Chegar ao céu sem morrer
Por muito tempo os alquimistas buscaram o segredo da imortalidade. Muitas religiões nos ensinam que todos nós já somos imortais: temos uma alma que sobrevive após a morte. Sendo assim, viver muito ou pouco não faria diferença. O que importa é viver de forma ética.
É verdade que se vivermos 80 anos ao invés de apenas 40, por exemplo, a vantagem, do ponto de vista espiritual, é que teríamos mais tempo para nos darmos conta de nossos erros, nos arrependermos deles e tentar viver de forma mais justa. Apesar disso, algumas religiões, como o cristianismo, nos ensinam que seremos julgados levando em conta o tempo que vivemos. Por isso, crianças ou adolescentes que morreram cedo e não tiveram tempo suficiente para amadurecer sua vida moral serão julgados com menos rigor. Enquanto isso, algumas religiões que acreditam em reencarnação e renascimento nos ensinam que teremos o tempo de várias vidas para nos emendar.
Se praticamente todas as religiões possuem crenças assim, por que, afinal, alguém desejaria prolongar seus anos nesse mundo? Nós iremos reencontrar aqueles que amamos após a morte. A única urgência é corrermos para destruir nosso karma (de acordo com as religiões indianas) ou dedicar uma vida fortemente voltada para servir Deus e os outros.
Porém, nossa parte animal e instintiva naturalmente teme a morte e deseja ter uma vida mais longa. Esse imaginário da vida longa percorre as páginas da Bíblia. No início de Gênesis sabemos que os primeiros seres humanos viveram pelo menos algumas centenas de anos. Matusalém é tido como o personagem de maior longevidade da Bíblia e teria vivido 969 anos.
Até que chega a parte de Gênesis que fala sobre Enoque, um dos personagens mais misteriosos da Bíblia.
“E andou Enoque com Deus, depois que gerou a Matusalém, trezentos anos, e gerou filhos e filhas. E foram todos os dias de Enoque trezentos e sessenta e cinco anos. E andou Enoque com Deus; e não apareceu mais, porquanto Deus para si o tomou.”
(Gênesis 5,22–24)
É dito que Enoque entrou no céu sem passar pela morte. Mas como isso poderia ocorrer se desde o Éden nenhum ser humano poderia ver Deus sem morrer?
Se Deus é todo poderoso é claro que pode fazer o que quer. Ainda assim, é notável que pouquíssimos personagens na Bíblia tenham alcançado a “honra” de merecer o céu sem antes precisar se desfazer do corpo físico.
De acordo com uma tradição judaica, oito pessoas entraram no céu vivos. Para os cristãos, apenas dois personagens bíblicos o fizeram: Enoque e Elias. No caso de Maria, para os católicos, sua entrada no céu é chamada de “assunção” para diferenciar da “ascensão” de Cristo.
Para os cristãos, Jesus Cristo realmente morreu. Ele passou pelo processo da morte, que foi totalmente real, para que somente assim pudesse nos mostrar como nós mesmos podemos morrer para nossos pecados.
Existem episódios de pessoas entrando no céu sem morrer nas mais variadas religiões, incluindo também o hinduísmo. Embora existam diferenças na visão muçulmana, judaica e cristã sobre esses eventos, todas essas religiões concordam que entrar no céu sem morrer é possível e já aconteceu com profetas importantes dos livros sagrados.
No entanto, o fato de Jesus ter escolhido voluntariamente passar pelo processo da morte nos diz muito. Isso nos indica que escolher o caminho do sofrimento e da morte, mesmo que seja mais árduo, às vezes pode ser a melhor escolha para nos purificar, nos conectar a Deus e aos outros.
O cristianismo possui uma longa tradição de mártires que optaram por seguir o exemplo de Cristo. É verdade que Deus possui planos diferentes para cada pessoa. São Francisco de Assis e São Domingos, por exemplo, são santos que desejaram o martírio muitas vezes e se colocaram em situações para que pudessem morrer em nome de Deus. Porém, eles acabaram morrendo bem mais tarde, em outras circunstâncias.
A lição que tiramos daí é que o melhor caminho para nós não é nem o mais fácil e nem o mais difícil, e sim fazer o que Deus quer que façamos. Ou, nas palavras de Santa Teresinha:
“Assim acontece no mundo das almas, que é o jardim de Jesus. Ele quis os grandes Santos, que podem ser comparados aos lírios e às rosas; mas criou também outros mais pequenos, e estes devem contentar-se com serem margaridas ou violetas, destinadas a deleitar os olhares de Deus quando olha para o chão. A perfeição consiste em fazer a sua vontade, em ser o que Ele quer que sejamos”
Nós geralmente buscamos o caminho mais fácil e confortável, que nos exige menos sacrifícios. Queremos ser pessoas boas, queremos ser dignos do céu. Mas só na medida em que isso não interfira com nosso calendário de outras atividades, com nossa saúde e nossos outros planos. Queremos uma vida longa e cheia de prazeres. Doença, morte e sofrimento parecem ser incômodos que não condizem com um mundo criado por um Deus bom.
Porém, Jesus nos mostrou que o sofrimento e a morte possuem um papel. Eles estão aí por alguma razão e não por um defeito. É um ensinamento duro aceitar que somente através dessas coisas possamos compreender o amor.
Lendo a história de Elias podemos ter uma boa pista do motivo de Deus ter lhe elevado ao céu sem morrer.
“Ele, porém, foi ao deserto, caminho de um dia, e foi sentar-se debaixo de um zimbro; e pediu para si a morte, e disse: Já basta, ó Senhor; toma agora a minha vida, pois não sou melhor do que meus pais”.
(1 Reis 19:4)
Nesse trecho podemos ver com clareza a fé e a humildade de Elias. Para ele, sua própria vida não lhe importa. Ele até mesmo pede a morte para Deus. Ele se considera menor do que aqueles que vieram antes dele.
“Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á”.
(Mateus 16:25)
Eis o segredo da imortalidade: não se apegar a própria vida, não se importar com a morte, desejar viver e morrer em nome de Deus e dos outros. Quem deseja a própria imortalidade, saúde irrestrita e longevidade nesse mundo a qualquer preço poderá perder a vida no outro. Mas quem não se importa com a própria dor poderá atingir o objetivo mais importante pelo qual nascemos nesse mundo.
Então, como chegar ao céu sem morrer? Não se importando se você vive ou morre, se sofre ou se não sofre, contanto que seja capaz de cumprir a vontade de Deus e a missão a que foi destinado.
Apesar de todas essas recomendações parecerem muito grandiosas ou pomposas, elas escondem verdades simples. Todos nós sabemos que morreremos, independente de ser uma vida de cem anos repleta de confortos e prazeres ou uma vida curta com sofrimentos. Por isso, devemos nos focar em buscar a essência da vida em vez de iludirmos a nós mesmos e nos distrairmos com coisas que não importam.
Antes de terminar, gostaria de refletir rapidamente sobre mensagens motivacionais que escutamos por aí e seu significado num contexto religioso.
Hoje em dia é comum compartilharmos frases do tipo “Ame a si mesmo antes de amar os outros” e “Valorize-se, saiba dizer não”, etc. É normal que nós vejamos a nós mesmos como grandes benfeitores da humanidade, cidadãos exemplares, sempre querendo ajudar nossos amigos e só recebendo ingratidão em troca.
É claro que nós devemos amar a nós mesmos, mas é tão óbvio que nós amamos a nós mesmos acima de todos os outros que as religiões não costumam insistir nesse ponto. O simples fato de cuidar da própria saúde, ter medo da morte e querer proteger a própria vida é um apego que temos a nós mesmos bastante próximo do que chamamos de amor. Normalmente quando buscamos tirar nossa própria vida pode ser devido a um apego/amor tão grande a nós mesmos que não aguentamos o sofrimento a que nos vemos submetidos.
O cristianismo nos ensina a amar os outros como a nós mesmos, incluindo viver e morrer pelos outros. Na nossa visão contemporânea esse conselho pode parecer um retrocesso. Afinal, em nossa vida agitada estamos sempre trabalhando para ajudar a sociedade, ajudando a família, dando atenção para amigos, etc, que parece que nunca temos tempo ou energia para nos dedicarmos a nós mesmos.
Acontece que ajudar a si mesmo e aos outros nem sempre precisam ser vistos como coisas separadas e contraditórias. Há momentos em que elas se juntam. É quando nos vemos como um só: nós e toda a humanidade. Pode parecer algo abstrato a princípio. Mas eu vejo aí a chave para sair do “quero chegar ao céu sem morrer” e passar para o “já não me importo se vivo ou morro, se vou para o céu ou para o inferno, contanto que eu faça o que deve ser feito”.
Se trabalhar ou estar com as pessoas ao seu redor soa como um fardo, como um dever sofrido, um benefício somente para um dos lados que parece não te acrescentar nada, então talvez você esteja vivendo a missão de outra pessoa e não a sua. Pois sabemos que estamos fazendo a vontade de Deus quando há aquela sensação de pertencimento, de identidade, de realização e quando até o maior sofrimento pode ser enfrentado com amor porque tem significado.
Precisamos ter a consciência de não romantizar muito tudo isso, mas também devemos lembrar que é possível viver uma vida em que ajudamos os outros e a nós mesmos ao mesmo tempo e que isso pode gerar amor para os dois lados. Ainda haverá dor, pois o objetivo não é acabar com ela e sim dar-lhe uma razão de ser.