queria fazer as mesmas coisas que ela fazia. Mas resolvi não comentar nada.

Cora estava cada vez mais magra e abatida. Ela me contou que sua menstruação parou e que o cabelo dela estava começando a cair. Talvez a falta de desejo sexual dela tivesse um pouco a ver com aquilo.

Ela andava muito deprimida. Ela andava com pouca vontade de viver e chegou a dar algumas indiretas sobre isso.

Cora não estava comendo. Segundo ela, estava apenas comendo alface, mas ela odiava alface. Então às vezes ela preferia simplesmente não comer nada.

Eu estava desesperado. Tentava convencê-la pelo menos a beber muita água.

— Beba pelo menos um chá — insisti — sem açúcar…

— Não — insistiu Cora — estou quase com 40 quilos. Dessa vez eu vou conseguir.

Realmente, Cora realizou seu sonho de pesar 40 quilos e ter IMC 17. No dia seguinte, quando estava com 39 quilos e IMC 16,6, ela morreu.

Ela não foi no encontro que marcamos. Tive muito medo. Desconfiei que ela pudesse ter passado mal ou desmaiado no meio do caminho.

Eu a encontrei mais tarde, no hospital. Passei a noite toda com ela na UTI. Fiquei junto com Cora até o fim, segurando a mão dela, em seus últimos momentos.

Ela estava muito fraca. Mas, acima de tudo, tinha perdido completamente a vontade de viver.

— Me deixa ir, Milo — Cora me dizia, com voz fraca — não quero mais ficar aqui… num lugar como esse. Odeio… eu me odeio.

— O quê? — perguntei — não estou te escutando…

— Deixa pra lá — ela desistiu de falar e fechou os olhos — só vamos ficar assim um pouco. Não me deixa sozinha…

Eu não larguei a mão dela, até o fim.

Eu chorei muito. Não estava acreditando no que tinha acontecido.

O dia seguinte foi o funeral. Eu estava lá, mas não parecia real. Faltei à escola uma semana inteira, mas queria ter faltado um mês. Queria ter saído do colégio.

Eu pensei em tirar minha vida. Mas depois lembrei do desespero dos pais de Cora. Eu não queria que meus pais chorassem daquele jeito.

Então, eu apenas existi por um tempo.

— Até que eu comecei a perseguir você — disse Zoe.

— É — concordei — ainda vai querer ver o filme de terror?

— Pode ser.

Eu e Zoe assistimos a um filme de terror que eu gostava. Não sei o que ela achou dele ou se ela se assustou muito. Ela parecia concentrada.

Eu só queria quebrar aquela atmosfera tensa. E o filme ajudou um pouco.

— Você pode dormir aqui em casa hoje, se quiser — falei, derrotado — mas não vai ter sexo. Só dormir, sabe?

— Sei dormir quietinha — Zoe sorriu — consigo fazer isso.

Eu duvidava, mas concordei. Tinha uma outra cama pra visitas no meu quarto, embaixo da minha. Deixei que Zoe dormisse na minha cama e eu dormi na cama de baixo.

Não demorou muito para que Zoe descesse, deitasse comigo e me abraçasse.

— Zoe… — falei, meio nervoso — volta pra cima, por favor.

— Não — ela disse.

Ela me abraçou forte. Ela estava usando pijama, mas percebi que ela estava sem sutiã por baixo. Senti claramente os mamilos dela no meu peito.

Tive uma ereção. Zoe sentiu minha ereção na perna e tentou colocar a virilha em cima. Mesmo estando nós dois de pijama, eu levei um susto e a empurrei.

— Desculpa — falei — não queria te machucar.

— Não se preocupe, não me machuquei — sussurrou Zoe — eu te machuquei?

— Não, mas… é a última vez que vou falar — ameacei — volta pra cama de cima. Senão eu vou sair daqui e dormir no sofá da sala.

— Tá bom — falou Zoe, derrotada.

Ela desistiu mesmo. Voltou pra cama de cima. E nós dois dormimos.

Ainda bem que era sábado. Acordamos mais ou menos juntos.

— Bom dia — ela sorriu.

Zoe ficava bonitinha quando acordava. Parecia quase inocente.

— Bom dia — falei — o que quer de café da manhã?

— Nada…

— Ainda falta um tempo pro almoço — falei — vou comer torrada com geleia e manteiga de amendoim.

— Parece ótimo — disse Zoe — também quero um pouco.

Fomos para a cozinha tomar café da manhã. Comemos torradas e café com leite. Zoe comeu apenas uma fatia e eu comi duas.

— O que quer fazer hoje? — perguntei.

— Não tá chateado comigo? — perguntou Zoe.

— Por quê?

— Fui pra sua cama de noite.

— Você saiu quando te mandei sair — falei — então tá tudo bem.

O fim de semana foi surpreendentemente tranquilo. Fizemos algumas coisas de namorados, como sair em encontros comportados.

Não rolou beijo na boca e nem sexo. Zoe se afastou um pouco de mim desde que a mandei sair da minha cama naquela noite. Ela entendeu que eu precisava de um pouco mais de tempo.

O problema foi na segunda-feira. Aconteceu algo completamente inesperado. Uma grande agitação logo cedo de manhã, antes de começar o primeiro período.

Zoe estava sentada no corredor, apenas de calcinha e sutiã, enquanto as meninas do Clube 18 jogavam coisas nela. Fiquei chocado ao ver 17 puxando os cabelos de Zoe e gritando:

— Você está permanentemente expulsa do Clube 18! Eu sou a nova líder agora. Uma vez 19, jamais retorna. Suas regras, querida!

— Eu não me importo com essa merda! — gritou Zoe — já estava de saco cheio do clube mesmo! Daqui dois meses já acaba o ano. Foda-se!

Zoe dizia que não se importava, mas os olhos dela estavam cheios de lágrimas.

Não consegui fazer nada, de tão assustado que fiquei com toda a situação. Eu já tinha medo daquelas garotas do Clube 18, mas naquela ocasião fiquei ainda mais.

Eu não salvei minha namorada. Quem chegou para salvá-la foi ninguém menos que Vance. Ele tirou sua grande jaqueta estilosa de marca e cobriu Zoe com ela.

— Se mandem daqui, suas putas! — gritou Vance — não encostem em Zoe!

— Zoe não dá a mínima pra você, seu metidinho — disse 17 — ela te trocou pelo Milo, então sai fora!

— Eu nunca gostei de você, sua cadela magrela — disse Vance — sempre achei suspeito que você puxasse tanto o saco de Zoe. Agora mostrou sua verdadeira face.

— Só estou seguindo os passos da mestra — 17 sorriu — ela me treinou bem. Pode deixar, o clube ficará em boas mãos.

— Espero que você morra de fome, sua piranha! — gritou Vance — sua frígida, mal comida! Você está com ciúme porque dois homens estão brigando por Zoe, enquanto nenhum cara te quer! Não adianta nada ser magra se você é horrorosa desse jeito!

— Pode falar o que quiser — disse 17, tranquilamente — e pode levar Zoe daqui, porque ela já não é ninguém. E você… quem é você mesmo? O time de futebol de vocês perdeu no último campeonato, né? Coitadinho… e ainda se acha grande coisa.

17 riu e as meninas do clube a acompanharam nas risadas. Elas voltaram pra sala do clube. Enquanto isso, Vance ajeitou seu casaco em Zoe e a levou para algum lugar.

A cena foi recebida com muitas palmas e alunos filmando com o celular. Quando Zoe estava no chão recebendo insultos e tapas das outras meninas do clube, foi o momento que mais aplaudiram.

Zoe não apareceu pra aula o dia todo. Tentei ligar pra ela mais tarde, mas ela não atendeu.

— E aí, pra onde foi sua namorada? — perguntou Orion — vai deixar o outro cara levar ela?

— O que posso fazer? — perguntei — eu não vou perder mais aulas por causa dela. Já faltei uma semana inteira quando Cora morreu. Se eu faltar mais, posso reprovar o ano.

— Blá, blá, blá — disse Orion — seja homem e vá atrás da sua mulher!

Eu estava namorando Zoe há menos de uma semana. Não podia arriscar meu pescoço naquele momento crucial. Zoe só se metia em frias.

Pelo jeito, fiz Zoe comer muitas porcarias no fim de semana, a ponto de ela descuidar do peso, pela primeira vez desde o início do clube. Eu era assim tão importante pra ela?

— Já estão sabendo das novas regras do Clube 18? — perguntou Yan, empolgado — agora o IMC máximo para novos membros será 18,0 e os membros antigos terão apenas um mês para atingir esse IMC ou serão expulsos.

— E como raios você ficou sabendo disso? — perguntei, com raiva — foda-se essa merda de Clube 18. Não quero mais saber disso.

Eu já odiava aquele clube maldito desde que Cora entrou nele e morreu por causa dele. Agora que Zoe não tinha mais nada a ver com o clube, era um alívio. Seria melhor assim.

Até eu sabia que o IMC de 17 era 17,5, então ela não precisaria se esforçar com a nova regra ridícula que ela criou. Pelo jeito, ela iria esculhambar o clube e acabar com ele rapidinho. Em breve não teriam mais membros ou os que sobraram teriam sérios distúrbios alimentares e morreriam.

Só consegui conversar com Zoe pelo telefone à noite. Ela finalmente atendeu.

— Como você está? — perguntei.

— Péssima — respondeu Zoe — estou com 19,1 de IMC. Estou com 49 quilos. Nunca estive tão gorda em toda a minha vida. Nunca cheguei aos 50 quilos. Vou ter que fazer um jejum de 24 horas hoje pra recuperar o mínimo de dignidade que me restou.

— Se você tiver 50 quilos vai poder doar sangue — comentei — aposto que seu baixo peso nunca foi útil pra ninguém. Pelo menos assim você pode ajudar as pessoas.

— Cala a boca — retrucou Zoe — foi por sua causa que isso aconteceu. Você me pagou um monte de lanches calóricos no fim de semana.

— É assim que você fala com seu namorado? — perguntei — eu só tentei ser gentil. Não te obriguei a comer. Eu apenas ofereci.

— E eu tentei ser gentil aceitando! — exclamou Zoe — mas foda-se isso agora. Eu não menti quando disse que já estava de saco cheio do Clube 18. Pelo menos assim eu me libertei. Não queria que tivesse sido desse jeito, mas eu provavelmente mereci. 17 está certa: ela me expulsou de acordo com as próprias regras que eu criei. Jamais se passou pela minha cabeça que eu iria descuidar do meu próprio peso desse jeito. Acho que eu tô mesmo apaixonada.

Fiquei em silêncio por alguns segundos. Zoe também.

— E Vance? — perguntei.

— O que tem ele? — perguntou Zoe.

— Ele te ajudou e eu não fiz nada. Prefere ficar com ele agora?

— Vance só me ajudou pra se exibir — disse Zoe — porque ele gosta de posar de macho alfa, que salva as mulheres. Conversei com ele hoje, agradeci pela ajuda, mas deixei claro que não estamos mais saindo. Vance sabe que eu e você estamos namorando agora.

— Ah… OK.

Se eu queria um namoro pacífico, agora eu teria um. Eu teria um namoro normal, pela primeira vez na vida, sem a interferência do Clube 18.

Eu deveria estar feliz… certo?

— Zoe…

— Sim?

— Eu… tô feliz — falei — tô muito feliz que você saiu daquele clube amaldiçoado, finalmente…!

Chorei no telefone.

— Não sei se gosto de você — admiti — sinceramente, eu devia te odiar. Foi você que criou esse clube de merda e essas regras fodidas. Cora morreu por sua causa. Mas não sei porque, não consigo te odiar. Sei que você também sofre com tudo isso. Sei que você não é vítima porra nenhuma, mas…

Eu não sabia o que dizer. Eu estava fazendo sentido?

— Você ainda me quer? — perguntou Zoe — ainda quer… namorar?

— Não sei — falei — eu tô muito confuso.

— Eu não tô confusa — falou Zoe — eu te amo. E se ainda me quiser… eu estou aqui.

— Amanhã eu te dou uma resposta. Pode ser?

— Pode ser sim.

Porém, no dia seguinte eu teria que lidar com Vance. Ele queria ter uma “conversinha” comigo antes do começo da aula.

— Zoe não vem hoje — ele me informou — ela e outras meninas do Clube 18 foram suspensas por alguns dias por causa daquele drama no corredor.

— Você sabe que foi Zoe quem criou o conceito do “drama” — observei — a regra de expulsar do clube meninas que engordam alguns gramas foi dela.

— Foi — concordou Vance — mas e daí? Você está contra ela? Se não gosta dela, apenas dê um fora em Zoe e a deixe solteira pra mim!

Não dava pra acreditar que alguém podia ser tão patético.

— E o que te faz pensar que ela vai te namorar se estiver solteira? — perguntei — ela já te dispensou uma vez. Ela não quer nada contigo.

Ainda estávamos do lado de fora do colégio. Perto daquele lugar que Zoe deu tesouradas em Imara. Por isso, Vance não se importou de dar um soco na minha cara, sem cerimônia.

Eu não tinha dito nenhuma mentira. Vance era um mau perdedor. Ele se irritava comigo apenas porque eu disse a verdade?

— Você e ela se merecem — falei, ainda no chão — vocês são iguais.

Eu não estava sentindo o lado esquerdo do meu rosto. Coloquei a mão na minha boca e no meu nariz para checar se havia sangue. Não havia no nariz, mas toquei minha língua e senti um leve gosto de sangue. Eu devia ter mordido a língua com o soco ou algo assim.

Respirei aliviado. Podia ter sido pior. Eu me desequilibrei e caí no chão. Resolvi continuar sentado lá, pois a conversa seria longa. Ainda bem que não tinha nenhum idiota perto pra gravar o soco com o celular.

— Eu quero namorar a Zoe porque ela é gostosa — explicou Vance — não me importo que ela seja mau caráter. Foda-se se ela bate nas outras garotas. Eu só quero trepar com ela.

— Você já trepou com ela… várias vezes — observei, ainda meio preocupado com o gosto de sangue na minha boca.

— Eu quero trepar mais.

— Metade das meninas desse colégio querem te comer — falei — e várias delas são gostosas. Vá atrás delas.

— Mas… estou acostumado com Zoe… — disse Vance — perdi a virgindade com ela esse ano e ela perdeu comigo. Fomos feitos um pro outro.

Aquele imbecil…

— Isso é sério mesmo? — perguntei, pra me certificar.

— Sim — disse Vance — nunca fiz sexo com nenhuma outra garota até hoje. E ela também nunca fez com nenhum outro garoto. Ela não te comeu ainda, né?

— Não, mas só porque eu não deixei. Ela queria.

— Você não pode ajudar Zoe — disse Vance — você não entende ela. Só eu entendo. Eu sei como é ser popular, ser alvo de fofocas, inveja e críticas. Sei como é ter que fazer o papel de vilão, por ser líder. Ela era líder do Clube 18 e eu sou capitão do time de futebol do colégio. Às vezes precisamos jogar sujo pra colocar nossos membros na linha. Para vencer. Quem está de fora nos julga, mas não saberia fazer melhor.

Por que eu estava escutando aquilo? Eu não queria saber daquela merda.

Além de ter que lidar com a própria Zoe, que não era uma garota fácil, eu tinha que lidar com as arquiinimigas dela e também com o ex. Eu comi o pão que o diabo amassou.

Bem, a culpa era minha por ter concordado com aquela palhaçada. Quem mandou eu dar corda e concordar em namorar a menina responsável pela morte da minha ex-namorada? É claro que aquilo ia acabar mal.

— Quer saber de uma coisa? — falei — fique com Zoe. Eu cansei.

Vance deu um sorrisinho de triunfo.

— Você cansa muito rápido — disse Vance — você é um homem ou uma galinha? Você sempre fica querendo posar de bom garoto. Já experimentou tentar ser malvado de vez em quando? Ou vai tentar continuar bancando o herói?

— Eu não tô tentando lutar pela justiça — eu disse — só quero que me deixem em paz, caralho.

Vance gargalhou.

— Ah, eu vou te deixar em paz pra sempre — garantiu Vance — contanto que você nunca mais se aproxime da minha mulher.

Porra, que vontade de socar aquele cara de volta e sair na porrada. E ser expulso de uma vez daquele colégio de merda.

Mas eu não era otário. Vance era a estátua grega. Ele tinha 1,90 e era uma parede de músculos. Eu não queria morrer ainda, então eu achava melhor encerrar aquela briga de um lado só por ali mesmo. Apenas com um pouquinho de sangue na boca.

— Combinado — falei — Zoe é sua. Você tem minha bênção.

— Valeu — disse Vance, sorrindo como um bobo alegre, como se tivesse ganhado um doce — obrigado pela compreensão e pela gentileza. Estamos resolvidos aqui então, certo?

— Ah, estamos sim.

E aquele babaca foi embora. Ou melhor, ele entrou no colégio. Esperei um pouco e me levantei, tirando a terra da roupa.

— Oi.

Levantei os olhos. Quem estava ali não era ninguém menos que Imara. A inimiga peituda de Zoe, que quase baixou minhas calças no outro dia.

— Aff — falei.

— Eu ouvi tudo — disse Imara, com um sorriso feliz.

— Eu só quero ir pra aula — nunca pensei que um dia eu estaria desesperado o suficiente pra dizer isso — cansei das besteiras de vocês.

— Zoe não é mais a rainha do colégio — comentou Imara — agora ela é apenas uma perdedora gorda.

Tanto Zoe quanto Imara eram magras o bastante para não terem sequer uma barriga visível. Mas preferi não fazer nenhum comentário, pois era mais seguro.

Eu apenas me levantei e segui na direção do portão do colégio. Mas Imara não permitiu. Ela barrou meu caminho.

— Agora que está solteiro, que tal me namorar? — propôs Imara.

— Não, obrigado — ironizei — ainda tenho o mínimo de bom senso pra não querer namorar minha quase estupradora.

Imara riu.

Além do mais, eu não era tão idiota a ponto de não ter sacado o joguinho de Imara. Ela não queria nada comigo. Não sentia nada por mim. Ela queria me namorar só pra deixar Zoe puta.

— Mas você aceitou namorar a assassina de Cora — observou Imara — não se faça de bonzinho, porque seus padrões morais não são assim tão elevados.

— Tem razão. Onde eu estava com a cabeça? Acho que eu tava louco. E você, não tinha ficado com Vance outro dia?

Eu lembrava vagamente de ela ter dito pra Zoe que tinha roubado o homem dela, ou qualquer coisa do tipo.

— Eu tentei — disse Imara — mas aquele trouxa é obcecado por Zoe. Não sei o que ele viu naquela mulher. Não sei o que vocês todos vêem nela.

— Ela é bonita… — observei.

— E eu não sou?

— Você é, mas Zoe é mais — respondi — olha, essa conversa está excelente, mas eu preciso ir pra aula. Com licença…

— Seus padrões são tão altos que você só aceita namorar a mais bonita? — provocou Imara — ah, esquece. Você namorou Cora. Na verdade, seus padrões podem ser bem baixos…

Não respondi. Eu não ia entrar no jogo dela. Fui pra aula. Imara me deixou em paz, ao menos naquele momento.

Cheguei atrasado. Contei pra Yan e Orion o motivo do meu atraso.

— Que ótima notícia! — celebrou Orion — você se libertou de Zoe! Sinceramente, estou aliviado.

— E ela já sabe disso? — perguntou Yan.

— Vance já deve ter contado — falei — mas pode deixar que já vou informá-la também.

Como Zoe tinha sido suspensa, informei que decidi terminar com ela numa mensagem de texto. Sei que era sujeira fazer aquilo, mas eu preferia informá-la o quanto antes.

Zoe respondeu poucos segundos depois.

“Você terminou comigo só porque Vance te ameaçou. Ah, tá bom. Então tchau”

Zoe ia desistir assim tão fácil? Até fiquei surpreso.

Aquilo tudo estava muito confuso. Era melhor assim. Eu não sabia se Zoe e Vance iam começar a namorar, mas aquilo não era mais problema meu.

Aquela cena de Zoe sendo expulsa do próprio clube daquela maneira humilhante me fez lembrar que eu não queria mais ter nenhum envolvimento com o Clube 18. Nem com seus membros passados e nem com os presentes. Aquilo só me traria pesadelos.

Claro, eu também estava entediado e deprimido. Mas eu não estava tão desesperado a ponto de namorar a primeira menina bonita que surgisse na minha frente.

Todas aquelas meninas eram perigosíssimas. Eu não queria me envolver mais com nenhuma delas.

Ou assim eu pensei. Até que fui “convocado” para a sala do Clube 18 no intervalo.

Eu poderia simplesmente não responder à convocação. Mas até eu fiquei curioso para saber o que diabos queriam comigo. Eu não tinha mais nada a ver com elas e com Zoe.

Fui até lá. Briana abriu a porta pra mim.

— A mestra quer falar com você — informou ela.

Pelo jeito, Briana se tornou a nova vice.

— Oi — disse 17 — senta aí.

Eu sentei.

— Seja rápida — falei — diferente de vocês, eu lancho no intervalo.

— Como é fácil ser homem — 17 revirou os olhos — pra vocês, emagrecer e se depilar é uma opção. Para nós, mulheres, é uma obrigação. É apenas o básico para ser reconhecida como um ser humano.

— Não acredito que você me chamou aqui só pra me dar essa merda de sermão — falei, sem paciência — sim, eu nasci homem e não foi escolha minha. Vai me crucificar?

— Coitadinho — zombou 17 — pobre menino gordo e feio. As mulheres não te deixam em paz. Por que será?

Eu me levantei. Porém, 17 barrou meu caminho, segurando no meu ombro. Eu tirei a mão dela.

— Não encosta em mim! — exclamei.

— Não se preocupe — disse 17 — assim como você, estou acostumada a ser tratada feito lixo. Não estou ofendida. Só queria saber se você terminou mesmo com Zoe.

— Isso não é da sua conta.

— Terminou ou não? — insistiu ela.

— Sim — confirmei, pra acabar com aquilo.

— Eu pedi Vance em namoro hoje, pra colocar ciúme em Zoe — informou 17 — mas ele é mais entediante do que parece. Ele tem uma devoção irracional por Zoe. Faz ideia do motivo?

— Não — menti — e não quero saber.

— Então que tal você me namorar? — propôs 17 — aposto que isso deixaria Zoe ainda mais puta. E seria uma maneira de você se vingar dela, pela morte de Cora. Que tal?

Eu ri.

— Você está louca — falei — eu jamais namoraria outra líder desse clube de…

— Homens adoram chamar as mulheres de loucas — disse 17 — mas são elas que criam seus filhos enquanto vocês só se matam em guerras. Quem é o louco mesmo?

Eu nem me dignei a responder aquele absurdo.

— Você já está falando como Zoe — comentei — e criou regras ainda piores que as dela. E eu achando que você era o único membro desse clube que ainda tinha salvação. Pelo menos você ainda tentou ajudar Cora um pouco…

— É — disse 17 — eu tentei ajudar. Minhas regras são rigorosas, mas não quero ver ninguém morrer. Acho que Zoe merece ser punida pelo que fez. E então? O que acha do meu plano de vingança?

— Eu não quero me vingar de ninguém.

— Ou eu não sou bonita o bastante? — perguntou 17.

Eu olhei para 17. Ela não era feia.

Ok, 17 não era nem um pouco feia. Reparando agora, ela tinha um charme único. E ela realmente entendia de moda. Não que eu entendesse alguma coisa para julgar, mas ela se vestia muito bem.

Eu nunca tinha parado tempo suficiente para observar 17, porque ela sempre foi “apenas a vice”, sempre tratada como capacho por Zoe. Então sua presença parecia apagada.

— Sua aparência não importa — falei — eu não estou interessado.

— Engraçado — observou 17 — da última vez que chequei, beleza e juventude eram os atributos mais importantes em uma mulher para um homem.

— Você pode se vingar de Zoe de outras formas — eu disse — não precisa me envolver nisso.

— Tem certeza? — perguntou 17 — olha só a foto que a Zoe acabou de postar no Instagram dela.

Era uma foto de poucos minutos atrás. Zoe e Vance estavam se beijando na boca. E a legenda da foto era: “Estou muito feliz com meu novo namorado”.

Eu pensei que não ficaria com raiva. Que não iria me importar. Afinal, eu terminei com Zoe porque eu quis. Porque eu não queria mais nada com ela. Eu deveria ter ficado aliviado por vê-la com Vance. Por ela ter finalmente parado de me perseguir.

Mas por alguma razão, fiquei furioso. 17 deu um sorriso de triunfo ao ver minha expressão.

— Mudou de ideia? — perguntou 17.

— Qual o seu nome mesmo? — perguntei.

— Kiara — respondeu 17.

— Você venceu — declarei, derrotado — vamos namorar.

Todas as meninas do Clube 18 gritaram com a minha declaração. Elas deram um grito agudo de celebração, como se estivessem diante de um artista famoso. Eu me senti… poderoso.

— Tem certeza? — perguntou 17, para se certificar — esse não é um namoro falso, certo?

— É a coisa real — garanti.

— Então me prove — desafiou 17 — e me dê um beijo na boca aqui e agora, para eu postar no meu Instagram.

Meu Deus, como todos eles eram infantis: Zoe, Vance, Imara, 17…

Apesar de ser uma ideia estúpida, eu…

…eu abracei 17 na mesma hora e dei um beijo na boca dela. Um beijo longo, de língua.

Todas as meninas do Clube 18 gritaram alto. Várias delas tiraram fotos. Uma delas até gravou um vídeo da coisa toda.

17 postou tudo no seu Instagram: a foto e também o vídeo na sala do clube, com a legenda: “Estou muito feliz com meu novo namorado”.

Porra, até mesmo eu estava curiosíssimo para saber como Zoe ia reagir. Estava muito claro que Zoe era a pessoa com que todos nós mais nos importávamos. Afinal, eu tinha acabado de aceitar uma garota aleatória em namoro e dar um beijo na boca dela apenas para emputecer Zoe.

Normalmente eu não faria algo assim. Mas minha atração por Zoe era tão grande que eu aceitei namorá-la por uma semana, mesmo depois de tudo que ela fez com Cora.

Por alguma razão, não dei nenhum beijo na boca de Zoe ao longo daquela semana. Será que, no fundo, eu ainda estava com medo de trair Cora? Mas beijar 17 na boca não me soava como traição, já que 17 havia sido o mais próximo de uma amiga que Cora teve no clube.

Sei lá. Eu não conseguia encontrar uma explicação racional para o que eu tinha acabado de fazer.

Zoe não se manifestou nas redes sociais. Mas ela esperou 17 no portão do colégio, do lado de fora. Eu e 17 saímos juntos do colégio, de mãos dadas.

— Oi miga — sorriu Zoe — podemos trocar uma palavrinha?

17 e Zoe foram até a árvore feia. Zoe tirou uma tesoura da bolsa. 17 tirou uma tesoura também e as duas tiveram uma batalha feroz com tesouras.

Eu não interferi. As duas foram parar no hospital. Como sempre, o colégio ignorou tudo aquilo e ninguém denunciou. Todo mundo fingiu que não sabia de nada.

Mais tarde, fui visitar minha nova namorada 17 no hospital.

— Ainda estamos namorando? — perguntei 17, rindo.

— Parece que sim — falei — parabéns por ter ganhado a batalha. Jamais imaginei isso.

— Eu já pratiquei artes marciais pra defender Zoe — disse 17 — sou boa.

Suspirei fundo. Pelo jeito, aquele dois meses que ainda faltavam para eu me formar no colégio ainda demorariam pra passar.

(Continua no Capítulo 3: final)

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Wanju Duli
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