“Arriscando a própria pele”, por Nassim Taleb
Acabei de ler esse livro e gostei bastante. O autor é original em relação a vários temas.
Escrevi esse post não para fazer uma resenha detalhada do livro, mas para deixar que a obra fale por si. Irei colocar aqui as minhas passagens favoritas. Eu também as coloquei na minha página do Facebook, mas lá em breve elas serão perdidas. Então decidi deixá-las registradas por aqui, para quando eu precisar delas. E também para compartilhar com vocês. :)
Os trechos estão na ordem em que eles aparecem no livro:
“Anteu era um gigante, ou melhor, um semigigante, filho da Mãe-Terra, Gaia, e Poseidon, o deus do mar. Tinha uma estranha ocupação, que consistia em obrigar as pessoas que passavam por sua terra, a Antiga Líbia, a lutar com ele, sendo que tais combates invariavelmente terminavam com a morte do adversário; o passatempo de Anteu era prender as vítimas contra o chão e esmagá-las. Essa atividade macabra era, aparentemente, a expressão de uma devoção filial: Anteu tinha como objetivo erguer um templo em homenagem ao pai, Poseidon, usando os crânios de suas vítimas como matéria-prima.
Anteu era considerado invencível, mas ele tinha um segredo. O gigante extraía sua força do contato com sua mãe, a terra. Extremamente forte quando estava em contato com o chão, Anteu perdia seus poderes se fosse erguido no ar. Hércules, como parte de seus doze trabalhos (em uma variação da lenda), recebeu a incumbência de derrotar Anteu. O herói conseguiu levantar Anteu do chão, esmagando-o até a morte enquanto os pés do gigante permaneciam afastados de sua mãe.
O que aprendemos com essa primeira vinheta é que, assim como Anteu, não se pode separar o conhecimento do contato com o chão. Na verdade, não se pode separar coisa alguma do contato com o chão. E o contato com o mundo real é feito arriscando a própria pele — expondo-se ao mundo real e pagando um preço pelas consequências, sejam elas boas ou ruins, dessa exposição. As feridas resultantes de tais experiências orientam a aprendizagem e descoberta, um mecanismo de sinalização orgânica que os gregos chamavam de pathemata mathemata (“norteie seu aprendizado por meio da dor”, algo que mães de crianças pequenas conhecem muito bem). Em meu livro Antifrágil, mostrei que a maioria das coisas que acreditamos terem sido “inventadas” por universidades foram na verdade descobertas por improviso e depois legitimadas por algum tipo de formalização. O conhecimento que obtemos por meio da improvisação, fuçando e bisbilhotando, via tentativa e erro, experiência e repetição — em outras palavras, o contato com a terra — é imensamente superior àquele obtido por meio do raciocínio, algo que instituições egoístas têm se dedicado a esconder de nós”.
“Segunda vinheta. Enquanto escrevo estas linhas, alguns milhares de anos depois, a Líbia, a suposta terra de Anteu, agora comercializa escravos, como resultado de uma fracassada tentativa do que é chamado de “mudança de regime” a fim de “destituir um ditador”. Sim, em 2017, há mercados de escravos improvisados em estacionamentos, onde africanos subsaarianos capturados são vendidos a quem fizer a maior oferta”.
“A ideia de arriscar a própria pele permeia a história: tradicionalmente, todos os senhores da guerra e belicistas eram eles próprios guerreiros e, com poucas e curiosas exceções, as sociedades eram administradas por quem corria riscos e não por quem transferia riscos.
Pessoas importantes e em posições de destaque corriam riscos, muitas vezes até mais do que os cidadãos comuns. O imperador romano Juliano, o Apóstata, morreu no campo de batalha lutando uma guerra sem fim na fronteira persa enquanto ainda era imperador. Pode-se apenas especular sobre Júlio César, Alexandre, O Grande, e Napoleão, que muito se deve à usual fabricação de lendas por parte dos historiadores, mas nesse caso a prova é robusta. Não existe melhor evidência histórica de um imperador assumindo uma posição na linha de frente da batalha do que uma lança persa alojada no peito de Juliano (que não usava armadura). Um dos seus predecessores, Valeriano, foi capturado na mesma fronteira, e reza a lenda que foi usado como um escabelo humano sobre o qual o xá Shapur se apoiava ao montar seu cavalo. E o último imperador bizantino, Constantino XI Paleólogo, foi visto pela última vez quando removeu sua toga roxa e se juntou a Ioannis Dalmatus e seu primo Teófilo Paleólogo para atacar as tropas turcas, brandindo suas espadas, orgulhosamente rumando para a morte. A lenda diz que Constantino recebeu a oferta de um acordo caso se rendesse. Mas esse tipo de negociação não é para reis de respeito.
Esses relatos não são isolados. O autor que vos escreve está bastante convencido sobre as estatísticas: menos de um terço dos imperadores romanos morreu na cama. Pode-se argumentar que, uma vez que pouquíssimos deles morreram de velhice, se tivessem vivido mais tempo teriam sido derrubados por um golpe de Estado ou sucumbiriam em batalha.
Até hoje, monarcas derivam sua legitimidade de um contrato social que exige assumir riscos físicos. A família real britânica fez questão de que um dos seus herdeiros, o príncipe Andrew, corresse mais riscos do que os “plebeus” durante a Guerra das Malvinas de 1982, com seu helicóptero estando na linha de frente. Por quê? Porque noblesse oblige (a nobreza obriga); o próprio status de um lorde tradicionalmente derivava do ato de proteger outros, trocando risco pessoal por posição de poder — e parece que a família real britânica ainda se lembra desse contrato. Uma pessoa não pode ser um lorde se não for um lorde”
“Examinemos rapidamente as regras à direita de Hamurabi. Levítico é um abrandamento do princípio de Hamurabi. A Regra de Ouro (ou Regra Áurea) é uma máxima moral que diz: Trate os outros como gostaria de ser tratado. Mais vigorosa, a Regra de Prata diz: Não trate os outros da forma como não gostaria de ser tratado. Mais vigorosa? Como? Por que a Regra de Prata é mais vigorosa?
Para começo de conversa, ela instrui cada um a cuidar da própria vida e não decidir o que é “bom” para os outros. Sabemos com muito mais clareza o que é ruim do que o que é bom. A Regra de Prata pode ser vista como a Regra de Ouro Negativa, e como aprendo a cada três semanas com meu barbeiro calabrês (e que é falante do dialeto calabrês), a via negativa (agir por meio da eliminação) é mais poderosa e menos propensa a erros do que a via positiva (agir por adição)”
“Ninguém personifica a noção de simetria melhor que Isócrates, que viveu mais de um século e fez contribuições significativas quando já era nonagenário. Saiu-se inclusive com uma rara versão dinâmica da Regra de Ouro: “Age em relação a teus pais como gostarias que teus filhos agissem em relação a ti”. Tivemos que esperar até que o excelente treinador de beisebol Yogi Berra formulasse outra regra tão dinâmica para as relações simétricas: “Eu vou ao funeral das outras pessoas porque quero que elas venham ao meu”.
Mais eficaz, é claro, é a direção inversa, uma pessoa tratar os filhos da mesma forma que desejava ter sido tratado pelos pais”
“Por fim, e de maneira primordial, arriscar a própria pele tem a ver com honra, com um compromisso existencial, e assumir riscos (uma certa classe de riscos) como uma separação entre homem e máquina e (alguns talvez odeiem isto) uma categorização de humanos.
Se você não corre riscos por sua opinião, você não é nada.
E continuarei afirmando que não tenho outra definição de sucesso a não ser levar uma vida honrosa. E que é desonroso deixar outros morrerem em seu lugar”
“O Paradoxo de Popper-Goeddel
Eu estava em um gigantesco jantar — daqueles com muitas mesas em que o convidado tem que escolher entre o risoto vegetariano e a opção não vegetariana — , quando notei que a comida do meu vizinho foi servida (incluindo talheres) em uma bandeja que lembrava refeição de avião. Os pratos estavam lacrados com papel-alumínio. Ele era evidentemente ultrakosher. Não o incomodava estar sentado com comedores de presunto cru, que, além disso, misturavam manteiga e carne no mesmo prato. Ele só queria seguir suas próprias preferências em paz.
Para judeus e minorias muçulmanas como xiitas, sufis e religiões (vagamente) associadas, como drusos e alauítas, o objetivo é ser deixado em paz — com exceções históricas aqui e ali. Mas se meu vizinho fosse um sunita salafista, ele teria exigido que o salão inteiro comesse halal. Talvez o prédio inteiro. Talvez a cidade inteira. Com sorte, o país inteiro. Idealmente, o planeta inteiro. De fato, dada a total falta de separação entre Igreja e Estado em seu credo, e entre o sagrado e o profano, para ele haram (o oposto de halal) significa literalmente “ilegal”. Logo, todos os convivas da festa inteira estavam cometendo uma violação.
Enquanto escrevo estas linhas, as pessoas estão discutindo se a liberdade do Ocidente esclarecido pode ser minada pelas políticas invasivas que seriam necessárias para combater os fundamentalistas.
Pode a democracia — por definição, a maioria — tolerar inimigos? A questão é a seguinte: “Você concordaria em negar a liberdade de expressão a todos os partidos políticos que têm em seu estatuto a proibição da liberdade de expressão?”. Vamos dar um passo adiante: “Uma sociedade que escolheu ser tolerante deve ser intolerante com a intolerância?”.
Esta é, de fato, a incoerência que Kurt Gödel (o grande mestre do rigor lógico) detectou na Constituição dos Estados Unidos ao fazer a prova de naturalização. Diz a lenda que Gödel começou a debater com o juiz, e Einstein, que foi sua testemunha durante o processo, salvou-o. O filósofo da ciência Karl Popper descobriu de forma independente a mesma inconsistência nos sistemas democráticos.
Escrevi sobre pessoas com falhas lógicas perguntando-me se alguém deveria ser “cético sobre o ceticismo”; usei uma resposta semelhante à de Popper quando me indagaram se “alguém poderia falsificar falsificações”. Eu simplesmente caí fora.
Podemos responder a essas questões usando a regra da minoria. Sim, uma minoria intolerante pode controlar e destruir a democracia. Na verdade, no fim das contas isso acabará por destruir o nosso mundo.
Então, precisamos ser mais do que intolerantes com algumas minorias intolerantes. Simplesmente porque elas violam a Regra de Prata. Não é admissível usar “valores estadunidenses” ou “princípios ocidentais” no tratamento do salafismo intolerante (que nega a outras pessoas o direito de terem sua própria religião). O Ocidente está atualmente no processo de cometer suicídio”.
“Unus sed leo: É só um, mas é um leão
Alexandre, o Grande, disse que era preferível ter um exército de ovelhas lideradas por um leão do que um exército de leões comandado por uma ovelha. Alexandre (ou quem quer que tenha proferido esse provérbio provavelmente apócrifo) compreendeu o valor da minoria ativa, intolerante e corajosa. Aníbal aterrorizou Roma ao longo de uma década e meia com um pequeno exército de mercenários, vencendo 22 batalhas contra os romanos, batalhas em que sempre esteve em menor número. Ele foi inspirado por uma versão dessa máxima. Pois, na Batalha de Canas, ele comentou com o general Gisco, que demonstrou preocupação com o fato de que os cartagineses estavam em menor número: “Há uma coisa que é mais maravilhosa que o contingente deles… em todo aquele vasto exército não há um homem chamado Gisco”.
Essa enorme recompensa resultante da coragem teimosa não se limita ao âmbito militar. “Nunca duvide de que um pequeno grupo de cidadãos conscientes possa mudar o mundo. De fato, essa é a única via que já conseguiu produzir mudanças até hoje”, escreveu Margaret Mead. As revoluções são indiscutivelmente conduzidas por uma minoria obsessiva. E todo o crescimento da sociedade, seja econômico ou moral, vem de um pequeno número de pessoas”
“Na famosa narrativa de Ahiqar, mais tarde adaptada por Esopo (e novamente retomada por La Fontaine), o cão se gaba para o lobo de todas as engenhocas de conforto e luxo de que ele desfruta, quase convencendo o lobo. Até que o lobo repara no pescoço esfolado do cão, questiona sobre a coleira e fica aterrorizado quando compreende seu uso: “‘Amarrado? Adeus, amigo! Não te sigo! Das tuas refeições inveja não sinto’. Ele fugiu e ainda está correndo”.
A pergunta é: o que você gostaria de ser, um cachorro ou um lobo?
A versão original em aramaico era protagonizada por um burro em vez de um lobo, ostentando sua liberdade. Mas o burro selvagem acaba sendo devorado pelo leão. Liberdade implica riscos — arriscar a própria pele, de verdade. A liberdade nunca é de graça […]
A liberdade está sempre associada a assumir riscos, quer a bravata resulte em liberdade, quer derive dela. Quem corre riscos se sente parte da história. E os que se expõem a riscos assumem riscos porque é da sua natureza serem animais selvagens”
“Observe a dimensão linguística — e por que, além das considerações de vestuário, os traders precisavam ser mantidos afastados do restante das pessoas que não eram livres e não assumiam riscos. Na minha época, ninguém xingava em público, exceto membros de gangues e aqueles que queriam sinalizar que não eram escravizados: os traders tinham uma boca suja digna de marinheiros, e eu mantive o hábito da linguagem chula estratégica, usada apenas fora dos meus textos e da vida familiar. Aqueles que usam linguagem indecorosa e de baixo calão nas redes sociais (como o Twitter) estão enviando um claro sinal de que são livres — e, ironicamente, competentes. Ninguém sinaliza competência se não correr os riscos por ela — existem poucas dessas estratégias de baixo risco. Portanto, hoje, xingar é um símbolo de status, assim como os oligarcas em Moscou usam calças jeans em eventos especiais para reforçar seu poder. Mesmo nos bancos, os traders eram mostrados aos clientes em visitas à empresa como se fossem animais em um zoológico, e a visão de um trader xingando ao telefone enquanto negociava com um corretor fazia parte do cenário.
Dessa forma, xingar e usar linguagem torpe pode ser um sinal de status canino e ignorância — “ canaille ”, ou canalha, que etimologicamente relaciona essas pessoas aos cães. Ironicamente, o status mais elevado, o de um homem livre, é usualmente indicado pela adoção voluntária dos costumes da classe mais baixa. Não é diferente de Diógenes (aquele que vivia no barril) insultando Alexandre, o Grande — quando pediu ao imperador que saísse da frente do sol e não tirasse dele o que não podia lhe dar. Leve em conta que as “maneiras” inglesas foram impostas à classe média como uma forma de domesticá-las, além de incutir nelas o medo de transgredir regras e violar normas sociais”
“No filme de James Bond, 007 contra Spectre , o agente com licença para matar se vê lutando — por conta própria, ao estilo dos denunciantes — contra uma conspiração de forças obscuras que assumiu o controle do serviço secreto britânico, incluindo seus supervisores. Quando Bond pede a Q que o ajude na batalha contra os conspiradores, a resposta de Q — que construiu para 007 Bond um novo e sofisticado carro e outras engenhocas — é a seguinte: “Tenho uma hipoteca e dois gatos”. Em tom de brincadeira, claro, porque ele acaba arriscando a vida de seus dois gatos para enfrentar os malfeitores.
A sociedade gosta que santos e heróis morais sejam solteiros e celibatários, de modo que não sofram pressões familiares que possam forçá-los ao dilema de precisar comprometer seu senso de ética para alimentar os filhos. Toda a raça humana, algo bastante abstrato, torna-se a família deles. Alguns mártires, como Sócrates, tinham filhos pequenos (embora já fosse septuagenário) e superaram o dilema às custas da prole. Muitos não conseguem.
A vulnerabilidade dos chefes de família foi explorada de modo notável ao longo da história. Os samurais tinham que deixar suas famílias como reféns em Edo como garantia de que não se rebelariam contra os governantes. Romanos e hunos praticavam a troca de “visitantes” permanentes, os filhos de governantes de ambos os lados, que cresciam nas cortes da nação estrangeira em uma forma de cativeiro luxuoso.
Os otomanos contavam com os janízaros, que ainda recém-nascidos eram arrancados de famílias cristãs, e nunca se casavam. Não tendo família (ou nenhum contato com a família), devotavam-se inteiramente ao sultão.
Não é segredo que as grandes corporações preferem funcionários com famílias; é mais fácil ser dono de alguém que tem risco de perder alguma coisa, especialmente quando está sufocando sob o peso de uma penosa hipoteca.
E é claro que a maioria dos heróis fictícios, como Sherlock Holmes ou James Bond, não tem o estorvo de uma família que pode se tornar alvo, digamos, do malévolo professor Moriarty.
Vamos dar um passo adiante.
Para fazer escolhas éticas, você não pode ter dilemas entre o particular (amigos, família ) e o geral.
O celibato tem sido uma forma de forçar os homens a implementar tal heroísmo: por exemplo, os membros da antiga seita judaica rebelde dos essênios eram celibatários. Então, por definição, não se reproduziram — a menos que se considere que a seita sofreu uma mutação para se fundir com o que hoje é conhecido como cristianismo. A exigência de castidade talvez fosse útil para as causas rebeldes, mas não é a melhor maneira de multiplicar uma seita ao longo dos tempos.
A independência financeira é outra maneira de solucionar dilemas éticos, mas tal independência é difícil de averiguar: muitas pessoas que aparentam ser independentes não o são exatamente. Se na época de Aristóteles uma pessoa de posses era livre para seguir sua própria consciência, isso não é mais tão comum nos dias modernos.
A liberdade intelectual e ética exige não arriscar a pele dos outros por nós, e é por isso que os livres são tão raros. Não sou minimamente capaz de imaginar o ativista Ralph Nader, quando era o alvo das grandes montadoras de automóveis, criando uma família com 2,2 filhos e um cachorro.
Mas nem o celibato nem a independência financeira tornam alguém incondicionalmente imune”
“Isso me permitiu finalmente entender esse negócio da Trindade. A religião cristã, passando por Calcedônia, Niceia e outros concílios ecumênicos e vários sínodos de bispos inclinados a discussões, teimou em insistir na natureza dual de Jesus Cristo. Seria teologicamente mais simples se Deus fosse um deus e Jesus fosse um homem, tal qual outro profeta, a maneira como o islã o vê, ou a forma como o judaísmo vê Abraão. Mas não, ele tinha que ser a um só tempo homem e deus; a dualidade é tão essencial que continuava voltando por meio de todo tipo de refinamento: se a dualidade permitia compartilhar a mesma substância (ortodoxia), a mesma vontade (monotelitas) ou a mesma natureza completa (monofisitas). A Trindade é o que levou outros monoteístas a ver traços de politeísmo no cristianismo, e fez com que muitos cristãos que caíram nas mãos do Estado Islâmico fossem decapitados.
Então parece que os fundadores da Igreja realmente queriam que Cristo arriscasse a própria pele; ele realmente sofreu na cruz, sacrificou-se e conheceu a experiência da morte. Ele era afeito a riscos. De forma mais decisiva para a nossa história, ele se sacrificou pelo bem dos outros. Um deus despido de humanidade não pode dar a cara a tapa dessa maneira, não pode realmente sofrer (ou, se o fizer, essa redefinição de um deus injetado com uma natureza humana corroboraria nosso argumento). Um deus que não sofreu de verdade na cruz seria como um mágico que encenou uma ilusão.
A Igreja ortodoxa vai além, valorizando o lado humano. O bispo Atanásio de Alexandria, do século IV, escreveu: “Jesus Cristo encarnou para que nós pudéssemos ser feitos Deus”. É o próprio caráter humano de Jesus que possibilita que nós, mortais, tenhamos acesso a Deus, que nos tornemos parte Dele, a fim de partilhar do divino. Essa fusão é chamada theōsis. A natureza humana de Cristo torna o divino possível para todos”.
“Esse argumento (de que a vida real é assumir riscos) revela a fraqueza teológica da Aposta de Pascal, que estipula que acreditar no Criador tem uma compensação positiva, caso ele realmente exista, e nenhuma desvantagem no caso de ele não existir. Portanto, a aposta seria acreditar em Deus como uma opção gratuita. Mas não há opções gratuitas. Se você seguir a ideia até seu fim lógico, poderá ver que ela propõe a religião sem nenhum risco, tornando-a uma atividade puramente acadêmica e estéril. Mas o que se aplica a Jesus também deveria se aplicar a outros crentes. Veremos que, tradicionalmente, não há religião sem que se arrisque a própria pele em algum grau.
Os filósofos, ao contrário dos bispos, igualmente inclinados ao debate porém vastamente mais sofisticados (e usando trajes muito mais coloridos), não entendem o experimento de pensamento da máquina da experiência. O procedimento é o seguinte. Simplesmente você se senta em um aparelho e um técnico conecta alguns cabos em seu cérebro, e depois disso você passa por uma “experiência”. Tem a perfeita sensação de que o evento ocorreu, exceto que tudo aconteceu na realidade virtual; foi tudo na sua cabeça. Infelizmente, essa experiência nunca estará na mesma categoria que o real — apenas um filósofo acadêmico que nunca assumiu riscos pode acreditar nesse tipo de absurdo. Por quê?
Porque, repetindo, a vida é sacrifício e admissão de riscos, e nada que não envolva uma quantidade moderada do primeiro, sob a restrição de satisfazer o último, está próximo do que podemos chamar de vida. Se você não assume um risco de dano real, reparável ou mesmo potencialmente irreparável, de uma aventura, não é uma aventura.
Nosso argumento — de que o real requer perigo — pode levar a sutilezas sobre o problema mente-corpo, mas não conte para o seu filósofo local. Ora, pode-se argumentar que, uma vez dentro da máquina, talvez a pessoa acredite estar arriscando a própria pele, e talvez sinta as dores e consequências como se estivesse vivendo o dano real. Mas isso é lá dentro , não fora, e não há risco de danos irreversíveis, coisas que perduram e fazem o tempo fluir em uma direção e não na outra. A razão pela qual um sonho não é a realidade é que, quando acordamos subitamente ao despencar de um arranha-céu chinês, a vida continua, e não há nenhuma barreira absorvente, o conceito matemático para esse estado irreversível”
“Nada de músculos sem força,
amizade sem confiança,
opinião sem consequência,
mudança sem estética,
idade sem valores,
vida sem esforço,
água sem sede,
comida sem nutrição,
amor sem sacrifício,
poder sem justiça,
fatos sem rigor,
estatística sem lógica,
matemática sem prova,
ensino sem experiência,
polidez sem afeto,
valores sem corporeidade,
diplomas sem erudição,
militarismo sem moral,
progresso sem civilização,
amizade sem investimento,
virtude sem risco,
probabilidade sem ergodicidade,
riqueza sem exposição,
complicação sem profundidade,
fluência sem conteúdo,
decisão sem assimetria,
ciência sem ceticismo,
religião sem tolerância,
e, acima de tudo:
nada sem arriscar a própria pele”