Aborto e Religião
Cada religião possui uma abordagem diferente para esse tema tão difícil e delicado. Não é apenas uma questão de ser a favor ou contra, mas de entender as razões morais e espirituais que envolveram esse tema nas mais variadas sociedades e culturas através dos tempos.
Comecemos pelas religiões indianas. Como sabemos, o hinduísmo é muito vasto e formado por diferentes tradições, então é difícil dizer “os hindus pensam tal coisa sobre o aborto”. Há hindus monoteístas, politeístas, panteístas ou até ateus e sua concepção sobre a alma também diverge. É possível encontrar textos clássicos hindus condenando o aborto, mas alguns hindus consideram o aborto aceitável em caso de ameaça à vida da mãe ou quando o feto possui alguma anomalia que poderá levá-lo à morte.
Tanto na Índia quanto em outros países existe a prática ilegal do aborto seletivo, em que se opta por abortar o feto feminino para que a família não tenha que pagar o dote do casamento. Essa é uma prática condenada pelos religiosos.
As visões budistas sobre o tema também variam. Algumas visões derivadas de tradições monásticas condenam a prática e alertam para suas consequências kármicas. Porém, professores modernos de budismo reconhecem que uma ameaça à vida da mãe pode ser uma justificativa aceitável.
No islamismo também há diferentes posições relativas a esse tema, pois não há consenso a respeito de quando o embrião ou feto passaria a ter uma alma. Em geral, eles concordam que terminar a gravidez após 4 meses não é permitido. As exceções seriam em caso de ameaça à vida da mãe ou estupro.
Muitos judeus ortodoxos se opõem ao aborto, a não ser que seja para salvar a vida da mãe.
“Antes que te formasse no ventre te conheci, e antes que saísses da madre, te santifiquei; às nações te dei por profeta”
(Jeremias 1:5)
Alguns cristãos usam esse trecho da Bíblia para sugerir que a alma já está presente no embrião desde o princípio. Porém, as interpretações judaicas desse trecho variam. São Tomás de Aquino defende que Deus coloca a alma no corpo após a concepção (40 dias para homens e 80 ou 90 dias para mulheres), mas ao fazer essa afirmação São Tomás estava seguindo a posição de Aristóteles, de forma que essa não é a posição oficial da Igreja Católica hoje. Ainda assim, Santo Agostinho, no século IV, também defendia que só a partir dos 40 dias de fecundação era possível considerar o embrião uma pessoa.
É importante ressaltar que embora existam essas posições teológicas desde o cristianismo primitivo, elas não constituem uma permissão ao aborto em qualquer circunstância. Conforme foi observado na posição das mais diferentes religiões, tanto antigamente quanto hoje, o posicionamento religioso em geral parece ser o seguinte: o aborto é uma prática séria que possui consequências morais e espirituais e não deve ser praticado levianamente. Muitas religiões apontam exceções, mas isso não é a mesma coisa que defender o aborto.
Se buscamos um texto antigo sobre o assunto, podemos encontrar esse trecho no Juramento de Hipócrates (460–377 a.C., o “pai da medicina”, nascido na Grécia):
“ Mesmo instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei; também não darei pessário abortivo às mulheres”
Esse juramento é pronunciado até hoje pelos médicos, mas em algumas versões atuais do juramento foi eliminado o trecho sobre o aborto.
Após essa pequena introdução, gostaria de falar mais um pouco sobre a posição dos cristãos a respeito do aborto, pois acredito que é com a abordagem dessa religião que estamos mais familiarizados.
Embora o cristianismo não possua tanta diversidade de interpretações teológicas e práticas quanto o hinduísmo, ele já possui mais de dois mil anos de história. Principalmente após a separação da Igreja do Oriente e do Ocidente e com a Reforma Protestante, ficou mais difícil falar de uma regra geral que represente todas as denominações.
Ainda assim, parece haver certa consistência a respeito do aborto no cristianismo, o que às vezes não existe em outros temas. Católicos, ortodoxos e a maior parte dos protestantes/evangélicos se opõem fortemente ao aborto em praticamente todos os casos.
Existem algumas vertentes de cristianismo mais liberal como é o caso dos anglicanos, por exemplo. Porém, até no interior da Igreja Anglicana existem divergências sobre o aborto.
Sendo assim, o consenso cristão sobre o aborto é o de que ele seria sim uma prática séria e deve ser evitada. A polêmica começa quando debatemos as exceções: os casos em que ele seria aceitável como último recurso.
Falarei mais a fundo aqui sobre a posição da Igreja Católica, pois é a que eu tenho mais contato.
A Igreja Católica admite tratamentos como quimioterapia e histerectomia de uma mulher grávida com câncer cervical, que resulta indiretamente na morte do feto. Ela também admite abortos em caso de ameaça direta à vida da mãe. João Paulo II escreveu o seguinte:
“Gostaria agora de dizer uma palavra especial às mulheres que fizeram um aborto. A Igreja está ciente dos muitos fatores que podem ter influenciado sua decisão, e ela não duvida que, em muitos casos, foi uma decisão dolorosa e até destruidora. A ferida no seu coração pode ainda não ter curado. Certamente o que aconteceu foi e continua terrivelmente errado. Mas não ceda ao desânimo e não perca a esperança. Tente entender o que aconteceu e enfrentar honestamente. Se você ainda não o fez, entregue-se com humildade e confiança ao arrependimento. O Pai das misericórdias está pronto para lhe dar o seu perdão e a sua paz no Sacramento da Reconciliação”
É verdade que existem católicos e cristãos que se opõem ao aborto em qualquer circunstância. Porém, frequentemente uma mulher cristã que opta por morrer para não ter que abortar é declarada santa pela Igreja Católica, como foi o caso de Gianna Beretta Molla (1922–1962).
Gostaria de ressaltar esse fato mais uma vez: uma mulher cristã que opta por morrer para evitar o aborto é um caso tão raro que consiste numa posição heroica equivalente ao martírio.
Sabemos que o martírio não é para todos. Até mesmo um cristão devoto e piedoso pode fraquejar diante da possibilidade de ser torturado ou morrer por suas crenças. É difícil condenar um homem ou mulher que recua diante do martírio, pois não sabemos o que nós mesmos faríamos até se deparar com a situação. Na teoria podemos ter o fervor de saber o que deve ser feito. Na prática, diferentes emoções e terror podem dominar o coração.
Isso é completamente humano. Nós temos medo. Podemos sinceramente ter fé e desejar fazer o bem, mas sermos dominados por sensações e valores que nos paralisam.
Algumas pessoas defendem que o aborto é equivalente ao assassinato, mas eu gostaria de ressaltar que devemos ter extrema cautela ao utilizar essa comparação. Aliás, até mesmo o assassinato, do ponto de vista religioso, às vezes pode ser justificado em casos específicos de legítima defesa, guerras de defesa e outras exceções (inclusive pela própria Igreja Católica), mas não entrarei nesse tema aqui para não dispersarmos do assunto principal.
Lembro de ter lido algo a respeito no livro “Deus existe?”, um debate entre o ateu Paolo Flores d’Arcais e o papa Bento XVI. O estudioso ateu observa, com argumentos, que os dois atos (aborto e assassinato) não podem ser colocados num nível equivalente e Bento XVI concorda. Apesar disso, o papa mantém que o aborto, ainda assim, consiste numa falta grave.
Em um livro escrito pelo Papa Francisco que li, ele observa que os católicos devem se posicionar contra o aborto com firmeza. Porém, o papa lamenta que tantos católicos e cristãos insistam tanto no tema do aborto e muitas vezes deixem de lado a defesa dos pobres que estão sofrendo e morrendo agora. Muitos cristãos defendem os inocentes que morrem pelo aborto, mas se esquecem de defender os inocentes, bebês, crianças e pessoas desfavorecidas de todas as idades que morrem em diferentes países por causas que poderíamos evitar com decisões que tomamos agora em nossas vidas.
Para quem não acredita em Deus, em alma e em outra vida, pode ser difícil entender a posição de muitas religiões sobre o aborto. Para o cristão, o meu corpo e a minha alma não são meus, mas foram dados a mim por Deus. Meu corpo é o templo de Deus e existe para honrá-lo e glorificá-lo.
A Bíblia está repleta de histórias de mulheres que desejavam ter muitos filhos para honrar a Deus e consideravam uma desgraça ser estéril. Hoje os tempos mudaram, as pessoas casam mais tarde e não desejam mais ter famílias numerosas. Com as vastas opções de métodos contraceptivos da atualidade, tornou-se possível o sexo sem que a fecundação se complete.
Enquanto os judeus, muçulmanos e alguns cristãos protestantes possuem uma posição mais liberal sobre o uso de contraceptivos, a Igreja Católica ainda recomenda principalmente a abstinência. Em parte, acredito eu, pelo fato de haver a obrigatoriedade de padres fazerem o voto de castidade, o que não ocorre na Igreja Ortodoxa.
Uma vez que a Igreja Católica recomenda sexo apenas após o casamento e a abstinência sexual do casal em ocasiões em que eles não desejam ter filhos, seguindo estritamente essas regras não haveria brecha para haver uma gravidez indesejada (excetuando casos de estupro) e portanto não haveria necessidade de aborto. Ou ao menos essa seria a lógica católica, que, analisada teoricamente, faz certo sentido.
Porém, nós não vivemos num mundo teórico e num conto de fadas. Nós vivemos num mundo em que ocorrem crimes graves em diversos países, particularmente no continente africano, em países do Oriente Médio e asiáticos. Existem países africanos em que mais da metade da população já sofreu estupro e sofre continuamente, em que pais matam as filhas que engravidam, em que lésbicas sofrem “estupro corretivo” e em que muitas mulheres são torturadas e apedrejadas até a morte.
A Igreja Católica atua em missões em muitos desses países e defende que a abstinência sexual, conforme ensinada por eles, é o método mais efetivo para impedir uma gravidez indesejada e infecções sexualmente transmissíveis. Isso é óbvio, mas esse método não é seguido nem mesmo pela maioria dos católicos de países desenvolvidos, então é de se perguntar até que ponto estamos aconselhando pessoas reais que vivem dificuldades reais ou apenas seguindo princípios que não refletem a realidade.
O fato é que as pessoas fazem sexo, pelas mais variadas razões, e que nenhum método contraceptivo é totalmente seguro. Uma mulher que mora numa região pobre do mundo, não sabe ler (e sabe muito menos usar métodos contraceptivos), não tem o que comer ou acesso a água tratada e já tem cinco ou dez filhos está grávida de mais um. Um filho que, talvez, nascerá apenas para morrer de desnutrição logo em seguida.
Isso não significa que o aborto sempre deve ser buscado em caso de gravidez indesejada. Ao contrário, existe muita desinformação a respeito do que realmente ocorre no processo de um aborto. Embora ele seja feito de forma mais segura hoje em dia, não deixa de ser um processo violento, com riscos físicos e psicológicos para a mãe, principalmente em etapas mais avançadas da gravidez (em etapas iniciais você pode sugar o embrião, mas em etapas mais avançadas deve desmembrar e despedaçar o feto).
Existem alguns vídeos famosos que mostram o processo do aborto, como “The Silent Scream” que é considerado sensacionalista por alguns, mas ficou conhecido nos anos 80. Existem outros vídeos, como esse, que mostram em desenhos como o aborto é realizado em cada etapa da gravidez. Vídeos assim são geralmente considerados tendenciosos, pois são feitos por pessoas claramente contra o aborto. Mesmo assim, após assistir o que é mostrado, é difícil não se sentir um pouco chocado. Acredito que toda pessoa, antes de pensar em fazer um aborto, deva assistir pelo menos um vídeo como esse para pelo menos ter a mínima ideia do que está fazendo. É fácil defender o aborto de forma teórica e abstrata, mas bem diferente após realmente ver o que acontece.
Para finalizar, devo lembrar que Cristo nos ensinou a não julgar as pessoas. Pode ser muito doloroso para uma mulher que teve que passar por um aborto (muitas vezes por pressão da família ou parceiro e contra sua vontade) e que pode ter se arrependido depois, ouvir comentários de que é igual a uma assassina. As mulheres também são muitas vezes vítimas de toda essa situação, incluindo passar pela pressão social de que devem abortar ou que, uma vez que tenham o filho, devam ser uma mãe perfeita. Frequentemente elas não estão suficientemente informadas sobre o procedimento e os riscos que passam para se submeter a ele.
Não irei falar aqui sobre a questão envolvendo a legalização ou não do aborto, pois esse é outro assunto extremamente complexo. Se eu tivesse que fazer um resumo de tudo que escrevi e uma mensagem final seria que esse é um assunto bastante complicado e que não pode ser facilmente reduzido. Eu entendo as posições éticas e espirituais envolvidas no aborto e acho razoável que uma pessoa se posicione contra ele. Porém, eu também compreendo a posição daqueles que apontam as exceções.