A Confissão
O título até parece o livro do Santo Agostinho, mas eu não sou tão humilde quanto ele, haha. Ou talvez pareça algo do tipo: “a confissão do crime” e pode ser que tenha sido: um crime contra Deus e contra minha alma?
Foi mais ou menos assim: eu chego na catedral.
Eu: O padre está por aí?
Secretária: Para confissão?
Eu: (feliz e surpresa porque ela já sabia o que eu queria antes mesmo de eu dizer): Isso!
Ela: Vou ligar para o padre e ele logo já chega.
E eu achando que era a única pessoa que se confessava nos dias de hoje. Se ela adivinhou que eu queria me confessar significa que esse não é um pedido tão incomum assim.
Eu me sentei numa das cadeiras da secretaria e aguardei, lendo um livro no Kindle, numa parte em que o autor falava sobre a piscina milagrosa que é descrita nos Evangelhos. Aquela em que um anjo de vez em quando aparece para agitar as águas. Chama-se “Tanque de Betesda”. Muitos doentes iam lá esperando curas milagrosas. Isso é relatado em João 5,4.
Aparece o padre. Ele sorri e me cumprimenta. Tem uma voz calma e eu simpatizo imediatamente com ele.
Eu o sigo, jogando o Kindle dentro da minha mochila e indo para o interior da belíssima catedral.
Há quatro confessionários lá dentro (prova de que antigamente as pessoas realmente se confessavam com frequência). O padre indica os degraus e pede para que eu me ajoelhe ali. Enquanto isso, ele entra por trás da cortina.
Eu não tenho uma foto de um dos confessionários da catedral, mas é parecido com um confessionário clássico, como esse:
É época de férias e a catedral está quase vazia. Eu reparo que há umas poucas pessoas sentadas ou ajoelhadas nos genuflexórios, rezando. A outra metade parecem ser turistas tirando fotos com o celular. Talvez muitas igrejas hoje tenham se transformado praticamente em museus.
Naquele instante passa pela minha mente que estou proporcionando um pequeno espetáculo para os turistas, que talvez nem sejam católicos e nunca tenham visto ninguém se confessar num confessionário.
Eu mesma nunca vi, até porque poucas igrejas hoje em dia têm confessionários. Só vi a mim mesma, obviamente. Não é a primeira vez que me confesso num desses, antigos, com uma peça de madeira com furinhos me separando do padre.
A primeira vez que me confessei num confessionário parecido com esse foi há um ano, no início de 2018, quando fiz um retiro num mosteiro da Argentina, com um padre admirável que tinha a tatuagem egípcia e iraquiana da cruz dos mártires no pulso (a tatuagem significa que você está disposto a morrer pela sua fé. Literalmente, caso a ocasião se apresente um dia).
Mas o confessionário do mosteiro ficava numa sala separada. Essa foi a primeira vez que eu me confessei num confessionário da própria igreja, na frente de outras pessoas.
Meu primeiro pensamento ao me ajoelhar foi: “Será que esse pessoal que está ao redor consegue ouvir minha confissão? A catedral está tão silenciosa. E o quão alto será que eu terei que falar para que o padre consiga ouvir o que tenho a dizer?”
Não foi preciso falar muito alto. Falei num tom normal, apenas ligeiramente baixo.
Muita gente não gosta de se confessar para um padre, alegando que pode se confessar diretamente para Deus. Afinal, por que passar pelo embaraço de dizer os seus pecados para um desconhecido? Vou tentar explicar uma das razões, principalmente para quem não acredita em Deus, mesmo que exista um motivo espiritual mais importante (o mistério de Deus) por trás da nossa explicação lógica.
Acho que nossa crença em Deus anda tão fraca hoje em dia que confessar nossos pecados apenas para Deus (embora não haja nada de “apenas” no processo em si, já que orar é muito importante) pode não ser um incentivo suficiente para nos incitar a melhorar. Se eu posso me confessar a hora que eu quero e do jeito que eu quero, nada vai me impedir de cometer o mesmo pecado incontáveis vezes por dia, ou todos os dias, e apenas pedir perdão pela milésima vez como se não fosse nada. Como se fosse um mero ritual vazio.
Mas se confessar para uma pessoa é diferente. Você pensa: “lá vou eu toda semana confessar para o padre o mesmo pecado. Ele deve achar que eu sou idiota ou não estou levando isso a sério. É melhor eu me esforçar mais para não cometer o mesmo erro. Nem que seja para não encher o saco do padre”.
Enfim, o fato de se confessar para uma pessoa em vez de se confessar somente para Deus é um procedimento que aumenta a nossa determinação e um incentivo a mais para não cometermos os mesmos erros com tanta frequência.
Nós nos importamos com o que os outros pensam de nós e podemos usar isso a nosso favor, embora não costumemos nos importar tanto com o que Deus pensa. Isso porque a nossa fé nele não costuma ser tanta. Para compensar a nossa falta de fé, a intervenção de outra pessoa, como um padre, nos ajuda.
A Igreja Católica é cheia de intercessores para nos ajudar nas incontáveis vezes em que falhamos para falar diretamente com Deus. Afinal, somos tão pequenos e Deus é tão grandioso! Então que tal tentar ter um pouco de humildade e pedir ajuda para Jesus, Maria, para os santos e anjos? Geralmente somos muito orgulhosos e achamos: “eu sozinho dou conta de orar para Deus e confessar meus pecados, não preciso de ajuda!”.
O sacramento católico da confissão é um passo importante para quebrar esse orgulho. É admitir que somos fracos. Que estamos nesse mundo para ajudar uns aos outros e não precisamos fingir que somos fortes.
Temos medo de sermos julgados. Mas o padre não fez nada disso. Após eu confessar meus pecados, ele simplesmente disse que eu era iluminada, que era lindo que eu estivesse na casa de Deus e me esforçando para melhorar, através de confissões, idas à missa, orações e leituras da Bíblia.
Fiquei muito feliz. Ele me passou uma penitência com algumas orações e me orientou a fazer, além disso, uma oração particular no genuflexório.
Lá fui eu me ajoelhar fitando essa estátua linda de Maria, a Rainha dos Anjos. Na pintura logo atrás há anjos ao redor dela, que está num local mais alto, com uma coroa.
Fiquei tão emocionada com a confissão e com minha penitência que transformei em trinta minutos algo que poderia durar apenas cinco minutos. Fiquei meia hora ajoelhada rezando dezenas de ave-marias e pais-nossos. Também acrescentei orações do Santo Anjo.
Quando voltei a me sentar, meus joelhos estavam vermelhos, doloridos e afundados. Foi difícil me mexer, embora não tão difícil como nas ocasiões em que fico mais de 1h ou 2h seguidas ajoelhada rezando o rosário. Quando isso ocorre, eu normalmente preciso ficar alguns minutos sentada, pois não consigo caminhar logo em seguida. Minhas pernas falham por causa da dor nos joelhos.
Eu estava pingando de suor, de tão quente que estava lá dentro. Mesmo assim, foi maravilhoso.
E então aconteceu algo incrível. Meu estado de consciência se alterou um pouco. Isso ocorreu por vários motivos. Primeiro, eu havia acabado de me confessar, então estava num estado purificado, com meu coração pronto a receber o Espírito Santo. Segundo, eu havia cumprido minhas penitências muito além do que eu precisava, maltratando o meu corpo com a dor nos joelhos e imobilidade, aguentando o calor e o suor. Mas todas essas sensações eram doces e não desconfortáveis.
Eu geralmente me sinto no céu após uma confissão. É como um renascimento. Deus te perdoou. Você tem confiança nisso, pois um sacerdote de Deus te ajudou a superar aquele momento difícil e te garantiu, com gentileza, que Deus é misericordioso. Você aprende isso na Bíblia, mas pode viver aquele momento na própria carne através desse sacramento. Não é letra morta, mas viva. É espírito.
Em terceiro lugar, pouco antes de me confessar eu estava lendo num livro sobre o anjo que tornava as águas do Tanque de Betesda capazes de curas milagrosas. Em quarto lugar, eu estava fitando a imagem da Rainha dos Anjos diante de mim, com muitos anjos ao seu redor.
Também fitei as estátuas dos dois evangelistas logo ao lado: São Lucas, o médico, ao lado do boi, e São João (representado corretamente mais jovem) ao lado da águia. Os quatro animais de Ezequiel e do Apocalipse representam os quatro evangelistas.
Eu não estava esperando uma visita do meu anjo, mesmo que fosse uma visita discreta. Mas lá estava ele, batendo na porta do meu coração, sem avisar. Falando assim agora, me lembrei desse versículo:
“Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei e cearei com ele, e ele comigo” (Apocalipse 3,20)
Refeições na Bíblia costumam representar um reforço da Aliança de Deus com a humanidade. No caso do cristianismo, essa refeição é a eucaristia: o corpo e o sangue de Cristo, o Cordeiro imolado.
Meu anjo me disse o que Jesus falou para São Paulo:
“Eu lhe mostrarei o quanto deverá sofrer pelo meu nome” (Atos 9, 16)
Eu senti um frio na espinha e lágrimas rolaram pelos meus olhos, como água.
Na Bíblia, principalmente no Velho Testamento, não é incomum que Deus e seus anjos se confundam, como nos episódios dos três anjos diante de Abraão e o anjo que apareceu para os pais de Sansão. Sendo assim, não seria estranho um anjo dizer as palavras “pelo meu nome”, como se fosse Deus, pois é Seu mensageiro e está falando em Seu nome. Ocorre várias vezes na Bíblia.
Fiquei quase 2h na catedral após a confissão, nesse leve transe místico. Eu uso o termo “leve” porque já passei por alterações de consciência muito mais profundas, principalmente em meditações que duraram horas seguidas, sem conseguir me mexer, sem saber onde estava e tendo perdido a noção do tempo.
Para essa comunicação discreta não foi necessária uma alteração de consciência profunda.
Resolvi perguntar ao anjo o que Deus queria de mim.
Anjo: Ele quer que você seja feliz. Mas a felicidade de Deus não é a mesma felicidade do mundo. Para ser feliz diante de Deus é preciso sofrer muito.
Eu não pedi por uma aparição física do anjo e nem nada assim. Nem pedi que ele falasse em voz alta e mais claramente. Eu apenas escutava, fascinada, tentando distinguir quais eram as falas dele e qual era a voz da minha consciência.
Segundo o Legenda Áurea, o mais célebre livro sobre as vidas de santos na Idade Média, quando morrermos seremos julgados por três seres: Deus, nosso anjo guardião e nossa consciência.
Por isso, quando estivermos diante do tribunal de Deus na morte não haverá desculpas: nossa consciência é capaz de nos orientar para distinguir o certo e o errado. Porém, ela não é perfeita. Os conselhos do nosso anjo guardião, nosso intercessor mais direto diante de Deus, podem nos auxiliar a aperfeiçoar a voz de nossa consciência. Ele será nosso defensor no tribunal, ou nosso acusador, pois, tal como Deus, os anjos são mensageiros da misericórdia, mas também da justiça.
Minha consciência é como uma voz da minha mente que aquece meu coração quando faço o bem e sinto o amor e me faz sentir gelada por dentro quando faço algo errado. Por isso Dante Alighieri diz na Divina Comédia que Deus é como fogo e o diabo é como gelo.
Mas como diferenciar a voz da nossa consciência da voz do anjo? Tentei fazer algumas perguntas mentalmente ou em voz sussurrada. Muito do que aprendi sobre anjos vem das leituras dos livros de São Tomás de Aquino (conhecido como um dos maiores “especialistas” em anjos e basicamente em todo o resto, hehe) ou comentários dos livros dele. Eu aprendi que anjos não podem ler nossos pensamentos, a não ser nas ocasiões em que nós o permitimos fazer isso. Ou seja, ele é capaz de fazer isso, mas normalmente não faz, por respeito à nossa privacidade e livre-arbítrio.
Então essa breve conversa foi especial. Percebi que ele queria que eu me lavasse com algumas lágrimas para que ele falasse. Eu fiz algumas perguntas e aos poucos notei que a resposta da minha consciência era às vezes diferente da resposta do anjo.
É uma diferença inicialmente sutil, mas o anjo é um ser diferente de nós e de nossa consciência. É uma criatura criada por Deus (perpétuo e não eterno como Deus, pois teve um começo) para nos proteger e que já nos conhece mesmo antes de nascermos. Sabe muitos de nossos defeitos e qualidades, pois está sempre ao nosso lado, mas ele não é onisciente como Deus. Ele é um servo de Deus, como nós. Ele deseja nos defender no tribunal, por amor. Mas o maior amor e devoção do anjo sempre deve ser a Deus em primeiro lugar, assim como o nosso. Portanto, se escutamos nossa consciência e os conselhos de nosso anjo e ainda assim escolhemos fazer o mal, totalmente conscientes de que não estamos optando pelo caminho de Deus, nenhum de nossos três julgadores poderão nos salvar.
Foi um dia importante, pois meu anjo foi completamente claro em relação a algumas perguntas. Em outras, ele manteve silêncio, pois ainda não havia chegado a hora de responder. Eu sinto que ele está, aos poucos, me acostumando com sua presença.
Deus não quer outra coisa que não seja o sacrifício completo. A prova de amor mais profunda e perfeita, um tipo de batismo de sangue. Como Jesus deu ao seu Pai. Ele nos chamou a segui-lo nesse tipo de morte. Somente isso pode nos trazer a verdadeira felicidade.
“Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mateus 16,24)
Mas de que importa ser feliz se existe algo mais importante, que é servir a Deus e sacrificar-se por ele? Paradoxalmente, somente o sacrifício te fará feliz, mas você não se sacrifica pela própria felicidade, mas por amor a Deus.
E você não está sozinho nisso. Ser um anjo guardião não deve ser nada fácil, tendo que assistir aos incontáveis momentos em que caímos e falhamos, em que negamos o amor. Ele tem paciência. É nosso melhor amigo, um amigo normalmente silencioso, que nos ajuda diariamente, sem pedir nada em troca.
Meu anjo guardião será provavelmente condecorado por Deus no meu julgamento, por ter aguentado todas as minhas sessões de fotos, hahaha. Mas ele foi bem educado hoje. Ele não me disse: “Antes de responder suas perguntas, tenho algo a dizer a você: pare de tirar fotos e vá rezar! Seu julgamento não é um concurso de moda!”.
Estou feliz por hoje. Foi um pouco inesperado. Ainda bem que eu não fui ingrata e disse: “Ainda faltam nove meses, não quero spoilers ainda!”. Pelo jeito, a versão de 18 meses de Abramelin é tão intensa que não deve ser raro que visões e comunicações fiquem pipocando antes da hora. E eu confio mais no relógio de Deus do que no meu.
Fui fazer essa confissão hoje porque daqui alguns dias já começo meu retiro, então eu não queria chegar no mosteiro sendo um saco de poeira espiritual. Ao que tudo indica, a poeira saiu um pouco. E ela ainda vai voltar e sair diversas vezes, pois tal é a natureza humana. Mas, calma. Não precisamos ser perfeitos para merecer o céu. Devemos aspirar à perfeição e fazer o máximo possível.
E onde é o céu? É onde Deus está. Mesmo que esse lugar seja o inferno. Por isso, podemos sofrer e sentir muita dor e ainda assim estar no céu: pois estar no céu não é deixar de sofrer, mas aprender a sofrer junto com Deus, carregando sua cruz com amor e alegria.
“Agora me alegro em meus sofrimentos por vocês e completo no meu corpo o que resta das aflições de Cristo” (Colossenses 1,24)
No livro “Buscar Sentido no Sofrimento” Peter Kreeft nos diz:
“Deve haver algo não muito diferente da dor nos céus (Deus garante que logo iremos experimentá-la). É no abandono de nós mesmos, acima de qualquer coisa, que tocamos o ritmo não apenas da criação mas de todos os seres. Pois a Palavra Eterna também oferece a ele em sacrifício; e isso não apenas no Calvário”.
E, segundo C.S. Lewis:
“Do mais alto ao mais baixo, o ego existe para ser abandonado; por meio dessa abdicação, o eu se torna mais verdadeiro, para ser novamente abandonado, e assim para sempre. Essa não é uma lei divina da qual podemos escapar permanecendo mundanos, nem uma lei terrena da qual podemos escapar sendo salvos. O que está fora do sistema do abandono de si mesmo não é a terra, nem a natureza, nem a ‘vida comum’, mas apenas e simplesmente o inferno”
ázaro
, por Leon Bonnat, França, 1857.Ao abandonar nosso ego, morremos para nós mesmos e renascemos em Deus. Ou, como diz São João da Cruz em “Noite Escura da Alma”:
“De fato, é necessário à alma permanecer neste sepulcro de obscura morte, para chegar à ressurreição espiritual que espera”.
Para saber se você está falando com um anjo ou com um demônio é simples: o demônio te oferece recompensas sem exigir sacrifícios. O anjo te exige sacrifícios sem oferecer recompensas. Pelo menos não recompensas nesse mundo. Você precisa tornar-se fogo para aguentar o fogo do amor que é Deus, ou queimará.
Isso que eu acabei de escrever é um dos maiores motivos de tanta gente se afastar das religiões hoje em dia. Muitos não entendem o que podem “ganhar” ao seguir Deus e acham que o sacrifício não vale a pena. Por que seguir Deus se posso obter coisas melhores por um menor esforço?
Nós não somos apenas corpo. Somos também alma e essa alma clama por um sentido maior que o próprio corpo mortal, maior que a vida e a matéria. Estamos entediados e vazios porque esquecemos que somos espírito e que possuímos um propósito maior nesse mundo: o entendimento de que o sofrimento e a morte não são mero fruto do acaso. Há um sentido na existência da dor e da morte: a união com o divino e uns com os outros em Deus.