As Mulheres e a Igreja Católica
Jesus conversou com a samaritana no poço. Ele falava com adúlteras e prostitutas. Tinha muitas seguidoras mulheres. As cartas paulinas também nos mostram que as mulheres tinham papel importante desde o início do cristianismo, como Priscila.
Há muitas histórias de mulheres mártires desde o cristianismo primitivo. A Igreja Católica possui um número bem impressionante de santas mulheres que foram canonizadas. Há inclusive as que ganharam o título de doutoras da Igreja, que se destacaram por seu saber teológico: Teresa de Ávila, Catarina de Siena, Teresinha de Lisieux e Hildegarda de Bingen. Temos também a famosa filósofa judia Edith Stein, que se converteu ao cristianismo.
Simplesmente há muitas santas e mulheres importantes ao longo da história do cristianismo para falarmos de todas. Há inclusive aquelas que se retiraram para o deserto em uma vida eremítica, como a ex-prostituta Santa Maria do Egito.
Mas, espere, há muito mais. Desde Joana d’Arc até Santa Teresa de Calcutá fica claro que mulheres muito diferentes, com as mais variadas habilidades e personalidades, passaram pela Igreja. Há Santa Kateri Tekakwitha, índia norte-americana que se tornou santa. Há Santa Bernadette, de Lourdes, e Santa Jacinta, de Fátima.
Santa Clara de Assis, grande amiga de São Francisco, também nos inspira com sua vida. Santa Maria Goretti, que morreu ainda criança, é uma história impressionante de perdão que nos fascina até hoje.
Em muitas épocas históricas, nas mais diversas sociedades, uma das únicas opções de vida para uma mulher era se casar e ter filhos. O pai da família um dia iria morrer. Sendo assim, a esperança de um bom casamento era a garantia de que as filhas mulheres teriam comida e um teto no futuro.
E o que acontecia quando o marido da mulher morria? Na maior parte das vezes, essa mulher perdia tudo, não tinha mais onde morar e passava fome, dependendo ou do auxílio financeiro dos filhos homens ou de mendigar na rua.
Por isso a Bíblia fala tanto na importância de auxiliar os órfãos e as viúvas. Os filhos abandonados precisavam aceitar qualquer emprego para ter o que comer, mesmo que isso significasse serviços arriscados, que poderiam lhes custar a vida. Muitas mulheres recorriam à prostituição.
A não ser que a mulher nascesse como princesa ou fosse de uma família nobre muito rica e importante, não havia muitas opções para ela. Prostituir-se, mendigar ou se casar? Prostituindo-se ela poderia morrer de alguma doença venérea. Mendigando nas ruas ela poderia morrer de fome, de frio ou de alguma doença oportunista. E ao se casar, havia uma grande chance de morrer no parto de algum dos dez ou vinte filhos que ela gerasse.
Eram tempos bem difíceis para as mulheres. Ainda mais do que hoje. A maior parte preferia morrer de tanto ter filhos, pois ao menos casar e gerar filhos tinha seus momentos felizes e um status social.
Felizmente, graças a diferentes religiões que surgiram no mundo, a vida das mulheres se tornou menos miserável. Com o princípio da caridade, comum a tantas religiões, mais pessoas consideravam um dever espiritual e sagrado dar esmolas aos órfãos e viúvas. O próprio profeta Maomé era um defensor dos direitos das mulheres, embora infelizmente em tempos recentes alguns façam interpretações fundamentalistas do Alcorão de forma a tirar seus direitos.
Mas isso não foi tudo: a possibilidade da vida monástica para mulheres foi um dos fatores mais importantes para a libertação delas. Isso também foi verdadeiro para a Índia, já que em religiões como hinduísmo, budismo e jainismo também existe essa perspectiva.
É verdade que desde o começo não havia direitos iguais para homens e mulheres monges e isso é verdade para várias religiões. Até hoje as monjas no budismo Theravada lutam por direitos básicos. Ainda assim, ser monja ainda parecia um destino melhor do que imolar-se no fogo quando o marido morria, um costume indiano para viúvas conhecido como Sati, que só se tornou ilegal em 1987.
O filme “Water” de Deepa Mehta, que eu assisti uns dez anos atrás, conta um pouco sobre como é a vida de viúvas num Ashram em Varanasi, começando com a história de uma menina de oito anos que se casa com um homem algumas décadas mais velho que ela, que subitamente morre. Ela se torna viúva aos oito anos e deve seguir a tradição das viúvas, raspando a cabeça e se vestindo de branco, passando o resto de sua vida num ashram como renúncia.
Eu tive vários debates na internet com amigos indianos naquela época, questionando porque havia tão poucos direitos para monjas mulheres no budismo Theravada. Por que uma monja precisa se levantar cada vez que um monge entra? Por que as monjas sempre devem servir sua comida após os monges e só podem caminhar atrás deles? Isso acontece até hoje e pude presenciar num mosteiro em que fiz retiro em 2012.
Enquanto os monges devem seguir cerca de 200 regras no Patimokkha, as monjas devem seguir mais de 300, incluindo a proibição de andar sozinhas como os monges, só podendo sair de duas em duas.
Quanto ao jainismo, ele é dividido em duas seitas: Digambar e Svetambar. Para essa primeira seita, as mulheres devem renascer como homens para atingir a iluminação e possuem poucos direitos e reconhecimento na vida monástica. As coisas funcionam assim até hoje.
Perto disso, os direitos das monjas e freiras na Igreja Católica parecem muito maiores. Mas isso não significa que também não existam problemas.
Santa Teresa de Ávila admite em um dos seus livros que um dos motivos que a levou considerar tornar-se monja foi o medo de morrer no parto. Afinal, ela via muitas mulheres morrendo no parto na época em que ela vivia.
Mas qual a outra opção para uma mulher além de casar-se e ter filhos? Entrar para a vida consagrada. Se Santa Teresa vivesse nos dias de hoje, talvez tivesse escolhido outro caminho de vida. Mas naquele tempo simplesmente não havia mais opções.
Santa Catarina de Siena, aos dezesseis anos, estava sendo pressionada pelos pais a se casar. Em protestos, fez jejum e cortou os cabelos. Ela não queria se casar. Qual opção restava? É possível que muitas dessas santas tivessem uma autêntica vocação para a vida consagrada, mas certamente as circunstâncias difíceis da época as pressionavam a tomar uma decisão sobre suas vidas o quanto antes.
Santa Teresinha de Lisieux admite que seu sonho era ser uma missionária. Porém, a ordem dos jesuítas só aceita homens, até hoje (e é a ordem que os homens mais escolhem, já que permite grandes aventuras e muitas viagens pelo mundo. Até o papa é jesuíta agora). Naquela época não havia outras ordens grandes para missionárias mulheres, como hoje existem as Missionárias da Caridade e algumas outras.
Teresinha acabou optando por se tornar uma carmelita, como suas irmãs, e teve uma vida admirável e uma morte santa. Santa Teresa de Calcutá escolheu esse nome por causa de Santa Teresinha e é belo pensar que ela se tornou uma missionária no lugar dela, realizando seu sonho.
Edith Stein também faz algumas críticas sobre o papel da mulher na Igreja Católica. Ela mesma optou por se tornar uma carmelita em vez de, por exemplo, uma dominicana, o que é surpreendente, já que ela era filósofa e a ordem dominicana foca mais na vocação de professor. As primeiras seguidoras de São Domingos foram mulheres e desde o início ele deu bastante espaço para elas em sua ordem.
Antigamente a Igreja Católica só permitia para as mulheres a vida monástica. Tanto que enquanto São Francisco de Assis era um frade que se aventurava pelo mundo, a única opção para Santa Clara foi se trancar em um convento.
Até hoje na Igreja Ortodoxa a única opção para as mulheres é o monasticismo, com raríssimas exceções. A existência de ordens ativas para as mulheres, em vez de contemplativas, que lhes dá permissão de realizar trabalhos missionários e ter profissões, como ser professora, é algo relativamente recente.
Hildegarda de Bingen foi uma monja beneditina polímata, que fazia composições musicais, escrevia sobre botânica, medicina e sobre diversas outras áreas do conhecimento. Como décima filha, ela foi oferecida como dízimo para a Igreja. Se as circunstâncias fossem outras, ela provavelmente teria se tornado uma brilhante professora universitária, como muitos padres e frades da época, pois aqueles eram tempos em que a educação estava começando a migrar dos mosteiros para o ambiente universitário.
Karen Armstrong, uma famosa autora especialista em religiões abraâmicas, foi freira por sete anos assim que terminou o ensino médio. Em seu primeiro livro, “Through the Narrow Gate”, ela conta de forma brilhante os horrores de ser freira num convento antes da reforma da década de 60, que ocorreu no Concílio Vaticano II. Ela era obrigada a usar uma desconfortável roupa de baixo do estilo Era Vitoriana, só tinha autorização para tomar um banho por semana e precisava pedir autorização até para pegar uma colher. Ela tinha que comer o que lhe serviam, mesmo tendo intolerância a alguns dos alimentos e por isso vomitava com frequência. Tinha que se autoflagelar com um chicote até sangrar.
Mas, de longe, o mais doloroso de tudo deve ter sido como algumas das Madres Superiores a tratavam: a humilhando. O ápice de sua narrativa foi quando uma de suas superiores a ordenou que rastejasse no chão e lambesse a sola do seu sapato.
Eu acredito que muitos desses abusos ocorrem quando se nega educação para as mulheres e quando a Igreja as transforma em empregadas domésticas dos padres, que é o que muitas vezes acaba acontecendo, mesmo hoje. Para os homens ficam os trabalhos intelectuais e para as mulheres os afazeres domésticos. Na Tailândia há mosteiros em que as monjas apenas cozinham e limpam enquanto os homens apenas meditam e leem. Há um livro sobre essas dificuldades enfrentadas por monjas budistas tailandesas chamado “Mae Chee Kaew” de Bikkhu Silaratano, que eu tive a oportunidade de obter no meu retiro.
Madre Teresa teve que lutar muito para conseguir formar a sua ordem de missionárias. Apesar disso, foi muito criticada por circunstâncias que às vezes estavam além do seu controle.
Muitos criticam que as Missionárias da Caridade não possuem preparação profissional o suficiente para cuidar adequadamente de tantos doentes. Às vezes elas recebem um curso de auxiliar de enfermagem, mas para algumas funções que desempenham pode não ser o bastante.
Infelizmente, a Igreja Católica tem negligenciado a preparação profissional das freiras desde o começo. E aqui entramos numa das principais polêmicas, senão a principal, envolvendo as mulheres e a Igreja Católica: a ordenação sacerdotal.
Mulheres não podem ser padres. O argumento é que Jesus escolheu apenas discípulos homens e não há referência bíblica de mulheres com papel de liderança relevante no Novo Testamento, principalmente no que se refere à administração dos sacramentos.
O problema é que essa proibição gera outras consequências mais funestas. Não é apenas um desejo das mulheres de representar Cristo, administrar sacramentos ou ter um papel de liderança ou status. Também diz respeito ao acesso das mulheres a uma educação, principalmente de nível superior.
Há muitas ordens com limite de idade na Igreja Católica. Porém, numa mesma ordem, o limite para ingressar costuma ter uma tolerância muito maior para os homens. Por exemplo, nas ordens mais famosas e procuradas para as mulheres nos dias de hoje, o limite de idade para ingresso costuma ser entre 30 e 35 anos. Para homens, gira em torno de 40 a 45 anos.
Por quê? A resposta é muito simples: porque homens podem ser padres e mulheres não. A Igreja Católica precisa desesperadamente de padres. Está disposta a investir muito dinheiro neles, pagando-lhes cursos universitários de teologia e filosofia, além de mestrado e doutorado. É muito fácil para um padre ser um professor universitário. Para completar, ele tem a opção de ser um padre diocesano que não precisa fazer o voto de pobreza. Ou seja, além dos privilégios que recebe, podendo administrar uma paróquia, ainda pode receber um salário e ter um emprego estável. Caso desista de ser padre, ele ainda pode continuar sendo professor.
Mas a situação é completamente diferente com as mulheres. Ser monja ou freira exige sacrifícios imensamente maiores para elas. Para começar, toda mulher consagrada é obrigada a fazer voto de pobreza. Mesmo que tenha a sorte de conseguir algum emprego nas poucas ordens que permitem isso, ela jamais receberá o salário. A Igreja não está disposta a investir muito dinheiro em pessoas cujas funções principais serão cozinhar e limpar de graça.
Se uma mulher desiste de ser freira ou monja, ela sai sem nada: sem emprego, sem dinheiro ou perspectivas. Deve recomeçar do zero. E uma freira ou monja no fim de sua vida que fica doente ou incapacitada, diferente dos padres, não tem direito a uma aposentadoria. Algumas, que fazem parte de ordens mais desconhecidas, podem não ter nem atendimento médico e ninguém para cuidar delas quando mais precisam. Apesar de os cristãos defenderem que se sacrifique pelos outros pela caridade, algumas de suas freiras morrem abandonadas e na solidão, como acontecia com as mulheres no passado. Já li um livro que mostra essa triste realidade.
Existem algumas ordens (raríssimas!) que estão dispostas a pagar um curso universitário para algumas freiras (embora não para monjas). Ainda assim, pode haver certas restrições nas áreas escolhidas e longos anos de espera até que isso aconteça. Para completar, é ainda mais raro que uma monja consiga um mestrado ou um doutorado e terá que lutar muito para isso.
Uma das poucas ordens que conheço que permite essa “ousadia” é a ordem das dominicanas, principalmente ordens americanas como as Irmãs Dominicanas de Santa Cecília e as Irmãs Dominicanas de Maria. Por essa razão, são ordens extremamente disputadas e dizem que é muito difícil entrar nelas.
Ainda assim, elas podem ser professoras primárias e, no máximo, professoras de ensino médio. Ser professora universitária e freira é um privilégio para poucas.
Como eu já fiz alguns retiros em mosteiros, já tive oportunidade de perguntar a opinião de algumas monjas sobre a situação das mulheres na Igreja. Em geral, elas defendem a Igreja Católica, mas eu sinto que algumas delas parecem ter certa tristeza sobre tudo isso.
Se você perguntar para um homem do que ele sente mais falta ao ser padre, talvez alguns digam que uma coisa difícil foi abandonar a possibilidade de casamento e ter filhos. Mas se você perguntar para uma mulher, é comum que respondam que o mais sofrido foi abandonar a carreira, pois é isso que se exige delas.
Até hoje, são as mulheres que mais prejudicam a própria carreira ao ter filhos. E devem abandoná-la se querem ser freiras. Nós vivemos num mundo em que diversas forças parecem atuar para impedir que as mulheres tenham uma boa educação. E muitas delas são crenças românticas e ingênuas sobre o papel da mulher nesse mundo e no outro. Sim, a fé em Deus deve vir acima do conhecimento teológico, mas por que dizem isso para justificar o fato de a Igreja não pagar estudos para as freiras, enquanto Santo Agostinho e São Tomás de Aquino brilham tão fortemente? E enquanto o Vaticano está lotado de bispos doutores. É claro que o estudo de teologia também pode contribuir para fortalecer a fé, embora não seja o único caminho. Analfabetos podem se tornar santos, mas não é o fato de não saber ler que os tornam e sim outras coisas.
É compreensível que antigamente as mulheres não tivessem muitas oportunidades na Igreja numa época em que mulheres não tinham chances de fazer muita coisa em lugar algum. Mas estar no século XXI e ver a posição da Igreja Católica sobre mulheres e homossexuais hoje é realmente triste. Isso ocorre, em parte, porque as pessoas que decidem as regras da Igreja são homens celibatários do Vaticano. E mesmo aqueles que tentam mudar algo têm dificuldade de desafiar a tradição.
Quando eu tinha 17 anos eu estava apaixonada tanto pela Igreja Católica, devido a minhas leituras da Bíblia, quanto pelo budismo Theravada. Foi um ano em que estudei muito sobre essas duas religiões e eu me perguntei se tinha vocação para ser monja, fosse budista Theravada ou católica.
Porém, eu me desapontei muito ao saber de todos esses problemas e outros mais que as mulheres enfrentam para conquistar um lugar ao sol no mundo monástico fechado do budismo e do cristianismo tradicionais. Naquele ano eu conversei tanto com freiras quanto com monges budistas sobre essa questão e pelo que vi e ouvi me senti desencorajada.
Até para achar lugares para fazer retiros curtos, católicos ou budistas Theravada, costuma ser mais difícil para mulheres. Há menos opções, há mais restrições e dificuldades.
Até hoje, o mundo monástico de variadas religiões ainda é predominantemente masculino e uma mulher que faz parte dele pode se sentir um pouco excluída. É verdade que algumas não se importam tanto, assim como há gays que frequentam a igreja, defendem seus direitos, mas mesmo assim não deixam de ser católicos.
Eu tento chegar num equilíbrio. Nos dias de hoje eu não tenho mais interesse na vida monástica ou consagrada como modo de vida para mim. Eu gosto de fazer retiros, mas apenas temporários. Meu conhecimento inicial sobre cristianismo e budismo veio da época da adolescência, quando eu me perguntei se as religiões que permitiam a vida monástica não eram de fato as mais interessantes. Afinal, as pessoas chegavam ao ponto de abandonar tudo por elas.
Eu acabei lendo bastante sobre cristianismo e religiões indianas e guardo esse amor até hoje. Mas é um amor diferente daquele que eu tinha na adolescência. Pois quando eu era adolescente, assim como a Karen Armstrong, eu estava disposta a enfrentar as maiores dificuldades por pura paixão, por um impulso, por um sonho, sem raciocinar o que aquilo significava.
Nos dias de hoje eu tenho um amor mais amadurecido por religiões. Tenho meu lado romântico que ainda as ama, mas também tenho o lado racional que encara com realismo os problemas das religiões (não de uma em particular, mas de todas). Eu não as amo cegamente e nem as detesto por não serem perfeitas. Não acho que elas são a solução para todas as coisas do mundo e nem a fonte de todos os problemas do mundo.
De certa forma, eu admiro mulheres que, apesar de todos os problemas, sacrificam tudo para fazer parte de uma Igreja tão fechada quanto a Igreja Católica. Ela é aberta e universal em alguns sentidos, mas em outros deixa algumas feridas. Já conheci monjas católicas e monjas budistas Theravada, já conversei muito com elas e certamente eu não sou nem metade do que elas são. Não tenho a coragem delas, a perseverança e a fé.
Mas eu tenho meu próprio caminho. É necessário que as pessoas também tentem conquistar os seus direitos não somente a partir de fora, mas também de dentro. Às vezes para conseguir mudar algo na Igreja, você precisa estar nela e não criticá-la como alguém de fora. Você será mais ouvido.