As crianças de Deus e da guerra
Um dos maiores argumentos contra a existência de Deus é o seguinte: se você fosse Deus, criaria um mundo em que crianças inocentes são mortas, torturadas e estupradas em nome do aprimoramento moral da humanidade?
Você não precisa ser Deus, basta ser uma pessoa com alguma noção de certo e errado para responder um sonoro “não” a essa pergunta. Pois é isso que pessoas religiosas costumam dizer: não sabemos porque Deus criou o mundo e porque ele permite a dor, o sofrimento e a morte de inocentes. Porém, aparentemente, estamos nesse mundo para algum tipo de teste moral e espiritual. Há uma vida depois dessa, outro mundo, em que será aplicada plenamente a justiça divina.
Essa resposta costuma não satisfazer muita gente. Se você teve uma vida relativamente longa, uma boa educação, lar, comida e muitas oportunidades para testar se ajudaria ou não outras pessoas, até faz algum sentido falarmos na vida como um teste para aprimoramento moral. Não todo o sentido, pois muitas questões ainda ficam no ar. Mas até dá para aceitar, com algum esforço.
Porém, o que justifica a morte de bebês e crianças, que nem tiveram tempo o bastante para aprender sobre o bem e o mal? E muito menos para colocar à prova esse conhecimento.
São dadas variadas respostas para essa pergunta. Mas a morte de um bebê seria justificada para ensinar aos pais sobre a perda? A Igreja Católica, por exemplo, dá respostas variadas. Antigamente se falava em limbo. Atualmente se aceita que crianças inocentes que morrem certamente vão para o céu.
Se é assim, não é mais fácil todos nós morrermos ainda enquanto crianças para garantir nossa entrada no céu? Segundo os católicos, cada pessoa é julgada de acordo com suas circunstâncias particulares. Se ela era muito pobre, muito jovem, não tinha o que comer e morre, não será julgada tão duramente. Se ela tinha mais educação e mais condições, será julgada com mais rigor.
Isso faz algum sentido, mas nem todos aceitam essas respostas. Há quem as ache meio forçadas.
Para 7% da população mundial (principalmente homens brancos de classe média ou alta, e também muitos chineses), Deus provavelmente não existe. Seria mais lógico chegar a essa conclusão do que admitir que existe algum motivo moral ou espiritual válido que justifique a morte de crianças.
Outras pessoas até admitem a existência de um Deus ou de Deuses, mas tentam explicar que a morte de crianças pode coexistir com a existência de Deus através de outras justificativas. Digamos, quem sabe Deus é panteísta. Ou seja, não há um Deus pessoal, antropomórfico, que decida conscientemente matar inocentes. Deus é o Todo, a natureza, a morte existe para prosseguirmos no ciclo da vida, que pode incluir a existência de vários universos, etc.
Porém, o que mais me intriga é que, mesmo em 2020, mais da metade da população mundial acredita num Deus pessoal, pois mais da metade das pessoas considera-se cristã ou muçulmana.
E não é só isso: uma grande parcela dessas pessoas que acredita num Deus pessoal que permite a morte de inocentes vive em grande pobreza e em países em guerra. Elas mesmas tiveram os filhos mortos, no parto, de fome, de doença ou na guerra e continuam acreditando em Deus. Continuar acreditando em Deus mesmo depois de passar por sofrimento extremo é mais incrível do que acreditar ou não acreditar após estudar muito a fundo teologia ou filosofia.
Para mim essa é a pergunta que realmente importa. Eu me importo menos em saber o que acreditam pessoas que vivem em países que estão em paz, que têm o que comer e que não convivem com a morte de perto diariamente. Eu quero saber as crenças de pessoas que não têm comida, que perderam muitos filhos e parentes na guerra e que vivem em um sofrimento tão extremo a ponto de sua fé em Deus já ter terminado. A questão de ouro é: por que essa fé continua e cada vez mais forte para a maioria delas?
Eu me dei conta de uma coisa. Muitos dizem que não acreditam num Deus que permite a morte de crianças em nome de alguma causa maior. Mas é exatamente isso que as guerras causam: a morte de crianças inocentes em nome de uma “causa maior”. E guerras são feitas por seres humanos e não por Deus. Ou seja, um ser humano consegue conceber causas em sua mente que teoricamente justifiquem a morte de crianças.
Eu já li as seguintes estatísticas: quando uma guerra ocorre numa cidade, mais de 90% das mortes não são de soldados, mas de civis. E dentre essas mortes de civis, até 40% dessas mortes geralmente são de crianças. Atualmente há mais de cem guerras no mundo. Uma em cada dez crianças hoje enfrenta uma situação de guerra (algumas dessas estatísticas eu retirei da Cruz Vermelha).
Ou seja, aqueles que decidem fazer uma guerra sabem que a maior parte dos mortos serão civis. E que quase metade dos que morrerão serão crianças. Dentre as piores guerras que ocorrem hoje no mundo estão as guerras na Síria e no Iêmen. Nesses lugares, de 70 a 80% da população passa fome.
Muitos autores que eu li concordam que a guerra é a pior coisa que pode acontecer a um país, a uma cidade, a uma família, a uma pessoa. Ela é pior que a fome, é pior que doença, pior que uma pandemia. Fome, peste e guerra costumam ser citadas justas como os piores males, porque uma pode causar a outra. Porém, por pior que seja a fome e uma doença, por mais desfigurações que uma doença possa causar (como a varíola) nada se compara ao desespero de cadáveres despedaçados e amontoados nas ruas, pessoas decapitadas, desmembradas e “tentando segurar as tripas que escapam do buraco da barriga” como descreve Erich Maria Remarque.
Então se as guerras são tão horríveis, se elas são o pior dos males, por que elas acontecem? Por que tantos seres humanos permitem a guerra, assim como Deus parece permitir a morte de inocentes?
Se tivermos a resposta para a questão da guerra, talvez também tenhamos a resposta de porque Deus permite o mal no mundo. Tenho algumas reflexões sobre isso que eu gostaria de compartilhar.
Eu já li a biografia e livros escritos por muitos famosos autores pacifistas, como Gandhi, Tolstói e Martin Luther King. Nós sabemos que Gandhi era hindu, Tolstói era cristão e Martin Luther King um pastor batista. Ou seja, eles tiraram suas ideias pacifistas principalmente da religião.
Eu admiro esses autores, mas dentre os livros que li deles, admiro principalmente “O Reino de Deus está em vós” de Tolstói. Para ser coerente com seu próprio princípio de pacifismo, ele diz o seguinte: se Deus existe e se a justiça será feita por ele no outro mundo, para ser 100% pacifista não devemos, jamais, reagir de forma violenta. Nem se alguém atacar minha família, amigos ou aqueles que amo. Devo apenas morrer se alguém vier me matar ou matar outra pessoa, pela minha fé em Deus.
Embora essa ideia pareça absurda a princípio, ele foi o primeiro autor que li que realmente admitiu (com base na teologia) o que significa ser totalmente pacifista: se alguém vier matar uma pessoa que você ama, você jamais pode reagir com violência e deixar que a pessoa que você ama morra. Se você não acredita em Deus e em outro mundo, é mais difícil seguir essa forma de pacifismo extremo, em estilo Kant: “que a justiça seja feita, mesmo que o mundo pereça”. Se toda a humanidade morrer, dirão quem não acredita em Deus, qual foi o sentido de ser pacifista?
Esse é o preço amargo do pacifismo. Pois é fácil dizer que somos contra uma guerra. Difícil é aceitar que somos tão contra a violência que iremos permitir que todos os inocentes morram, sem fazer absolutamente nada. Iremos apenas rezar e cuidar das feridas dos amados, mas nunca atacar.
É muito fácil ser completamente pacifista quando você vive num país em paz e pensa na guerra de uma forma abstrata, como se fosse uma coisa idiota que “os outros” fazem. Porém, se sua cidade está em guerra, se explodem uma bomba na sua casa, se matam e torturam sua família e amigos, você dirá: “Sim, realmente, a guerra é o pior que pode haver e eu sou contra ela”, mas dificilmente você dirá: “Realmente, eu amo meu inimigo. Não farei nada contra ele, eu o perdoo. Essa guerra não tem nada a ver comigo, irei apenas ficar aqui e morrer. Também não apoio nenhum dos lados, sou neutro”.
É fácil ser neutro e ser contra os dois lados da guerra quando essa guerra não tem nada a ver com você e sua família.
As pessoas que fazem guerra ou apoiam um dos lados não são estúpidas. Assim como Deus não é estúpido por permitir a morte de inocentes em nome de alguma causa moral ou espiritual.
E que causa é essa? Existe alguma situação em que a guerra é justificável?
Vários autores mencionam alguns casos em que sim, a guerra pode ser justificável. Na Igreja Católica existe a doutrina da guerra justa, que estabelece quais condições uma guerra seria moralmente aceitável. Como no caso de uma guerra para defesa. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino foram alguns dos que mencionaram esse conceito.
Se você é completamente pacifista e contra guerras dirá: sim, bombardeiem todos os nossos hospitais, escolas, universidades, todas as casas dos civis, não faremos nada. Matem nossas crianças. Nós queremos paz, iremos apenas pedir que vocês assinem esse papel. Façamos um acordo: paguem pelos milhares de civis que vocês mataram e não falemos mais nisso, beleza?
Se surgir um novo Hitler invadindo seu país e se ele mandar judeus, ciganos e homossexuais para campos de concentração, você certamente dirá: sem problemas, não queremos fazer guerra com você porque somos pacíficos. Pode matar todo mundo. Vamos fazer um acordo, você assina e não se fala mais nisso, ok? Você quer invadir metade do meu país? Tudo certo, pode ficar com metade, apenas não vamos brigar, tá bom?
Se surgir alguém querendo escravizar todo mundo e ferir gravemente os direitos humanos, você dirá: sem problemas, pode fazer isso. Somos contra guerra. Mas não queremos que você torture as pessoas, então vamos fazer um acordo pacífico. Sim, eu sei que você já matou milhões de pessoas sem pedir licença, mas essas coisas acontecem. Não quero brigar. Vamos ter paz.
O que eu quero dizer com tudo isso? Eu sou fortemente contra guerras, concordo que é um dos piores males do mundo e que algo assim deve ser evitado ao máximo.
Porém, nem todas as guerras são evitáveis. É verdade que algumas guerras são feitas por motivos infelizes, mas nem todas. É muito fácil que pessoas de países em paz, que nunca viram uma guerra, julguem, como bons moralistas, os “idiotas cruéis” de países distantes que “fazem guerra” como se fosse um jogo, um brinquedo.
É difícil admitir, pode parecer crueldade. Mas existem sim algumas situações em que uma guerra é justificável. É lamentável admitir isso, assim como é lamentável que uma pessoa mate outra por defesa. Mas é assim tão abominável que ela queira defender a própria vida ou a vida da família ou daqueles que ama se foi atacada?
Essas são questões complexas. Não é apenas uma questão de “ser contra guerra” ou “ser a favor da guerra”. Cada caso é diferente, assim como o caso de cada pessoa a ser julgada no tribunal é único.
Mas acho ingênuo ser contra todas as guerras e pior ainda ser a favor de qualquer guerra. Pode valer a pena lutar em nome dos direitos humanos e contra a escravidão? Sim. Vamos analisar o que é possível fazer naquele caso. Não é apenas questão de sair matando todo mundo ou deixar todo mundo morrer.
Até porque existem leis de guerra (que raramente são seguidas).
Então, se admitimos que algumas guerras justificam a morte de crianças, é tão impensável assim imaginar um mundo governado por um Deus que também permite isso?
Eu já li muitos livros que descrevem guerras reais do passado e do presente: Primeira Guerra, Segunda Guerra, Guerra do Vietnã, massacre de Srebrenica, genocídio de Ruanda, guerra da Nigéria (Biafra), guerras na Síria, Iêmen, Sudão do Sul, etc. Já li a perspectiva de pessoas que lutaram na guerra, de civis, de jornalistas e muitos outros.
Então é natural que essas pessoas tenham as visões mais diferentes sobre a guerra. Às vezes você odeia o inimigo (se já é fácil ter raiva de políticos, imagine como não ter raiva de alguém que matou sua família!). Outras vezes você acha aquilo tudo uma estupidez, não apoia lado nenhum porque foi simplesmente obrigado a participar ou estava lá no meio e nem sabe o que estava acontecendo. Existe de tudo.
Mas uma coisa é certa: as ideias que uma pessoa de um país em paz tem sobre a guerra são muito diferentes de alguém que vivenciou aquilo. E geralmente quem vive num país em paz tem ideias ingênuas. Mesmo que seu país faça guerra com outro, a coisa muda quando a guerra ocorre em solo nacional e você corre riscos diários.
Por exemplo, agora eu estou lendo o livro “O segredo do meu turbante” de Nadia Ghulam. Aos 8 anos, uma bomba atingiu a casa dela durante a guerra civil do Afeganistão. Ela ficou em coma por seis meses, com muitas queimaduras. Teve que viver em um campo de refugiado por algum tempo, praticamente sem comida e lutando por atendimento médico. Até que a guerra civil acabou e o Talibã assumiu. Durante a guerra as mulheres podiam ser atendidas por médicos quando tinham acesso a um hospital. Mas o Talibã proibiu que mulheres trabalhassem, estudassem ou fossem ao médico. Quem desobedecia as regras podia ser punido com mutilações, espancamentos, prisão ou morte. Quem roubava tinha a mão cortada em público e as pessoas eram obrigadas a assistir. Nadia Ghulam teve que se disfarçar de homem para conseguir trabalhar e trazer comida para a família pobre.
Será que um país com o Talibã no poder é melhor que uma guerra civil? Eis aí uma questão para reflexão de ocidentais que são contra todas as guerras e não vivem num país em que as mulheres não têm permissão de sair na rua, estudar, trabalhar e ir ao médico.
E mesmo num país em que a religião foi o motivo para opressão, Nadia descobriu que o Islã também é uma religião de paz, frequentava uma mesquita e tinha muita fé em Deus. Até que ela foi escolhida para ser um mulá (clérigo islâmico).
Afinal, Deus existe ou não existe? Algumas guerras são justificáveis? Não faça essa pergunta apenas para acadêmicos que apenas leram sobre guerra em livros. Pergunte para pessoas que viram quais são algumas condições desumanas que podem causar guerras.
E o que eu descobri lendo entrevistas com essas pessoas? Sim, há casos em que certas guerras são justificáveis. Isso não significa que essas pessoas são “a favor de guerras”. Elas são a favor da paz e dos direitos humanos. Mas os direitos humanos devem vir antes da paz. Afinal, como pode haver paz sem ter os direitos mais básicos garantidos?
E a maior parte dessas pessoas costumam acreditar em Deus. Até porque a maior parte das guerras que acontecem atualmente são em países muçulmanos. E a fé em Deus é uma força para elas.
Voltando à pergunta inicial: se você fosse um Deus, criaria um mundo que permite a morte de crianças inocentes? Ou, outra versão dessa pergunta: você acha que é justificativo haver uma guerra que permite a morte de crianças?
No mundo que vivemos existe a morte de crianças e guerras. Então ou Deus não existe e quem faz guerras é estúpido. Ou vale a pena lutar em nome dos direitos humanos, e aquelas pessoas pobres que perdem filhos na guerra e não deixam de acreditar em Deus estão vendo algo que nós não conseguimos ver. Nós podemos mesmo julgá-los?