A Paisagem Moral, por Sam Harris

Wanju Duli
10 min readApr 11, 2020

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Terminei de ler esse ótimo livro nessa madrugada. Colocarei aqui algumas passagens que me chamaram a atenção:

“Ela: Por que você acha que a ciência um dia poderá dizer que é errado forçar mulheres a usar burcas?
Eu: Porque acho que certo e errado são uma questão de aumento ou diminuição no bem-estar — e é óbvio que forçar metade da população a viver dentro de sacos de pano e espancá-las ou matá-las se elas se recusarem não é uma boa estratégia para maximizar o bem-estar humano.
Ela: Mas isso é só o que você acha.
Eu: OK… Vamos simplificar as coisas. E se nós encontrássemos uma cultura que tivesse um ritual de cegar todos os terceiros filhos, arrancando seus olhos após o nascimento? Você concordaria que teríamos encontrado uma cultura que diminuiu sem necessidade o bem-estar humano?
Ela: Dependeria do motivo para eles fazerem isso.
Eu (lentamente abaixando as sobrancelhas): Digamos que fosse por causa de uma superstição religiosa. Na escritura deles, Deus diz: ‘Todo terceiro deve andar nas trevas’.
Ela: Então você jamais poderia dizer que eles estão errados.

Opiniões como essa não são incomuns na torre de marfim. […] Confesso que, depois que conversarmos e que olhei de perto para o terrível abismo que nos separava nessas questões, descobri que não conseguia dirigir mais nenhuma palavra a ela. Nossa conversa terminou com minha encenação involuntária de dois clichês neurológicos: meu queixo literalmente caiu e eu girei nos meus calcanhares antes de sair andando”

Apesar de poucos filósofos darem a si mesmos a pecha de ‘relativistas morais’, é muito comum encontrarmos erupções dessa visão sempre que cientistas e outros acadêmicos topam com alguma diversidade moral. É possível argumentar que forçar mulheres e meninas a usar burcas pode ser errado em Boston ou Palo Alto, mas o mesmo não vale para muçulmanas em Cabul. Exigir que os orgulhosos cidadãos de uma cultura antiga se adaptem à nossa visão de igualdade de gênero seria imperialismo cultural e ingenuidade filosófica. Essa é uma visão surpreendentemente comum entre antropólogos.
O relativismo moral, porém, tende a contradizer a si mesmo. Os relativistas podem dizer que verdades morais existem apenas em relação a culturas específicas — mas essa própria afirmação sobre o status das verdades morais se pretende verdadeira para todas as culturas possíveis. Na prática, o relativismo quase sempre equivale à alegação de que precisamos ser tolerantes em relação a diferenças morais, porque nenhuma verdade moral pode superar outra. Só que esse próprio compromisso com a tolerância não é nunca colocado como apenas uma preferência relativa entre várias consideradas igualmente válidas.
A tolerância é considerada a única posição possível, porque está mais alinhada do que a intolerância com a verdade (universal) em relação à moral. A contradição aqui não surpreende. Dada a maneira como somos profundamente dispostos a formular proposições morais universais, acho que é possível duvidar se já existiu no mundo um relativista moral consistente.
O relativismo moral é claramente uma tentativa de reparação intelectual pelos crimes do colonialismo europeu, do etnocentrismo e do racismo. Essa é, eu acho, a única coisa caridosa que pode ser dita sobre ele. Espero estar claro que não é meu objetivo aqui defender as idiossincrasias do Ocidente como sendo em princípio mais esclarecidas do que as de qualquer outra cultura”.

“Em seu maravilhoso livro ‘Tábula Rasa’, Steven Pinker cita uma comunicação pessoal do antropólogo Donald Symons que captura muito bem o problema do multiculturalismo:

‘Se uma única pessoa no mundo segurasse uma menina aterrorizada, esperneando e gritando, cortasse-lhe os genitais com uma lâmina séptica e costurasse o corte deixando apenas um minúsculo orifício para a passagem de urina e fluxo menstrual, a única questão seria com que severidade essa pessoa teria de ser punida e se a pena de morte seria sanção suficientemente severa. Mas quando milhões de pessoas fazem isso, em vez de a atrocidade ser ampliada milhões de vezes, ela subitamente se torna ‘cultura’, e assim, por mágica, torna-se menos horrível, ao invés de mais, e chega até mesmo a ser defendida por alguns ‘pensadores morais’ ocidentais, incluindo feministas’”

Essa é a resenha que fiz do livro na minha página do Facebook. Irei colar aqui:

Agora que eu terminei minha leitura poderei fazer comentários mais detalhados.
Achei esse livro nas promoções do dia da Amazon. Na contracapa há elogios ao livro por Richard Dawkins e Ian McEwan, dois célebres ateus. Eu já li dois livros de Ian McEwan: “Reparação” e “A balada de Adam Henry”. Esse último é um romance sobre um adolescente de 17 anos, Testemunha de Jeová, que recusa aceitar uma transfusão de sangue, e a advogada que tentará declinar essa negação por ele ser menor de idade. Achei um ótimo livro. Também já li pelo menos uns cinco livros escritos pelo Dawkins e admiro o que ele escreve sobre biologia, embora eu não concorde com tudo o que ele diz sobre religião.
Descobri que Richard Dawkins, Daniel Dennett, Sam Harris e Christopher Hitchens são conhecidos pela alcunha de “Os Quatro Cavaleiros do Ateísmo”. Isso significa que já li livros de dois dos cavaleiros, mas há muito tempo eu já tinha ouvido falar de Christopher Hitchens, devido às críticas que ele fez à Madre Teresa. Acho que algumas críticas dele são justificadas, mas não todas.
Agora que o contexto do autor já foi estabelecido, falemos do livro “A Paisagem Moral”. Achei um livro com ideias bem originais. Eu já devo ter lido mais de cem livros de filosofia e até hoje eu nunca tinha ouvido a proposta de que a ciência poderia explicar questões morais. Foi por esse motivo que resolvi ler o livro: eu estava curiosa para descobrir os argumentos.
O autor é filósofo, com doutorado em neurociência. Através de argumentos filosóficos e científicos ele explica porque é importante que a ciência se pronuncie em relação a questões morais tendo em vista maximizar o bem-estar humano.
Ele faz um paralelo genial com a saúde humana. Assim como é difícil definir o que é bem-estar, também é difícil definir o que é saúde, mas nem por isso essa deixa de ser uma questão científica. Seus críticos pedem para que ele explique porque é importante ter bem-estar, mas ninguém pede que a ciência explique, usando o método científico, porque é importante ter saúde, e ainda assim isso não impede o progresso da ciência nesse sentido.
Em seu livro ele usa uma concepção mais ampla de ciência, abrangendo também áreas das humanidades para ajudar a explicar os valores humanos.
Ele defende que algumas ações humanas são certas e outras erradas, que algumas são melhores que outras, diferente de muitos antropólogos que defendem que essas coisas variam conforme o tempo e a cultura.
Sam Harris defende que certas práticas realizadas por tradição por diferentes tribos devem ser vistas como objetivamente ruins, como mutilação genital feminina ou vendeta, na qual você vinga o assassinato de um parente matando qualquer parente aleatório da família do assassino.
Filósofos, antropólogos e outros pensadores de hoje insistem em defender que ações certas e erradas são completamente relativas conforme a cultura, mas o autor não concorda. De acordo com ele, se houvesse cientistas morais especialistas nessas questões de valores, poderia ser criada uma ciência da moral, assim como existem médicos, psicólogos, filósofos, cada um especialista num campo em que são realizadas pesquisas consistentes. Ele acha que seria muito melhor haver um especialista nisso, que usasse o auxílio da neurociência e outras áreas da ciência e humanidades para determinar o que é certo ou errado cientificamente, do que deixar isso a cargo de mera “opinião” ou de religiões.
Ele aponta que também podemos ter opiniões sobre física, por exemplo, mas às vezes nossas percepções da física são contraintuitivas (muitas frequentemente são) e por isso devemos confiar nos especialistas em teoria das cordas, por exemplo, do que simplesmente ter uma opinião. O mesmo ocorre em relação a psicologia, medicina, etc.
Os cientistas podem se enganar às vezes? Sim. O método científico tem falhas? Sim. Porém, o autor aponta que muitos pensadores modernos têm se focado excessivamente em apontar as falhas do método científico e em insistir na relatividade das coisas. No entanto, se alguém fica doente e precisa de uma cirurgia, iremos confiar prontamente nos profissionais em vez de ter nossas opiniões sobre o assunto.
Ele defende que se pense com igual seriedade científica sobre as questões morais. Há limitações para isso? Sem dúvida. Mas não é porque as respostas são difíceis que significa que não há respostas.
Alguns relativistas morais apontam demais para as exceções como argumento, mas o autor rebate: no xadrez, é geralmente bom proteger sua rainha. Claro, há ocasiões em que você tem que sacrificá-la ou que é o único movimento possível. Mas isso não derruba o argumento de que é geralmente bom proteger sua rainha.
Ele pensa o mesmo em relação ao certo e o errado. As exceções não devem ser usadas como prova da relatividade da moral.

Sam Harris usa frequentemente o exemplo do Talibã para criticar religiões. Ele dá ênfase particularmente na obrigatoriedade do uso do véu em alguns países islâmicos e em como é objetivamente errado obrigar que mulheres usem a burca num calor de 50 graus e ameaçá-las de morte se não o fizerem.
O Talibã é oficialmente considerado como organização terrorista por dezenas de países e já foi responsável por muitos massacres, torturas, estupros, raptos, etc. Ainda assim, existem muitos intelectuais ocidentais que se recusam a criticar abertamente esse tipo de movimentos islâmicos de cunho político em nome da “tolerância religiosa” e “respeito à cultura”, sob o argumento da relatividade da moral. Se o certo e o errado são relativos e variam de acordo com o tempo e a cultura, então os ocidentais não têm que se meter e julgar esse tipo de coisa, ou tradições de tribos antigas (como a mutilação genital feminina que ocorre em milhões de meninas e mulheres de tribos em países africanos)?
O argumento de Sam Harris em seu livro “A Paisagem Moral” é deixar claro que a moralidade não é relativa e que existem sim ações erradas que ferem os direitos humanos. Não devemos nos esconder atrás de argumentos de tolerância ou respeito à cultura e sermos cúmplices desse tipo de coisa, nesses casos.
Segundo ele, essa confusão sobre a relatividade da moral defendida por pensadores modernos (sem dúvida uma resistência à moral religiosa) tem causado muitos males e deve ser decididamente combatida.
Porém, ele não defende nem uma moralidade baseada em religiões e nem o relativismo, e sim uma moralidade construída através de estudos e pesquisas científicas.

Gostei muito da proposta do autor de ser criada uma “ciência da moral”. Depois das atrocidades ocorridas na Segunda Guerra Mundial, em 1948 a ONU proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Mas antes disso, já tinham sido criadas as Convenções de Genebra, em 1863, por Henri Dunant, criador da Cruz Vermelha.
Por grande parte da história, a moral e os direitos humanos eram definidos principalmente seguindo uma moral religiosa, usando-se os argumentos de Deus e da alma: todo ser humano merece ser tratado de forma digna, porque ele tem uma alma e essa alma vem de Deus.
Segundo Sam Harris, todo ser humano deve ser tratado de forma digna porque ele tem consciência e sofre, assim como muitos animais sentem dor e devem ser tratados de forma digna.
De fato, acredito que estudos sobre moralidade com base científica podem nos fazer avançar muito na questão dos direitos humanos e animais. Concordo com o autor que boa parte da nossa confusão nessas questões tem origem em algumas facetas do conservadorismo religioso, superstições e da defesa moderna ao relativismo moral.
No entanto, eu não concordo com o autor em todos os pontos. Quando Sam Harris ataca a religião, está claro que ele está atacando religiosos extremamente conservadores, particularmente cristãos e muçulmanos que parecem negar muitas descobertas científicas e propagar muitos tipos de preconceitos.
Eu já vi uma estatística uma vez que menos de 1% dos muçulmanos são terroristas ou apoiam atos terroristas. Até mesmo na Arábia Saudita, já li que apenas uma minoria é composta de religiosos realmente conservadores. A maior parte pratica sua religião normalmente sem fanatismos e ainda há uma boa parte composta de discretos muçulmanos com ideias liberais.
As estatísticas nos Estados Unidos podem parecer preocupantes (em relação aos que negam a evolução, por exemplo), mas em diversos países há uma maioria de muçulmanos com práticas mais liberais (como a Indonésia) e uma quantidade enorme de cristãos que defendem os direitos dos gays, inclusive padres e católicos. Infelizmente isso não aparece na mídia.
O argumento de quem é contra religião é que ela gerou mais males do que bens. No entanto, é importante lembrar que muitos hospitais no ocidente surgiram por influência religiosa. Até hoje, mais de 60% de hospitais e escolas em países da África existem e são mantidos gratuitamente ou por baixo preço por religiões. No Brasil, muitas escolas e hospitais (as Santas Casas) foram fundados por cristãos. Até hoje, a maior parte das organizações de caridade tem origem religiosa.
Sam Harris se coloca contra conservadores e fundamentalistas religiosos fanáticos, mas ele parece se esquecer do enorme número de religiosos com ideias liberais. Nesse ponto eu critico o autor, pois ele parece colocar todos no mesmo saco.
Para ele, acreditar em Deus ou se afiliar a uma religião significa ser contra a moral científica e se basear numa moral supersticiosa.
Porém, ele não leva em consideração que a maior parte dos praticantes das religiões não são filósofos e nem todos estão preocupados em seguir uma religião para buscar a verdade ou aprimorar seu comportamento moral.
Ele não parece considerar que alguém possa escolher uma religião por objetivos sociais, fazer amigos, se unir às pessoas, sem comprometer seu compromisso em confiar na ciência. Sam Harris deve achar que ter uma religião significa aceitar literalmente tudo o que está escrito em um livro sagrado. Nem os padres fazem isso, eles interpretam componentes literais morais, simbólicos.
Nem Sam Harris e nem Richard Dawkins são especialistas em ciência da religião. Eles sem dúvida têm coisas de valor a dizer sobre o tema, mas assim como Sam Harris defende que a moral seja deixada para os cientistas da moral e Dawkins que a biologia fique para os biólogos, o mesmo vale para eles: deixem a análise da religião para os especialistas na área.

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